sábado, 25 de maio de 2013

Galileu Galilei à luz da história

"[...] O interesse que levantou a condenação eclesiástica do físico e astrônomo pisano Galileu Galilei, o famoso "Caso Galilei", é manifestado pela literatura que provocou e ainda suscita em todas as línguas culturais. Quando, no século passado, a cúria romana franqueou as atas dos processos de 1616 e 1632, quase imediatamente e no mesmo ano de 1877, os documentos principais foram publicados em três línguas: alemã, francesa e italiana. Desde então propriamente não se pode mais falar de "Questão Galilei", pois todos os fatos estão à luz do dia. Sem falar dos inúmeros ataques à Igreja Católica, onde domina a má fé, podem-se apontar numerosos estudos bem documentados, que levam ao público o conhecimento do caso. [...] Quem não ouviu falar de Galileu Galilei? O grande sábio, o gênio turbulento, matemático, físico, astrônomo, observador e pensador, lutador vitorioso e derrotado, promovendo a ciência e sucumbindo a erros, entregue a altas contemplações e inclinado aos prazeres da vida, admirado e louvado, criticado e acusado, elevado aos fastígios da glória e humilhado como réu e criminoso. Como sua vida está cheia de estranhos contrastes e contradições, também o é sua memória na história. Seus admiradores o exaltam, seus adversários o condenam. Boa e má fé se misturam, como também os fatos históricos se entremeiam com lendas. O que devemos pensar deste homem enigmático? A esta pergunta não é possível responder em poucas palavras. O presente trabalho procura elucidar o "Caso Galilei", expondo e ponderando os fatos históricos, tirados de documentos originais e transmitidos por testemunhas fidedignas. Ouvindo as próprias palavras de Galilei e dos mais atores da tragédia, ser-nos-á possível separar a lenda da verdade e formar um juízo seguro e justo. [...]"

Você pode baixar no Alexandria Católica: http://alexandriacatolica.blogspot.com.br/2013/05/colecao-vozes-em-defesa-da-fe-caderno.html

segunda-feira, 20 de maio de 2013

O êxodo em massa de cristãos do mundo islâmico - Raymond Ibrahim

Estamos revivendo a história real de como o mundo islâmico (boa parte do qual, antes das guerras de conquista islâmicas, era quase inteiramente cristã) se formou.

A Comissão Americana de Liberdade Religiosa Internacional (U.S. Commission on International Religious Freedom) declarou recentemente: “A fuga de cristãos da região é sem precedentes, e está crescendo a cada ano”.  Antes de nossa geração passar, “os cristãos poderão ter desaparecido completamente do Iraque, do Afeganistão e do Egito”.

Constantes reportagens sobre o mundo islâmico certamente confirmam essa conclusão: O Iraque foi o primeiro indicador do destino que aguardava os cristãos assim que as forças islâmicas se viram livres dos controles que os ditadores lhes impunham.

Em 2003, a população cristã do Iraque era de pelo menos um milhão. Hoje já são menos de 400.000, resultado de uma campanha anticristã que começou com a ocupação americana do país, quando inúmeras igrejas cristãs sofreram ataques a bomba e inúmeros cristãos foram mortos, inclusive por crucificação e decapitação.

Os ataques a uma igreja em Bagdá em 2010, na qual quase 60 fiéis cristãos foram assassinados, foi apenas a ponta de um iceberg que durava uma década.

Agora, com os EUA apoiando a jihad contra o presidente secular sírio Assad, o mesmo padrão teria que chegar à Síria: regiões e cidades inteiras onde cristãos viveram durante séculos antes do islamismo existir agora estão ficando vazias, pois os rebeldes visam os cristãos para sequestros, pilhagens e decapitações, tudo em obediência ao clamor das mesquitas, que dizem à população que é um “dever secreto” expulsar os cristãos.

Em outubro de 2012 o último cristão na cidade de Homs, que tinha uma população cristã de cerca de 80.000 antes da chegada dos jihadistas, foi assassinado.  Uma adolescente síria disse: “Fugimos porque estavam tentando nos matar… porque somos cristãos…  Nossos vizinhos se viraram contra nós. No fim, quando fugimos, fomos pelas sacadas. Sequer ousamos sair na rua em frente à nossa casa”.

No Egito, cerca de 100.000 cristãos coptas fugiram da sua terra natal logo após a “Primavera Árabe”.  Em setembro de 2012, a pequena comunidade cristã de Sinai foi atacada e expulsa por muçulmanos ligados à Al Qaeda, segundo reportagem da Reuters. Mas mesmo antes disso, a Igreja Ortodoxa Copta lamentou os “incidentes frequentes de remoção de coptas das suas casas, por força ou ameaça.

As remoções começaram em Ameriya [62 famílias cristãs expulsas], depois se estenderam para Dahshur [120 famílias cristãs expulsas], e hoje em dia o terror e as ameaças alcançaram os corações e almas de nossas crianças coptas em Sinai”.

Iraque, Síria e Egito são parte do mundo árabe.  Mas mesmo nas nações africanas e europeias com maioria cristã, os cristãos estão fugindo.

Em Mali, depois de um golpe islâmico em 2012, quase 200.000 cristãos fugiram.  De acordo com reportagens, “a Igreja em Mali corre o risco de ser erradicada”, principalmente no norte “onde rebeldes querem estabelecer um estado islâmico independente e expulsar os cristãos… tem havido buscas de casa em casa por cristãos que possam estar escondidos, igrejas e outras propriedades cristãs foram pilhadas ou destruídas, e pessoas são torturadas para revelar parentes cristãos”. Pelo menos um pastor foi decapitado.

Até mesmo na europeia Bósnia cristãos estão fugindo em massa, “em meio a crescente discriminação e islamização”.  Apenas 440.000 católicos permanecem na nação balcânica, metade do número antes da guerra. 

Os problemas citados são típicos: “enquanto dezenas de mesquitas são construídas na capital Bósnia Sarajevo, nenhuma autorização de construção foi dada a igrejas cristãs”. “O tempo está se encurtando enquanto ocorre uma aceleração preocupante no radicalismo”, declarou uma autoridade, que acrescentou que o povo da Bósnia e Herzegovina foi “perseguido por séculos” depois que as forças europeias “não lhes deram apoio na sua luta contra o Império Otomano”.

E a história se repete.

Pode-se citar ainda vários casos:

Na Etiópia, depois que um cristão foi acusado de profanar um Alcorão, milhares de cristãos foram forçados a sair de suas casas quando “extremistas muçulmanos incendiaram cerca de 50 igrejas e dezenas de casas de cristãos”.

Na Costa do Marfim, onde cristãos têm sido literalmente crucificados, os rebeldes islâmicos “massacraram centenas e desalojaram dezenas de milhares” de cristãos.

Na Líbia, os rebeldes islâmicos forçaram várias ordens religiosas cristãs, que ajudavam pessoas doentes e necessitadas no país desde 1921, a fugir.

Para qualquer pessoa que acompanha o problema dos cristãos sob perseguição islâmica, nada disso é surpresa.  Como documentei em meu novo livro "Crucified Again: Exposing Islam’s New War on Christians” (Mais uma Vez Crucificado: Expondo a Nova Guerra do Islamismo Contra os Cristãos), Em todo o mundo islâmico, em nações que não compartilham a mesma raça, língua, cultura ou economia, em nações que têm em comum apenas o islamismo, cristãos estão sendo perseguidos até a extinção. Essa é a verdadeira face do ressurgimento do extremismo islâmico.

-

Fonte: Julio Severo

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A Igreja em face do tempo presente - A. D. Sertillanges


“Deus fez no meio de nós uma obra que, desprendida de qualquer outra causa e só dele dependendo, enche todos os tempos e todos os lugares”17. É nestes termos que Bousset julga poder apresentar aos seus contemporâneos a Igreja eterna. Ele sabe que a Igreja reivindica como fundamento os milagres evangélicos, e que esta manifestação exterior serve como que de selo ao ato do nascimento dela. Mas, depois que esses milagres a fundaram e a sustentaram no seu crescimento, no seu surto de conquista, e na sua resistência aos poderes, ela própria pretende, como manifestação exterior também do mesmo Deus, o mesmo brilho que por ela como por eles se faz reconhecer.
   
Nisso, ela não os suplanta, continua-os, visto como eles já estão nela. Com eles ela revela o divino no homem. Ela é uma síntese de milagres e um milagre a mais.

Propriamente, esse milagre novo consiste na existência entre nós de um organismo social humano-divino e que leva uma vida humano-divina, mostrando portanto Deus em sociedade com o homem e o homem em sociedade com Deus.

Esse organismo, nos seus primórdios, no momento em que todo recém-nascido exerce o mais poderosamente a sua força assimiladora, deslumbra o mundo pagão. A sua unidade, a sua constituição já forte, a evidência do seu fermento intenso, a vida do Espírito nela, brilhavam, e às almas chamadas e predestinadas persuadiam de que a sua pátria ali estava. Como dissemos, isso fez mais para a conversão do mundo do que os milagres particulares relatados nos Atos. Esses “sinais” apagavam-se, de alguma sorte, ante o sinal por excelência.

Hoje em dia, embora o trabalho do Espírito seja menos visível, em compensação são mais visíveis os seus resultados. E a Igreja pretende que esse sinal baste, normalmente, para convencer uma alma atenta e reta. Não nos podemos admirar disto. Se Deus age deveras em cooperação com o homem, e com o homem social, que evolve no visível, isso deve ver-se. Que Deus seja aqui como em toda parte o “Deus oculto” a título de causa invisível em si mesma e que quer ser discreta, isso não impede que fenômenos em que ele desempenha um papel essencial não possam deixar de revelar a sua presença, se já o coração o procura.

É preciso para isso o coração, porque sempre, nas coisas morais, é requerido este ponto de partida, e porque, aliás, sendo a fé uma graça, semente de vida eterna, não se vê que, para se revelar, possa o Bem soberano assim oferecido desprezar as disposições morais de quem se abeira dele. Assente, porém, isto, a convicção deve ser possível, ou melhor, normalmente falando, a negação impossível. “É impossível que os que amam a Deus d e todo o seu coração desconheçam a Igreja, tão evidente é ela”, escreveu Pascal.


A vida divina da Igreja faz-se reconhecer, a quem quer vê-la, pela sua perpetuidade e pelos seus caracteres. A Igreja é a eternidade no tempo, e a eternidade é simultaneamente uma perpetuidade, pois envolve o tempo, e uma superioridade de natureza em relação às nossas durações mutáveis. As durações igualam os seres. Nossas durações, as nossas, são durações fragmentárias e reduzidas às nossas medidas; a duração de Deus é imutável e infinita no seu ser, que é o do próprio Deus. Se, pois, Deus vive deveras com o homem na terra, graças à encarnação continuada e socializada, a vida assim constituída será dotada conjuntamente de uma perpetuidade indefectível e de uma superioridade relativa sempre, visto que o homem faz parte dela, mas suficiente para indicar que o homem, aqui, não está só; que o Autor de seu ser retomou a obra na sua base, para levá-la mais alto.


Perpetuidade, dizemos primeiro. Para quem sabe ver, há aí um fato surpreendente. Pela sua própria definição e pelas suas próprias declarações mil vezes repetidas, a Igreja é obrigada a ser perpétua. Estranha obrigação essa. O profeta que assim se enfeita com o futuro arrisca-se cada hora a ser desmentido. Por isso o adversário, sentindo o lado fraco que contra a instituição e a doutrina uma tal pretensão lhe oferece, apressa-se, ele, a profetizar a morte da Igreja, a declarar iminente essa morte, a mostrá-la, já assente, por assim dizer, nos seus pródomos certos.

A tática é boa. Não há maneira mais segura de arruinar moralmente a Igreja, de que lançar o descrédito sobre toda a sua duração, do que provar –se se provasse – que essa duração terá um termo. Se a Igreja deve morrer, ela nada é. Se a Igreja está não somente no tempo, o que deve ser, porém é súdita do tempo, é que está abandonada ao tempo assim como tudo o mais, e não está suspensa à eternidade. Por outros termos: se a Igreja morrer, se morrer numa data qualquer antes do fim do homem – e o homem, em verdade, não morre-, é que ela é humana somente, é que não é humano-divina, é que não é o que pretende ser, e para encurtar razões, é que não é nada.

Mas a Igreja não se perturba com esse perigo, e já há dois mil anos que escuta calmamente os que a ameaçam dele. Passado tal não seria uma garantia do futuro? Creram-no grandes historiadores, impressionados não somente com o fato, mas com o estado d’alma que o acompanha, com essa prodigiosa certeza por entre tantos reveses, com essa tranquilidade no curso e de períodos históricos movimentados em extremo, diversos e fecundos em surpresas.

Uma tal força psicológica é por si só um fenômeno surpreendente. Um poder tão seguro de si mesmo e do seu futuro, tão decidido no que faz e tão pouco inquieto com as contradições, com os ataques, com os obstáculos, com todas as ciladas que, entretanto, com a sua vasta experiência, ele sabe armadas sob os passos de todas as instituições: é um desafio. Que audácia o pretender assim fazer exceção sozinho!

E, não há dizer, o fato responde; sempre respondeu ao sentimento que a nossa Igreja tem dele, como se esse sentimento houvesse partido do próprio fato. A Igreja circula entre os acontecimentos como o sonâmbulo à beira do telhado. O sonâmbulo não cai, guiado que é por um espírito interior, numa feliz ignorância do perigo que tangencia. Acordai-o, tirai-lhe a sua inconsciente segurança, feita de certeza vital: ele está perdido. Assim a Igreja se perdesse a sua fé. Porém não a pode perder. O seu Espírito interior a um só tempo lhe comunica o sentimento da sua perenidade e lhe dá em toda parte segurança de si.

A Igreja entende sobreviver a tudo o que pretende ser o futuro, e já enterrou muitos dos que lhe meditavam ou aguardavam a perda. Tempestades não lhe têm faltado; mas os tornados no oceano e as tempestades de areia do Saara não afetam a estabilidade da terra. A Igreja esposou a terra; ela é a própria terra encimada pela cruz, a terra viva, santificada por uma Presença invisível, e ela não tem medo. Um dia, a terra morrerá, mais numa apoteose que a Igreja diz sua. Ela não teme esse acontecimento, espera-o. Do lado de cá, profeta de si mesma, projetando o que ela é sobre o que amanhã será, a Igreja diz: O futuro é meu, porque em mim está esse futuro já adquirido com Aquele que o regula. O tempo não me contém; eu, a Igreja, é que contenho o tempo, pelo meu Espírito, seu princípio eterno. Beber na taça do tempo a duração eterna é a sorte de todo aquele que adere a mim e comunga com a minha alma secreta. Muitas coisas me fazem sofrer, mas nenhuma me desconcerta nem me inquieta. A adversidade retempera-me. Um fracasso significa para mim: recomeça; como um êxito significa: prossegue. Por cima da cabeça de meus inimigos e para além dos obstáculos, eu olho uma finalidade visível a mim, mas tão exigente que eu não posso desviar dela meus olhares nem minha marcha. Completar meu Cristo na terra, o Cristo coletivo, a assembleia universal a que ele chamou seu corpo: é esse o meu trabalho. Trabalho de todos os tempos, sem dúvida! E é por isso que eu não morro.

Quer se arrazoe, quer se desarrazoe sobre isso, a força íntima assim manifestada tem algo de único. Supõe, ao que parece, no invisível, fora das nossas durações indecisas e fugazes, uma cumplicidade.

Procura-se a explicação disso num iluminismo feliz da nossa fé, e, por outra parte, em contingências históricas cada uma das quais se presta a explicações naturais. Está bem. Mas o iluminismo da Igreja é muito positivo; a ingenuidade não é coisa dessa avó, que sabe aonde vai, e que impressiona o observador justamente pela certeza imperturbável do que faz.

Explicação indigente é o menos que aqui possa dizer-se. Na verdade, a explicação é nula; por quanto, se a misticidade pode realmente ter seus desvios, a Igreja, que controla a misticidade com um rigor severo, deve ser chamada sobremística, e escapa ao perigo porque deve prevê-lo. Ela não sonha; a sua certeza é serena; é bem em pleno despertar e de posse de toda experiência humana que ela diz: Há em mim algo de sobre-humano; eu, que assisto ou presido a tantas mortes, sei que não morro.

Quanto às contingências históricas, estas existem. Não se trata de negar as causalidades inerentes a uma vida que está na terra, embora não proceda unicamente da terra. Cada um dos casos apresentados por essa extraordinária história é suscetível de explicações que se afiguram suficientes, e que o seriam, tomado à parte esse caso. Mas o que assim se não explica é a repetição indefinida de contigências semelhantes e semelhantemente previstas, de tal modo que a instituição que lhes é objeto possa dizer tranquilamente que elas se repetirão sempre, sem que nada, até agora, desminta.

Difícil é, nestas condições, fugir à observação de Pascal: “E tudo isso se faz pela força que o predissera”. A predição não é muito menos extraordinária que o fato. O fato confirma a predição. Digamos que há aí um só fato ao mesmo tempo espiritual e histórico, profético e efetivo. E segue-se que a explicação da Igreja, quanto à sua perpetuidade, está na própria Igreja. A Igreja é o vivente imortal que seu Cristo predisse ao constituí-la; ela recebeu a imortalidade com o ser, e é por isso que afronta o tempo; é por isso que, por assim dizer, devora os ferozes acontecimentos feitos para devorá-la, e prossegue através de tudo os seus destinos tranquilos. Isso não são hábitos de homem.

Ademais, quando se fala de perpetuidade a respeito de uma sociedade religiosa, não se trata de uma perpetuidade exclusivamente política ou administrativa. Isso seria uma mera conservação de quadros. Para que a Igreja seja verdadeiramente perpétua, é preciso que se conservem, como fazendo parte dela mesma, e sem alteração essencial: o seu pensamento, isto é, o seu dogma; a sua prática, isto é, a sua moral e a sua liturgia; a sua organização, isto é, o seu sacerdócio e os chefes do seu sacerdócio – bispos, representantes dos Doze, Papa, sucessor de Pedro, e lugar-tenente de Cristo. É tudo isso que não deve perecer.

E quantas ocasiões para que isso tenha perecido! Pode-se dizer que tudo é ocasião para isso; porque o histórico se move no acidental. É clássico este adágio: Em história, tudo resulta sempre diversamente do que se previra. De sorte que, se não houvesse aí um princípio interno de indefectibilidade, de continuidade, tudo iria sempre a esmo, quer dizer, ao aniquilamento sem remédio; os dogmas desvanecer-se-iam em opiniões de indivíduos e de grupos (como no protestantismo); a prática moral e os sacramentos, a autoridade e as disciplinas mais essenciais teriam a mesma sorte; nada resistiria dessa contextura imensa, que, ao contrário, idêntica a si mesma vemos atravessar assim os séculos como os azares.

Todas as religiões têm mudado profundamente e têm-se esmigalhado em seitas: a Igreja de Jesus Cristo é fiel à sua tradição unitária, memória onde – sem prejuízo das adaptações que são o sinal da vida e que o serviço exige – se acham consignadas uma vez por todas as confidências de Deus à humanidade e as criações da sua graça.

Bem longe que o tempo deteriore a Igreja, ao contrário, ele lhe traz constantemente materiais novos; aumenta-lhe todos os órgãos e diferencia-os, sem prejudicar a ideia vital. Quem lê hoje S. Paulo reconhece nele a sua fé, a sua regra de vida, a sua prática ritual, o seu sacerdócio, a sua organização essencial; mas que riqueza aumentada! Que adaptação sempre mais perfeita aos problemas novos! Que manifestação obtida para o que o grão continha! Já não é mais o “grão de mostarda”, é verdadeiramente a grande “árvore”.

E, se há crises e atrasos, falhas no funcionamento, não há razão para nos admirarmos; é a parte do homem. Jesus Cristo prometeu Jesus Cristo prometeu à sua Igreja uma duração indefectível; não lhe prometeu uma saúde indefectível; ela tem as suas doenças, “que não levam à morte”. Cabe a nós fazer que ela melhore, pois a saúde, a nossa de fiéis e chefes é que proporciona a dela. Mas não se precisa de nós para que ela viva; ou, pelo menos, se de certa maneira a vida dela depende de nós, o Senhor dos corações aí está para que não falta o “restinho” em que Israel pode subsistir, reserva dos tempos melhores e penhor do triunfo eterno.


Observarei que a vitalidade da Igreja, condição da sua perenidade, é visível hoje mais do que nunca, primeiro porque o seu desenvolvimento interno está mais adiantado, a sua diferenciação aumentada ao mesmo tempo que a sua unidade reforçada (duplo sinal característico do progresso), o seu surfo de penetração no coração das raças desdobrado com vigor novo; mas também porque, por esse mesmo fato e em ração de circunstâncias históricas providenciais, o princípio católico se manifesta mais independente de tudo o que não é ele.

Uma substância reconhece-se melhor quando é isolada. Os concluíos do Império constantiniano, o equilíbrio ofensivo do Sacerdócio e do Império, a aparência de misto político constituído pelo poder temporal, tudo isso pereceu. A Igreja é pura; pode-se ver o que ela é. E que é ela? É isso mesmo: um poder espiritual independente e que, a despeito das aparências superficiais que eu assinalo, sempre o foi. E pensar-se-á que isto não seja nada? Augusto Comte via nisso um fenômeno de primeira grandeza, depois de reconhecer aí uma condição de futuro da sociedade humana. A lua suspensa à noite no céu claro já não nos admira, porém KEPLER, Newton, Laplace ou Poincaré passaram anos a calcular esse equilíbrio delicado, irmão de um sono tranquilo.

A Igreja – tem-se acaso pensado nisto? – é a única sociedade religiosa assim independente que jamais se haja mostrado na humanidade. Não seria isto um prodígio? É um prodígio nisto que uma sociedade espiritualmente independente deve ter em si tudo o que uma autarquia dessa espécie exige para sobreviver, para não se misturar com coisa alguma de dissolvente, para se não deixar absorver por coisa alguma de envolvente ou de insinuante, e assim manter no mundo um poder alheio ao mundo, como seria em física um corpo liberto das forças cósmicas, inacessível às influências que tudo transformam.

As “autarquias econômicas” de que nos falam agora, onde é que se realizam? Unicamente lá onde a natureza proveu a isso, dando ao grupo que a ele aspira tudo o que é preciso à sua vizinhança e sem temor da vizinhança. Se a Igreja pode ser e é uma autarquia espiritual perfeita, é que portanto tem em si, a título independente e garantido contra toda alteração, contra todo desvio, tudo o que uma vida religiosa perpétua e universal comporta. Deve ela poder ir a toda parte sem se misturar em parte alguma; ocupar-se de tudo e influir em tudo sem que nada a contamine; durar sempre sem que à falta de uma condição temporal – entendo entre as que são alheias ao seu próprio funcionamento – possa deixá-la cair. Pese-se um tal requisito.

No curso das idades, acontecimentos não têm faltado para porem à prova essa alta independência e para aboli-la. Ela sempre se mostrou superior a eles. Os poderes têm feito tudo para captar essa força e para escravizá-la; as lutas épicas em razão disso por ela sustentadas são bastante conhecidas: ela tem-se saído delas constantemente vitoriosa. Agora, todos querem tratar com ela; e ela se presta a isso; porque, se ela é independente de todos quanto à sua vida, entende de não ser independente de ninguém quanto à ação; quer dizer que está disposta a uma colaboração universal. Mas, se às vezes os que tratam com a Igreja o fazem no velho espírito de envolvimento de que eu falava, ela tem com que desmanchar e desmancha todos esses ardis terrenos. Aos vorazes, poderá ela abandonar algumas penas de suas asas; mas não interromperá o seu voo.

Em pequenos círculos inteligentes, porém míopes, as pessoas deixam-se levar a dizer que “Musolini meteu no bolso Pio XI”, que “Hitler repete a história”, etc. Isso são palavras pouco sérias. Elevem-se antes esses tais à contemplação deste espetáculo: um soberano sem Estados, investido – por quem? – de um poder ante o qual o universo se inclina, que diz sim, que diz não aos mais poderosos como aos mais pequenos, e que da minúscula “Cidade”, território de teoria, quase irrisório se a irradiação dele não fosse tão solene, marca encontro para o futuro, sobre documentos autênticos, a tantos poderes que a ele não corresponderão.

Quanto durará Mussolini? Quanto Hitler? Quanto os regimes e as combinações políticas que temos sob os olhos?* não sei; mas o Papa aí estava de tal forma antes deles, que, sem se arriscar, pode-se dizer que aí estará depois deles e depois dos que lhe aguardam a herança. Todas essas sortes de poderes têm passado, estendendo a mão a Pedro para engodá-lo, para utilizá-lo; eles têm passado, e Pedro fica. Há aí um princípio de vida, sem dúvida, e no entanto cumpriria dizer qual.


A independência, que é um indício de força e, nas condições em que a Igreja a manifesta, de força propriamente sobre-humana, essa independência poderia conceber-se sem ação conquistadora? Vimos essa ação nos seus primórdios; foi fulminante. É normal que hoje em dia o seja menos, e sabemos o motivo; porém ela é mais evidente do que nunca. O reflorescimento missionário é mesmo assinalado, na ora atual, por um caráter extremamente impressionante e por um grande alcance de futuro: entendo a sua catolicidade intrínseca, se assim posso dizer, pelo acesso de todas as raças de homens ao sacerdócio e ao episcopado católicos, até aqui mais ou menos reservados, não de direito, por certo, mas de fato, só à raça branca.

No interior dos nossos grupos cristãos, a multiplicação das obras católicas deixar-nos-ia estupefatos, se soubéssemos ver. Poderíamos nós supor o menor começo delas, ou mesmo o antegozo, se não fora a Igreja? Não entendo dizer que a Igreja faça tudo; às vezes faz-se melhor do que ela; mas foi ela quem lançou tudo; o que ela mesma não faz, procede dela quanto à origem primeira e quanto às influências que sofre: emulação, concursos, exemplos.

Diversas tanto quanto as necessidades espirituais e temporais do homem, diversas tanto quanto a vida, a que é que se podem comparar as obras de criação ou de inspiração católica? Noutras partes há reflexos delas: da Igreja vem a luz. Há migalhas esparsas: nela está o pão.

Por certo! Muito mais haveria ainda por fazer do que o que a Igreja faz. Somos impacientes, e mui sinceramente podemos ficar impressionados com as lentidões seculares da Igreja mais do que com a sua ação secular. Mas, além de, aqui, intervirem as liberdades, e os acontecimentos, e os meios resistentes, não nos deveríamos precatar contra uma confusão dos valores e das escalas que os medem? Não é no absoluto, é comparativamente que convém julgar, quando se pede à experiência a resposta a esta pergunta: a Igreja é da mesma natureza que as outras potências deste mundo, ou de natureza superior?

No absoluto, tudo é lento daquilo que se move através do humano. O próprio Deus deve evitar os métodos “catastróficos”, inimigos da sua sabedoria, que é “número, peso e medida”. A Igreja, agente da Providência, e bem decidida a com ela se manter em contato, a não precedê-la, procura nos fatos passo a passo seguidos os vestígios de seu Deus, e é assim que ela marcha. A gente apressada censura-lhe isso: mas a gente apressada é a mais apta a perder o tempo que a gente calma utiliza em toda a extensão. A Igreja realiza milagres de atividade precisamente porque não se apressa, não compromete nada, nunca se obriga ao recuo, olha longe e sem impaciência no sentido do futuro; em suma, porque conduz a ação temporal num espírito superior ao tempo.


Falar-nos-ão de tantas misérias na Igreja? Consinto, contanto que se acrescente: e tanta santidade. Pode-se desconhecer a força santificante e purificadora da Igreja sob suas duas formas essenciais: a forma mística e a forma educativa ou moral?

Misticamente, a vida sacramental sublima, purifica e arrasta à obra boa uma multidão de corações. Cristo tem um império ao qual nem de longe qualquer império deste mundo pode ousar comparar-se. A despeito da carne, do mundo e de Satanás, três potências adversas. Ele obtém de seus fiéis efeitos de virtude e de ação espiritual que os meios antecristãos ou não cristãos não podem pensar em conhecer; ou, se a eles chegam, devem-no ainda a Ele pelos caminhos desviados que havemos descrito.

Mesmo onde quer que a lei cedeu, aquilo que subsiste de vida sacramental: batismos, primeiras comunhões, casamentos, ritos funerários, cerimônias públicas e privadas, ainda conserva uma armadura tal qual a uma civilização indecisa; o futuro aí está em expectativa, e bem longe que só haja nisso um legado do passado. Muito errados andaríamos em subestimar esses “restos”.

Moralizadora, a Igreja o é em nome do céu e em vista do céu; mas o terreno de onde se alça o voo para o céu é a terra. O Reino de Deus é temporal, dizíamos, precisamente porque é eterno. Por isso a Igreja é uma educadora de atenção sempre vigilante, e de psicologia admirável, de experiência consumada, utilizando todos os recursos da alma e da vida, envolvendo esta toda, como se, gerado por ela, o cristão nunca acabasse de nascer, e lhe vivesse no amplo seio.

Um dos mais altos e dos mais preciosos caracteres da Igreja, como educadora, é a sua arte de tirar o bem do mal. Ela reergue o pecador e não o desanima; sem pactuar, longe disto! Ela sabe compadecer-se e compreender. Salva e utiliza assim uma multidão de valores que uma sociedade sem alma abandona às forças do mal, e depois rejeita.

Quem dirá o de que assim se privam grupos talvez muito apressados em denegrir e em combater neste ponto a vida católica! Os grandes pecadores que se tornaram santos, e obras como Betânia, o Bom Pastor, ou Nossa Senhora da Caridade, ou as simples capelanias de prisões, sem falar de tantos outros sinais, deveriam no entanto fazer refletir. A Igreja faz beleza com as fealdades, e com a força revirada das paixões faz energias puras. Pedro, sobre o Lago, pede a Jesus para afastar-se dele porque ele é um pecador; mas a Toda-Pureza não tem destes pudores hipócritas; ela só se afasta convidando, como uma mãe diante do filho que tropeça, e todo o surto do arrependimento chama o homem para sobre o coração dela.


Não se quer que a santidade, que o poder santificador da Igreja prove a sua divindade, porque, primeiro, ao gosto do censor não há bastante bem nela, e há demasiado mal. Objeção tal não surpreende; fá-la muitas vezes a si mesmo o crente, e grande necessidade tem então de se lembrar da advertência de seu Senhor: “Bem aventurado aquele que se não escandalizar de mim” (Mt XI, 6). Mas no fundo desta dificuldade, como de muitas outras, há simplesmente isto: Exige-se que a Igreja seja humana ou divina, à escolha; não se quer que ela seja o que é; humana e divina, conjuntamente, com todas as consequências. Se uma vez se consente nesta última situação, compreende-se que, pela sua divindade, deve haver na Igreja grandes efeitos de Graça, e bem cego quem os não vê; mas, pela sua humanidade, deve ela oferecer também todas as misérias humanas, digo todas, visto haver nela todo o homem.

Quanto mais humanidade há na Igreja, tanto mais divindade deve nela haver para que ela sequer subsista; porém, quanto mais divindade há, isto é, sabedoria, respeito do homem, cuidado de deixar à obra um cunho de livre esforço e de responsabilidade, tanto mais imperfeições e taras devem nela encontrar-se.

Sem dúvida, poderia acontecer que esta última condição, a só olhar a ela, abolisse a primeira, e que de alguma sorte o humano afastasse a Deus. Mas isto é uma suposição inteiramente gratuita. A malícia do homem não iguala o poder de Deus. A Igreja tem em si, quando preciso, com que se reformar de dentro, mediante reconcentração do seu Espírito em individualidades que bem se devem chamar providenciais, embora em aparência nascidas do acaso, já que, à maneira da providência eterna, surgem sempre. Sempre o acaso, isto não será a providência?

Quanto a recusar a hipótese, exigindo o divino puro, sob pena de absolutamente não mais ver a Deus, isto é ditar a Deus o seu proceder. Melhor é, sem dúvida, fazer por dentro este gesto simplíssimo, a bem dizer profundíssimo e por isto quase heroico, de se inclinar perante Deus. Então, a objeção se esvai.

Pode ela, é verdade, dar lugar a outra. A santidade, na Igreja, não provaria a sua divindade, porque tudo o que se vê é explicável pelo homem. Mas na realidade, como observava Santo Agostinho, é mais difícil fazer um santo ou converter um pecador do que ressuscitar um morto, o que não é obra de homem. A despeito da audácia de uma tal fórmula, pode-se dizer que é tão difícil fazer um santo como fazer um Deus: um raio de sol ou um sol não são obra semelhante? É ao contato de Deus e do homem que a santidade jorra; reconhece-o um puro filósofo, como Bergson, e é esse, reconhece-o ele mais ou menos também, um dom especial da Igreja. A conclusão está bem próxima.

A santidade da Igreja é divindade latente. Brilha em certos pontos, em certas vidas, brilha amplamente, embora menos sensivelmente para a desatenção, no funcionamento geral da obra. Santidade concentrada ou santidade difusa, santidade brilhante ou humilde santidade, é sempre Deus que aflora, esse Deus que a humanidade procurava, que o seu capricho fabricava, e que um dia irrompeu nela mesma. Perguntava Santo Agostinho: “Que vale Juno em face de uma velhinha que é uma fiel cristã?”. Não é preciso mais do que estar atento a tudo isso para vê-lo; mas é preciso olhá-lo com os olhos da alma, e não com o espírito só.

Tendo-o reconhecido, e tendo-se capacitado de que, para a Igreja, fazer cristãos quer dizer humanos completos, em Deus, e juntos, bem pronto se está para confessar que a Igreja e a civilização são solidárias, de tal sorte que o milagre religioso vem aqui ao encontro do fato humano e nele se reforça.

Não se ignora, conquanto às vezes se goste de esquecer ou se esqueça por inadvertência, o que a Igreja fez no passado. Nenhum historiador recusaria dizer que ela, a Madre Igreja, foi quem carregou nos joelhos a civilização moderna. Mas o que ela fez no passado, está armada para fazê-lo muito mais ainda, desenvolvida como jamais o foi; rica de funções, de pessoal e de obras: capaz de atingir, de alto a baixo da escala dos espíritos, das situações sociais e das almas, todos os elementos humanos em busca de progresso e de felicidade.

O gênio moral que habita a Igreja é o fermento animador e o sal conservador das civilizações. O sentido da vida, as leis do indivíduo, da família, dos grupos profissionais e especialistas de qualquer especialidade, da sociedade nacional e internacional, com todos os seus meios psicológicos e místicos, no terreno moral, fazem parte do seu depósito. Ela nos ajuda a adaptá-los às circunstâncias diversas. A sua ciência moral é uma consequência do seu dogma, e a sua maternidade goza do dom de conselho.

“Alma das nações”, como dizem os Papas da Idade Média, ela pode fornecer aos nossos grupos, no espiritual, todas as suas normas de ação e todas as impulsões que os guiam. Ela consolida o reinado das leis, fazendo-as partir da Razão divina e ir ter aos seus juízos; humaniza-as banhando a justiça no amor. Aos fatos de autoridade ela dá por princípio a autoridade serviço público da parte de Deus; aos fatos de subordinação dá a obediência ao poder como a Deus; aos fatos individuais que preparam a matéria social dá a vida depósito divino e atividade em marcha para Deus. Estão aí bases firmes.

A construção poderá em seguida inspirar-se nas largas vistas de governo que são as da Igreja. A Igreja é eminentemente democrática quanto à definição e à apreciação dos seus valores sociais; canoniza os santos e não os chefes, os humildes virtuosos e não os fortes. É, entretanto, aristocrática pelas suas Igrejas particulares que os bispos governam, e é monárquica em razão de Cristo e da sua representação visível, o Papa. Pode assim dar modelos de governo a todos os Estados, como lhes dita seus fins supremos.

O sentido social é nela tão forte que o cidadão, comungando na sua larga vida, hauriria nela um espírito cívico em harmonia com o que seria então a sua vida espiritual. Numa grande cidade de que a gente gosta, a gente se sente confirmado a um tempo no seu sentimento social e na sua personalidade; oceano e remeiro harmonizam-se; no seio da Igreja universal animada de caridade e agrupada em torno de Cristo, cada um se tranquiliza na sua própria força e na força coletiva; é um em si e um com todos; sente a humanidade dentro e fora, com Deus em toda parte.

Como então, em particular, a eucaristia, que é como que a encarnação de Cristo em todos nós, poderia não nos unir? Grande é a inconsciência humana; todavia, não se podem negar os vastos efeitos desse sacramento no conjunto das sociedades cristãs. Não seria preciso mais do que fidelidade para reforçar essa ação e combater o esfacelamento, os antagonismos criados no corpo social pelo choque dos sentimentos e dos interesses, privados dos seus limites e do seu freio. É certamente no dogma, na moral e no culto católicos que o acionamento desse freio e o sentido desses limites são incomparavelmente mais bem assegurados.

Afirmando o Deus vivo, e pondo-nos com ele em vida comum; reintegrando-o, se assim posso dizer, em todas as suas funções, em relação a tantas religiões e filosofias que o dissolvem – Deus criador, Deus legislador, Deus providência, Deus justo e remunerador, Deus amor, - o catolicismo está em força para estabelecer a criatura na sua consciência e na sua solidez interior, nas suas atividades autênticas e nas suas relações verdadeiras. É o fundamento da vida que doravante é firme.

Trata-se da vida internacional, que a civilização deve considerar hoje em dia como por assim dizer idêntica a si mesma? A Igreja é competente pra isso tanto em relação ao princípio como do ponto de vista dos meios de realização. Pode-se dizer que, aos olhos da Igreja, a sociedade internacional é o fim dos Estados, a título de síntese humana em Deus e em Jesus Cristo, na razão que nos liga e no destino sobrenatural que são agora obra dos melhores! Penetre em toda parte e impregne tudo a cidade cristã, “alma das nações”, e a cidade universal está feita.

A comunidade internacional é para a Igreja um fim, pela boa razão de que é um começo, e de que sempre os princípios e os fins se correspondem. É da comunhão dos homens em Deus e em Cristo que tudo parte na vida católica. Se tudo parte disso no empreendimento e na intenção, a isso não deve tudo chegar na execução? Unidade espiritual, unidade moral, unidade jurídica, unidade política sob uma forma qualquer: pode isto dissociar-se sempre? Abordando o homem na sua unidade, o homem total, a Igreja ao pode deixar de querer a livre realização, pelo homem, do cosmos humano, como pela sua providência Deus realiza o cosmos universal.

O grande obstáculo à união dos povos está, de um lado, na materialização das almas, que multiplica as competições pela partilha das riquezas deste mundo, e, de outro, nos desvios do próprio ideal, que muitíssimas vezes se extravia, ou se particulariza, ou se exacerba. O exemplo das guerras de religião ou de prestígio aí está para nos mostrar que o idealismo nem sempre trabalha pela paz. Talvez que a catolicidade tenha aqui censuras a se fazer. Porém, fiel ao seu princípio de justiça e de amor, elevando e unificando ao mesmo tempo os homens, como a gente se aproxima em galgando um píncaro, a Igreja tem tudo o que é preciso para preparar o futuro do verdadeiro gênero humano, da sociedade humana definitiva.


Em suma, a Igreja em toda parte faz dominar o espírito, e, por via de consequência, a unidade de espírito, ligando-nos ao Espírito supremo.  Ora, é uma verdade essencial, por demais desconhecida das nossas febres “soi-disant” realizadoras, que todo trabalho civilizador tem origem no espírito. As simples técnicas, sabemos o que delas se faz; elas dão força à barbaria tanto quanto aos valores humanos. Das nossas multidões materializadas tendem elas a fazer uma massa de indivíduos que, espiritualmente, já não são pessoas. A Igreja desejaria fazer deles pessoas sagradas, de boa mente diria com Bergson: deuses.


E não é essa uma razão para que ela despreze as técnicas. Nunca a ouviremos maldizer das invenções, das organizações, das máquinas, dos processos e dos engenhos quase milagrosos que, pelo contrário, ela gosta de glorificar benzendo-os. Porém ela sabe e repete que todos esses valores, servos do espírito, e do espírito santificado, não o substituem; os efeitos deles dependem deste mais do que deles mesmos; pois sem ele, através da ruína do homem, eles só redundam no nada de si. Dividem o indivíduo de si mesmo corrompendo-o; dividem-no de outrem pela inveja, mesmo quando já não é pela necessidade.

Não se diga, pois, que por sua missão a Igreja, suposto que faça um trabalho útil, só o destine à salvação eterna. É verdade que a Igreja tem este escopo e não tem segredos para a organização deste mundo; mas a organização deste mundo depende dela porque depende dos homens, e, nos homens, depende justamente dessas virtudes, desses valores morais que os devem conduzir à salvação eterna.

“As coisas que vemos não foram feitas de coisas que se veem”, diz a Epístola aos Hebreus (XI, 3). A civilização visível tem fontes invisíveis; reside nos corações; a forma dos nossos pensamentos, dos nossos desejos, das nossas ações individuais, das nossas relações, das nossas reações mútuas em todas as ordens e em todos os cenários será a forma dela. A Igreja, que age sobre tudo isso na medida em que se lhe é fiel, trabalha em tudo, se bem que por si mesma se mantenha fora dos nossos trabalhos. Ela é a eternidade no tempo, dizemos nós incessantemente, a eternidade que anima o tempo, sem que a meçam os nossos relógios.

Nos nossos dias de perturbação e de progressos materiais em tão violento contraste, não é inútil relembrar estas coisas. O mundo moderno é um instrumento admirável, mas desafinado; os sons individuais persistem belos e possantes, porém a música peca.

Muitos não veem a cauã dos nossos males e atribuem-na a algum erro de método ou de organização. Pelam para os peritos, e muitas vezes estes procuram simplesmente meios para favorecer e exasperar a loucura dos homens. Sem dúvida há em nós defeitos de organização, defeitos de método; mas por detrás disso, e pela razão mesmo de haver isso, há outra coisa. Há os apetites desencadeados, uma febre absurda de vida a toda velocidade, como de quem se persuade de ter apenas um curto instante para gozar. Há os nossos laços afrouxados pela ausência das virtudes sociais: justiça, amor, que por sua vez dependem das nossas virtudes individuais.

Tornando-nos bons, nós nos tornamos um bem de todos; a solidariedade, que se estabelece pela boa vontade mútua, não é então uma cadeia de elos ocos, assume valor ao mesmo tempo que coerência. De nada serve estar ligado a outrem se nada lhe trazer de benéfico! – talvez infligindo-lhes taras! – nem amar o próximo como a si mesmo, tal como o quer o Evangelho, se nada se tem de si que amar.

Abdicação ou absurda presunção, isto é, abdicação retardada e cataclisma: tal é a alternativa imposta a um mundo que recusa as leis da vida e que, por uma extensão que o fato consagra tanto quanto a fé atesta, recusa as suas próprias leis sobrenaturais.

A medida que o sentimento de Deus e o sentimento da nossa unidade espiritual em Deus, tal como a concebe e a organiza Igreja, se vai enfraquecendo, vê-se proporcionalmente baixar o sentimento dos homens da unidade interior e da comunidade moral. Não há mais, dentro e fora, senão forças esparsas ou bloqueadas para fins utilitários. Não há mais senão funções.

É em Deus criador que se acham originariamente a ideia do homem, a ideia da humanidade, a ideia do universo, território e matéria de civilizações: é aí que cumpre reencontrá-las, e o caminho normal dessa ascensão, desse retorno espiritual, é a Igreja. O olhar para a matéria vem depois. O estatuário pensa em bloco; mas pensa primeiro na forma de arte da estátua e na forma do monumento que ele decora.

É por isso que Cristo homem, iniciador e chefe permanente da Igreja, Cristo na sua pessoa e na doutrina que a exprime propondo-a, é o ponto de partida ideal da civilização; a sua perfeição domina-a toda desde as mais antigas idades; ela é sua regra também para o futuro. Graças ao Homem-Deus, a Igreja casa em si o ideal e o real, o terrestre e o celeste. Obriga segundo Deus e convida segundo o homem, cuja imagem autêntica apresenta; é assim inspiradora perfeita do trabalho humano, e o seu socorro mais eficaz. É preciso céu e terra para a germinação do que quer que seja, planta ou homem.

Por seu turno, esses espelhos vivos de Cristo que se chamam os santos são, em nome dele, modelos e agentes de civilização que se não deveriam desconhecer. Que não deve a humanidade a homens como S. Paulo, Santo Agostinho, S. Bernardo, S. Francisco e S. Domingos, Santo Inácio e S. João Batista de La Salle, S. Francisco de Sales e S. Vicente de Paulo?  O que eles trazem nem sempre é brilhante e mensurável a título imediato; mas é um trabalho de fonte, e na medida em que a fonte lhes recebe a mensagem, torna-se, por igualdade de valor inato ou técnico, um elemento de verdadeira civilização.

Os chefes de estado que foram santos, como S. Luís, ou chefes militares como Sonis, como Foch, filósofos como Alberto Magno e S. Tomás de Aquino, artistas como Haydb, sábios como Linné ou Newton, não foram sublimados, em igualdade de gênio ou de poder, pela sua fé ativa e pela retidão da sua vida? Assim, generalizando, uma sociedade cristã é sublimada em todos os seus valores de civilização temporal, além da salvaguarda proporcionada ao que constituía esse fundo.

Felizmente, resta-nos muito daquilo que a Igreja verteu nas almas de nossos pais. A nossa civilização é um lençol d’água cuja superfície mostra uma triste escuma que terá sempre suas camadas inferiores; mas entre as duas, circula uma corrente pura e forte, formada das altas consciências cristãs e dos herdeiros, talvez inconscientes, do passado cristão.

É por isso que não há razão alguma para desesperar; mas é preciso despertar os dorminhocos e reconduzir os transviados, para que o milagre de Deus no meio de nós não seja vão, justamente no momento em que a sua oportunidade e as suas possibilidades de manifestação mais se patenteiam.

Quanto mais a humanidade dura, tanto mais necessidade tem daquilo que lhe permite tomar valor, começando por se desprender de si mesma. Quanto mais tempo há, tanto mais empréstimos à eternidade se fazem mister; quanto mais humanidade há, tanto mais divindade se torna mais necessária hoje do que nunca. Cumpre que ela nos batize, se não somos batizados, que nos confirme, nos faça comungar juntos e com Deus, nos ordene, nos perdoe também, nos case de um casamento puro e fecundo com a natureza santificada, e, se preciso, visto que as nações e as civilizações morrem, nos unja antes da paz do túmulo e da vinda a lume dos séculos novos..

Mas também, sempre mais necessário, a Igreja está sempre mais disponível. Ela é forte; pode carregar as desventuras do mundo e suas culpas, tanto quanto as suas virtudes e as suas venturas.


Quer se queira quer não, deve-se pois convir que as suas afirmações relativas a si mesma são justificadas; ela é “o estandarte levantado sobre as nações” de que fala o Concílio de Trento, e pelo qual a construção divina se reconhece. Só o dogma da Igreja explica o fato da Igreja. Fora isso, não há explicação pertinente. A gente dos primeiros séculos estava segura disso. Quando sucede duvidarmos disso, é que nossos olhos estão menos frescos. Deus queira que acontecimentos mais graves não nos refresque, mostrando-nos tragicamente aquilo que nos falta depois que acreditáramos tê-lo. Nossos pais, mais humildes, compreendiam que não o tinham.

   


17 – Bousset, Oração fúnebre de Ana de Gonzaga.
* - Pergunta que foi formulada ao tempo em que foi escrito este livro. A resposta, ao tempo em que aparece esta tradução, já está dada pelo desfecho da grande guerra. (Nota do Tradutor).

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A Igreja em face dos césares - A. D. Sertillanges


A Igreja em face dos séculos antigos para se prender neles, em face de si mesma para se constituir, em face do seu meio natural para nele se apoiar, para se distinguir dele na medida necessária e com isso conquistá-lo: tal é a visão de que até aqui penetramos os nossos olhares.

A que reservávamos para sob este título: A Igreja em face dos Césares, deve mostrar-nos a obra de Cristo em luta com as potências deste mundo de que ela mais poderia ter que temer, se algo de sobre-humano não estivesse nela, prontinho a medir-se com o humano levado ao máximo – e armado – representado por esta palavra tradicional: César. Insistindo sobre o sentido ampliado, e de alguma sorte simbólico, deste termo, poder-se-ia dizer: a Igreja não esperou estar em face dos Césares para experimentar César. Um César domestico faz-se ver apressado, desde o tempo de Jerusalém, a zombar da familiazinha heroica, depois de lhe haver matado o Mestre.

A Paixão foi antes de tudo um crime judeu; o Império só indiretamente tomou parte nela, trazendo-lhe uma cumplicidade administrativa, se assim posso dizer, cobrindo com sua assinatura uma sentença imposta por outros. A Paixão continua sob as mesmas responsabilidades enquanto o judaísmo continua sendo a moldura política do cristianismo nascente. Nascida na cruz do Rei dos Judeus, a Igreja aí fica. Predisse-o o Salvador: “O servo não está acima do amo”. “Se eles assim trataram a lenha verde, que farão da lenha seca?” (Jo XIII, 16; Lc XXIII, 31).

Sob Herodes Antipas, João Batista e Jesus pereceram. Sob Agripa Iº, Estevão, Tiago, filho de Zebedeu, e Tiago, o irmão do Senhor, perecem por sua vez. Outros são flagelados. No ano 34 aproximadamente, a perseguição é bastante forte para dispersar o rebanho – que, como vimos, aproveita isso para enxamear, especialmente em Antioquia.

As razões da atitude adotada pelo sinédrio para com a seita nova não são todas elas religiosas, nem judias. A política romana já entra aí por alguma coisa. Acaso Caifás não disse, perfidamente é certo, mas apoiado em aparências plausíveis: “É melhor que morra um homem do que todo o povo?”. Desde esse momento, pois, temiam-se dificuldades da parte dos Romanos. A sinceridade religiosa e a independência ardente dos discípulos de Cristo fazem deles uns perturbadores, ao olhos de uma administração já sobrecarregada de querelas e maçada com as combinazioni judaicas.

Quando, pelo fim do século I, o êxodo da Igreja for consumado, Jerusalém destruída e todo poder político de Israel abolido, as pequenas dificuldades locais cederão à grande tormenta cujas causas temos de dizer.


Em principio, entre os Antigos, o homem que pratica uma religião diversa da do seu país está em situação daquele que se põe a serviço dum exército estrangeiro ou que muda de pátria. Mas a fusão dos Estados ou suas combinações políticas, por meio do direito de cidade diversamente praticado, leva a compor, em religião como em tudo o mais. Estabelece-se uma larga tolerância, que não é um progresso religioso, que é um ceticismo disfarçado nos dirigentes e uma superstição agravada nos outros. Os que creem na pluralidade dos deuses não se incomodam com a existência de mais alguns. Desde que o interesse e o instinto social se acham postos a coberto, a introdução de divindades novas excita apenas uma curiosidade benévola, ou um sorriso indiferente, ou um vago temor reverencial.

Num sistema mitológico complicado, em que os censos são sempre provisórios, há sempre uma porta aberta; ninguém se admira de ver passarem a ele divindades novas – que aliás muitíssimas vezes só são novas de nome. Que importa seja Deméter chamada Ísis pelos Egípcios e introduzida em Roma sob esse vocábulo estrangeiro, como uma filha que volta a habitar na casa dos pais depois do casamento?

Os judeus e os cristãos têm princípios inteiramente outros e estados de espírito inteiramente diversos. Aos olhos deles, a Divindade não é um patrimônio nacional, nem tão pouco – menos ainda – uma confederação indeterminada em número e em forma. O Deus deles é Deus; os outros são meros demônios ou sonhos, cujo culto é pura impiedade e puerilidade, excitando sucessivamente ou ao mesmo tempo a risota e a indignação virtuosa.

Compreende-se a reação hostil que tais concepções devem provocar, e a solidariedade que deve estabelecer-se entre os cultos pagãos mais divididos, quando se trata de troçar semelhante intolerância. Plínio e Tácito chamam os judeus uma raça célebre pelo seu desprezo dos deuses, e que considera como profano tudo o que os outros têm como sagrado14. Em regime pagão, e dada a confusão permanente do espiritual com o temporal, isso quase não se perdoa.

Todavia, acha-se jeito de arranjar-se finalmente com os judeus. A não ser que se tornem cidadãos romanos, caso em que as dificuldades sobrevém e se resolvem de diversas maneiras assaz arbitrárias, eles beneficiam da tolerância geral. As perseguições consistem pra eles, as mais das vezes, em imposições de tributo. O dinheiro é o preço da sua liberdade. Tudo se compra junto a gente para quem o espiritual é antes de tudo negócio temporal, negócio de Estado. A irreligião só é perseguida a título de anarquia: já não se é anarquista quando se paga para a administração da ordem. Os judeus tornam-se excelentes servidores de Júpiter Capitolino, desviando em proveito dele o didracma que os Ben-Israel pagavam ao Templo antes da destruição do santuário. Vespasiano, em todo o caso, assim decide.

Mas o cristianismo não é por muito tempo confundido com sua mãe, a sinagoga. Mãe desnaturada, esta retoma muitas vezes à sua conta o papel de Judas. Interesseira, odienta, ela não quer ligar a sua sorte política à de gente que a abandona cada vez mais, que goza dos seus privilégios e a compromete pelos seus excessos de zelo. Sucede serem judeus os primeiros a denunciar os cristãos às autoridades romanas.

Isso não é muito necessário. Para desvantagem deles, cedo se discerne gente tão extraordinária como esses cristãos. O seu gênero de vida separado, intenso e tão oposto ao século, expõe-nos às represálias de sentimentos melindrados e de malevolências exacerbadas por toda sorte de interesses comprometidos. Toquei neste último ponto a propósito das conquistas da Igreja.

Calúnias atrozes circulam. Os ritos mais sagrados, que se julga bom manter secretos por prudência, tornam-se por esse fato ocasião de acusações infames. Os ágapes noturnos são convertidos em saturnais capazes de fazer corar as saturnais; a eucaristia vira antropofagia: é uma criança que degolam para comerem.

Essas invenções odiosas e tolas acham crédito junto às massas como nos nossos dias o anticlericalismo. Deus sabe o que se chega a fazer engolir, mesmo alhures! Conheci um astrônomo persuadido da existência de uma comunicação subterrânea entre um convento de homens e um convento de mulheres, em seu país. Haviam-lhe dito isso. Sem dúvida haviam colhido isso nos astros. Gente mui grave, como Tácito, como Suetônio, são os astrônomos daquele tempo15. Consideram os cristãos como dignos de todos os castigos, por motivo político sem dúvida alguma, mas também por causa de vícios privados acreditados sobre a autoridade dos dizem. O dicuntur e o ferunt dos Romanos não têm menos poder do que os nossos parece, dizem.

Essas calúnias são bastante espalhadas para que S. Justino diga que consagra a sua apologia “àqueles a quem o gênero humano inteiro odeia e persegue”. O gênero humano é o mundo romanizado que eu descrevi, e é certo que nossos primeiros pais, com suas ideias tão diferentes em tudo, tão definidas, tão nobremente intransigentes, devem fazer aí uma figura difícil de olhar a sangue-frio. Ou as pessoas se rendem, ou se opõem, o que quer dizer que ou são hostis ou são odiadas, sem matizes intermediários.

Pensai que a vida social, impregnada de paganismo, é quase impossível aos fiéis. Viver é apostatar: não há senão esquivar-se ou morrer – a não ser que se vença. Os nascimentos, os casamentos, as festas de família, os atos da vida agrícola: semeaduras, colheitas, vindimas, tudo, na ordem privada, serve de pretexto a atos religiosos: libações, incenso oferecido aos deuses ou banquetes mais ou menos rituais. Quando vos convidam à sua mesa, num dia de festa, escrevem-vos, como achamos num papiro do século II: Tomai lugar “à mesa do Senhor Serápis, a 16 do mês”.

Caráter semelhante têm os divertimentos populares. As instituições civis e militares supõem juramentos religiosos; as funções inauguram-se ou correm risco de inaugurar-se de maneira ritual. Recusar-se a tudo isso, é irritar o gênero humano em grau verdadeiramente insuportável.

E a misantropia complica-se aqui de rebelião, visto como, ao mesmo tempo que se recusam as ações cotidianas, recusa-se a participação nos serviços públicos, que têm o caráter de um dever. Todos os cultos cedem ante a vida romana; todos com ela se acomodam fácil ou respeitosamente; só o cristianismo se enrija: convida a que o quebrem.

Por outro lado, a sobriedade das suas crenças faz os cristãos passarem como racionalistas aos olhos de pessoas que porfiam em complicar e em subtilizar. A ideia nítida que eles têm o Deus uno fá-los passar por ímpios – como Sócrates, - nisto que o Deus que eles adoram só parece definir-se pela  negação dos outros. Afirmar uma coisa sobre mil não é, “grosso modo”, negar tudo? Desprezar o panteão inteiro, salvo um Deus, é uma impiedade manifesta. É bem ruim o caso dos cristãos.

É tão ruim o caso deles, que eles são acusados de maneira a não acharem saída senão para o túmulo. A tolerância romana, tão ampla, tão universal até então, chega a dizer: sede tudo que quiserdes, menos cristãos.


A partir de que época o cristianismo é considerado juridicamente como religio illicita, não se sabe bem. Isso pode ser muito cedo. Em todo caso, no tempo de Tarjano (98-117) a questão não se presta mais a dúvida. O simples fato de ser cristão basta ao juiz. Não há necessidade de articular outra acusação. Magia, incesto, infanticídio, lesa-majestade ou sacrilégio, todas estas imputações absurdas ou atrozes com que o povo os agrava já não têm mais que se justificar no pretório. “Que é que recitais nas vossas tabuinhas? Clama os juízes o veemente Tertuliano. Fulano, cristão? E por que também não: e homicida?” Poder-se-lhe-ia responder: é inútil; os cristãos, como tais, estão fora da lei do Estado, lei que é religiosa ao mesmo tempo que política, porque é política.

Isso não é de admirar. E será abusivo? Sim, evidentemente, em si, visto que se persegue a verdade. Ao invés de sacrificar o cristianismo a um dogma social inferior, a atitude correta seria escutar, convencer-se, visto haver de quê, e render-se. Mas isso de maneira alguma prova que tal magistrado, tal imperador não possa estar, ele “subjetivamente”, muito em regra com a sua consciência.

O cristianismo instaura uma revolução: deve esperar pela sorte dos revolucionários, isto é, pela oposição não somente das pessoas mal intencionadas, mas também dos homens de ordem no sentido estrito do termo, dos conservadores e dos sectários políticos que ele não tiver conseguido imediatamente converter. Quando os homens de ordem são Nero ou Domiciano, devem-se ver coisas piores!

Coisa surpreendente: é sob um sapientíssimo imperador, Marco Aurélio, que os tempos se tornam os mais duros para o cristianismo. As cenas horríveis e gloriosas dos mártires de Lião, as de Cartago, datam do fim desse reinado. Há para isso razões gerais e razões locais; porém os preconceitos do Imperador, tanto mais inextirpáveis quanto são refletidos, a recusa de examinar os fatos, pois a teoria acalma a consciência, a aplicação cega das leis do império, devem entregar os cristãos, sob esse imperador, aos rigores de uma serenidade sem entranhas. Só depois desse alto filósofo, e, ó ironia! Sob um dos imperadores mais odiosos que Roma teve, Cômodo, é que a tranquilidade volta.

Para compreender isso, importa obervar que, a respeito de semelhante problema, os imperadores não são tudo. Um imperador nunca é tudo. Mesmo um Estado centralizado ao máximo, a centralização só relativa pode ser. Entre nós, a sorte do pequeno editor ou do funcionário não depende tanto do governo como do prefeito, dos “comitês” locais, do deputado, até mesmo de um intrigante sem mandato. A política local pesa sobre o indivíduo mais do que a política geral do Estado, e o tirante é mais de temer do que o tirano.

Quando há contra vós, notadamente, isso a que se chama “as leis existentes”, nunca estais em segurança, porquanto, tivesse o poder central intenção de deixar dormir o instrumento de suplício, desde o momento que ele não pode ou não quer suprimi-lo, a gente se arrisca sempre a ver o cutelo desprender-se, mesmo quando a mão dele permanece inerte.

Portanto, mesmo com bons imperadores, os cristãos vivem sob a ameaça constante, e, periodicamente, sob a ação do martírio. Quando César esquece a razão de Estado ou acha nela motivo de tolerância, o que sucede, nem por isso nossos pais deixam de ficar sendo uma caça perseguida, em todo caso disponível, visto como não merece aos olhos de quem quer que seja, no mundo político, a menor benevolência. Ao primeiro sobressalto de ódio popular, graças ao menor incidente local, ou em razão de uma malevolência individual um pouco poderosa, tudo é posto novamente em questão, e a morte trabalha.


Isso explica suficientemente os fatos até o fim do século II. Depois, intervém um elemento moral inteiramente novo: o medo. As pessoas se lembram das palavras de Domiciano: “Eu preferiria suportar um rival em Roma a suportar um bispo cristão”. Semelhante sentimento mostra o quanto está mudada a situação entre a Igreja cristã e o Império. A Igreja tornou-se uma potência. A arrogância serena de um Marco Aurélio ou a segurança de um Adriano já não são admissíveis. A Filosofia acaba de mostrar o que vale. O sincretismo religioso desacredita-se, e, sob os olhares da autoridade romana, o rebanho de Cristo estende-se de maneira a mais inquietadora. O tempo vai chegar em que o perseguido de ontem será o vencedor; o leãozinho, que fora tomado como caça vulgar, mostrar-se-á o “leão de Judá” e pulo irresistível. Antes disso, deve ser tentado o esforço supremo. Tentam-no, e a perseguição de Diocleciano, a que se chamou a era dos mártires, datando a 9 de Agosto de 284, é o ponto culminante desse período.

Não se põe nela, aliás, grande continuidade; procede-se por acessos. Quanto ao resultado, este dá razão à palavra de Tertuliano, tão ousada, tão consciente do milagre na sua forma mais trágica, senão mais alta: “Sanguis martyrum sêmen christianorum; o sangue dos mártires é semente de cristãos”.

Cumpre relembrar as leis dessa germinação cruenta, dizer por que as crueldades dos Césares resultam às avessas, como é que não descoroçoam o lealismo dos cristãos, mas do que nunca afeiçoados ao Império à medida que dele sofrem, e que atitude enfim sabem guardar heroicamente homens em quem o ódio devia produzir naturalmente o ódio, mas em quem, ao contrário, produz o amor e o triunfo social do amor.


II


As razões do triunfo dos vencidos, na luta desigual da Igreja com o Império, são antes de tudo de ordem sobrenatural. Aqui, como também quando se tratava de um extraordinário crescimento – as duas questões, ademais, são conexas – não se pode afastar o milagre. Quem quer que pense nisso com o sentimento do real e do possível humano parece dever consentir nisto. Não é necessário e não é eficaz, aqui, raciocinar; basta ver, mas ver com os olhos da alma.

Todavia, o sobrenatural tem seus meios naturais, que nem por isso são as suas causas; ele segue uma marcha; para agir num plano superior ao homem, toma seus pontos de apoio no homem. Há, pois, razão para inquirir das causas humanas que intervieram aqui, o que redunda em perguntar que caminhos seguiu a Providência em favor do seu miraculoso.

Bem parece que as razões de vitória devem ser buscadas antes de tudo nos sentimentos que a perseguição excita, quer nos expectadores generosos – e isto, já o dissemos – quer nos próprios perseguidos. Milagre de generosidade em ambos os casos, milagre de graça, com a cooperação da natureza.

Os que desdenham os sentimentos, ligando orgulhosamente toda a marcha do mundo a sistemas políticos, ou, baixamente, a fatalidades econômicas, recebem aí um desmentido. O martírio, dominante dos sentimentos inebriados e cantantes da alma cristã primitiva, desempenha um papel capital na harmonia pautada por Cristo; e, admitido o ponto de partida, concebe-se que essa harmonia seja destinada a expandir-se em ondas cada vez mais longas no concerto, embalde dissonante, deste mundo: “O exemplo da morte dos mártires nos toca, escreveu Pascal, porque são nossos membros”.

O martírio é o heroísmo do amor, e, após as nítidas declarações do Salvador, o amor aparece como o centro da doutrina e a pedra de toque da prática. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos”: esta palavra do Mestre, que ele aplicou a si mesmo, aplicam-na a si os verdadeiros cristãos. Prontinhos a lhe provarem o sabor delicado e áspero, eles haurem nelas esse sentido do supremo que favorece o estado nascente de todos os grandes movimentos humanos, e, com maioria de razão, de uma obra antes de tudo divina.

Do ponto de vista da “salvação”, isto é, do êxito pessoal da vida, de que nenhum de nós tem o direito de se desinteressar, visto que a vontade providencial coincide aqui com o mais decisivo interesse, visto que cada um recebeu o encargo de si mesmo antes de ser encarregado de outrem – deste ponto de vista, digo, pessoal, mas não egoísta, o martírio é o meio por excelência. Ele une a Cristo na morte, e portanto na vida ao máximo, constituindo um ato último, de todos os mais vital; e por isso mesmo nos une a Cristo na sua ressurreição, já que, para nós como para ele, a morte é uma mera passagem.

A teoria do batismo de sangue, que é primitiva, e que parece ser considerada no início como uma evidência, estabelece o candidato ao martírio na segurança de uma glória celeste imediata e fá-lo repudiar o medo. “Não temais os que matam o corpo e depois nada mais têm a fazer”, disse o Senhor. Esse sublime “nada mais”, esse “depois disso” dizem muita coisa sobre o desdém daquilo que passa em relação àquilo que fica. Que é matar o corpo, se não é libertar a alma, que os seus pecados passados e os seus receios de futuro oprimiam?

Tem-se o direito de pensar que a glória humana religiosamente encarada, isto é, como uma nobre emulação para o bem e como uma alegria de, a título de herói, existir no pensamento de seus irmãos, na lembrança perpétua da Igreja, não é estranha a esse apetite de morrer. Chama-se aos mártires os bem-aventurados, os benditos, os atletas, os magnânimos. Invocam-nos; eles conferem indulgências por meio do bilhete de paz (libellus pacis); conservam-se os seus restos mortais; visitam-se-lhes os túmulos; erigem-se altares sobre suas ossadas; celebram-se-lhes os aniversários; poesias, como as de Pindaro sobre os atletas dos jogos, eternizam esses atletas da alma. Tudo isso torna-se um apelo magnífico aos grandes corações.

O amor ao risco, de que nos têm falado eloquentemente, e de que um esporte novo, como ontem a aviação, basta para exaltar os voos mais belos do que os de engenhos toda via admiráveis, acha aí matéria bem diversa. A cada instante e como pelo efeito de um contágio irresistível, veem-se guardas de prisão ou algozes juntar-se ao rebanho de suas vítimas, e declarar que também querem morrer.

Essa persuasão de que morrer é um lucro, quando é por Cristo, torna mais fácil sem dúvida a nossos pais o cumprimento, mesmo nessas circunstâncias extremas, do preceito evangélico: Amai os vossos inimigos; fazei bem aos que vos perseguem. Quando, no dizer dos Atos (V, 41), os apóstolos sofreram o suplicio do flagelo, logo no inicio do seu ministério em Jerusalém, “lá se iam alegres por terem sido julgados dignos de sofrer o opróbrio pelo nome de Cristo”. Quando se nutrem tais sentimentos, a cólera já não tem lugar; pensa-se tranquilamente no algoz; pensa-se nele tristemente, pelo seu erro, se é de boa fé, e, no caso contrário, pelo seu crime.

Os dois casos aqui se apresentam, e não o ignoram os cristãos. No conjunto, estes atribuem a resistência do mundo ao poder de Satanás, artífice de malícia e de erro no meio dos homens. Estes últimos são vítimas dele, antes de serem seus colaboradores. É, pois, sobre ele que se faz recair a detestação. Digamos mais simplesmente, como o dirá mais tarde Agostinho: o cristão odeia o mal amando quem o faz.

César, isto é, o Estado, se beneficia desse sentimento. Sente-se que ele é escravo do Maligno, já que a idolatria – essencialmente diabólica para nossos pais – é a lei social; mas ama-se a César como criatura de Deus, de Deus que fez os governos, tendo feito os povos; ama-se como benfeitor temporal, visto como, fora da religião, ele protege e desenvolve a vida coletiva, de que os cristãos não entendem de se abstrair. Ama-se também a César instintivamente, como se ama o seu meio natural, o seu berço ampliado, a sua pátria de corpo e de alma.

Daí esse lealismo, que é bem impressionante em homens perseguidos de morte, e que não se desmente. S. Paulo disse: “Submeta-se toda alma aos poderes superiores, pois não há poder que não venha de Deus... Aquele, pois, que se opõe aos poderes resiste à ordem de Deus” (Rm XIII, 1). É verdade que ele assim falava num período de calma; mas era no dia seguinte às atrocidades de Nero, e o epistoleiro incomparável poderia ter visto sua página iluminada pelas tochas vivas em que se consumiam seus irmãos. Pedro, por seu turno, repete: “Temei a Deus, honrai o rei” (I Pe II, 17), esse rei que ia crucificá-lo.

Tertuliano faz notar que nunca os cristãos estiveram metidos nas sedições; que jamais os conspiradores, os Albinos, os Cássios, os Nigros, os tiveram por cúmplices. “César, escreve ele fortemente, é mais César para nós do que para os outros romanos, tendo sido, como foi, constituído César por nosso Deus”16. Estas são grandes palavras; são e serão sempre de tradição na Igreja.

Mas isso não impede que se seja oprimido pelo Império romano como por um poder satânico ao mesmo tempo que divino. Ele é divino como emanado d’Aquele que tudo rege, e como executor das suas vontades relativas à ordem social; é satânico porque mistura à justiça de suas exigências políticas a injustiça das suas pretensões religiosas e dos seus furores.

Estes dois pontos de vista são em toda parte reconhecíveis na atitude cristã das origens. A ele se liga uma teologia que causa estranheza a certos espíritos e que, no entanto, é das mais racionais. De um lado se diz: obedecei aos chefes políticos por causa de Deus; em certas circunstâncias se diz: “é melhor obedecer a Deus do que aos homens” (At V, 29). Isto não se contradiz. Há objetos a cujo respeito a consciência individual está ligada a Deus por intermédio do poder social. Outros há em que ela mesma é juiz, sentindo Deus dentro – como é o caso da lei natural – ou encontrando-o numa autoridade de ordem à parte, como a autoridade religiosa, que o representa diretamente, sem ter de passar pelo estado.

Essas competências diversas fazem a diversidade da atitude cristã. Onde quer que César seja juiz, obedece-se a César. Onde quer que a consciência seja juiz, obedece-se à consciência. E esse dualismo é tanto mais acentuado quanto há aí uma oposição mais completa entre o que a consciência exige e o que é reclamado abusivamente por um poder opressor, que nem por isso decaiu dos seus direitos.

A política cristã sabe assim conciliar tudo: o indivíduo e o Estado, Deus e o homem, insistindo no sentido do estado quando este está apegado aos seus deveres e é respeitador dos seus limites, e pendendo para o lado da consciência quando o Estado abusa, e exige fora do direito. Este último termo da alternativa é o que nos ocupa; é por isso que essa época de sofrimento e de ardor é o ponto de partida histórico disso a que se tem chamado, depois, os direitos do homem. O indivíduo imortal, filho de Deus e cidadão da cidade eterna, erguendo-se humildemente em face das forças coletivas que a palavra César representa aos nossos olhos, foi o cristianismo primitivo quem criou essa grandeza.

Não a conhecia a antiguidade. As suas ideias covardes sobre a natureza do ser humano e sobre os seus destinos não lhe permitiam fazer dele outra coisa senão uma abelha subordinada à colmeia, ou um pato selvagem elemento do triângulo enterrado no céu azul. Exceder em relação ao seu grupo; fazer bando à parte no espiritual e reservar o seu “quanto a mim” mesmo no caso em que o espiritual parece tocar no temporal e por este motivo interessa uma autoridade ciosa e exclusiva, é uma ideia que se não tolera numa sociedade ou materialista ou, em todo caso, mal segura dos porvires humanos, como é o caso de toda a antiguidade.

Se o homem não passa de um átomo pensante, destinado a desvanecer-se amanhã no grande todo em cuja obra a vida efêmera colabora, quem ousará conceber que esse serzinho se erga contra o todo representado pelos poderes sociais, e diga “não” ao que fica, ele que passa? Ao que é quase infinito em amplitude, em relação ao que ele pode justificar de existência? Dir-se-á a esse vermezinho: Submete-te! Se a tua consciência protesta, deixa-a formar pela consciência do grupo, que não é menos teu educador do que tua fonte, visto que dele emanaste em corpo e alma.

Diversamente sucede na hipótese espiritualista, e sobretudo cristã. Sucede mesmo, direi, ao inverso, visto como então já não é o indivíduo que passa, é o grupo; já não é o indivíduo que é pequeno, é esse corpo social constituído de nossos pós, vivificado por um tempo pela vibração de nossas almas, mas que deve esboroar-se mais cedo ou mais tarde, no mínimo quando o planeta arrefecido rolar, féretro triste, em volta do seu sol inútil, contemplando-o as almas de longe, do alto de sua glória.

A dignidade do indivíduo, tal como o cristianismo concebeu e impôs ao mundo, é fundo da política moderna, na medida em que esta é ciosa do progresso e não sonha com retrogradações opressivas.

Logo no inicio, não parece esperar-se semelhante conversão do mundo. O pequenino rebanho, tão heroico espiritualmente, ainda não sonha com uma ação política de que a sua vida espiritual seja a alma. A grande máquina romana parece dever durar sempre e oprimir sempre os eleitos. É uma condição a que as pessoas se submetem como a uma vontade providencial. Faz-se o melhor que se pode para ser um bom cidadão, sendo cristão; mas se, apesar disso ou por causa disso, é preciso sofrer, sofre-se, e se é preciso morrer, morre-se. Faz-se como quando se tratou de gozar saúde por dever e se cai doente. Os que suportam melhor a doença são os mesmos que melhor sabem usar da saúde. Assim os cristãos fiéis às leis e os melhores servidores do Império, como dizem incansavelmente os apologistas, são os mais resignados a esse paradoxo atroz que faz deles uns pretensos revoltosos.

Só mais tarde, quando a sociedade cristã toma corpo e nela se introduzem elementos pertencentes a todos os setores, ao exercito, à política, à magistratura, tanto quanto ao povo, que forneceu os primeiros subsídios, só nesse momento, isto é, a partir do século III, surgem esperanças novas.

Desde o tempo de Marco Aurélio, um Meliton sonhava com uma espécie de aliança entre o cristianismo e o Império, encarregando-se o primeiro, em troca de uma proteção sincera, de fornecer ao segundo os valores morais que aumentariam imensamente a prosperidade. Orígenes retoma este tema uns cinquenta anos depois, com muito mais razão de alimentar esperanças, o que não impede que ele mesmo, torturado em 249, por ocasião da perseguição de Décio, possa perceber que os tempos ainda não estão maduros.

Pode-se mesmo imaginar que tais estados de espírito não entram por pouco na recrudescência das perseguições. Porque o que, no fundo, eles oferecem ao Império é lhe infudirem uma alma nova. Ora, o Império não quer saber disto. A sua alma lhe basta. Ele crê que ela corresponde às suas origens e ao seu fim. A Igreja, se o orgulho dele lhe permitisse levá-la em conta, parecer-lhe-ia aos que estão contentes com este mundo que fecham os ouvidos aos gritos de apelo que nos vêm de lá de cima

A Igreja não é deste mundo, e por esta razão age sobre este mundo a fundo, tentando arrancá-lo a si mesmo para fazê-lo chegar a mais alto do que ele. Para isto é preciso abalar-lhe as raízes. É a epopeia do Cedro na Légende dês siècles:

Et frissonnant, brisant Le dur rocher de marbre,
Dressante ses Brás ainsi qu’um vaisseau ses agres,
Fendant la vieille terre aicule dês forêts,
Le grand cèdre, arrachant aux profondes crevasses
Son trone, et as Racine, et ses ongles vivaces,
S’envola comme un sobre et formidable oiseau.

E, trêmulo, quebrando a dura rocha marmórea,
Erguendo os braços qual nau que ergue os seus maçames,
Fendendo a vetusta terra avoenga das matas,
O grande cedro, arrancando às rachaduras fundas
O tronco, e a raiz, e as suas unhas vivazes
Evolou-se qual ave lúgubre e formidanda.


Isso vai bem nos poemas; mas quando se trata da vida de um Estado, as raízes existem, o solo também, e o selvícola, César, é sempre tentado a bradar, como João no poema:


Joveaux Venus, laissez La nature tranquille. (Recém-vindos, deixai tranquila a natureza.)


Mas sim! O paganismo, aos seus próprios olhos, é “natureza”.

Não importa; a perturbação salutar lançada nos Estados pagãos, primeiro pela existência e depois pela ação social da Igreja, terá o seu resultado. Despertando as consciências retas, agrupando-as, a Igreja criará um Estado no Estado. No espiritual, entende-se! Porque no temporal seria uma grave censura; nós não somos separatistas. Mas no espiritual, é verdade; um grupo cristão num Estado pagão ou paganizante, é um Estado no Estado, e esse Estado, mais ativo se é fiel à alma que traz, tende a encerrar o outro, a envolvê-lo com sua influência para enriquecê-lo de seus dons, para que, tendo posto à frente das suas preocupações “O reino de Deus e a sua justiça”, tudo o mais lhe seja “dado por acréscimo”.

É o que o mundo novo, que vai suceder ao Império, experimentará pouco a pouco, no positivo, e também, ai! Quanto a contra prova. Mil desfalecimentos, de fato, limitarão constantemente os efeitos de uma política cristã difícil de conceber após o longo reinado dos preconceitos, mas difícil ainda de aplicar a uma matéria sempre parcialmente rebelde. É por isso que as lutas que acabamos de descrever não cessarão com as circunstâncias em que as vimos desenrolar-se. Elas são de todos os tempos. E, como já várias vezes insinuei, há outros Césares em luta com a Igreja que não os soberanos ou os ditadores; os poderes coletivos também intervém, e esses imensos poderes anônimos que são as civilizações. Em toda parte onde a Igreja encontra isso a que o seu Fundador chamava o mundo, isto é, não somente as potências do mal, mas o que praticamente dá no mesmo, de ver que as culturas humanas pretendem orgulhosamente bastar-se, os laicismos de todos os jaezes, quer se abriguem nas Sorbonas, nos tribunais, nas bancas, nas ofic
inas ou nas escolas, quer inspirem os sistemas filosóficos, sociais, econômicos, literários, artísticos, etc., a Igreja ergue-se como adversária, porgue vê em conflito o temporal e o eterno, o insuficiente e o Único Necessário. Então, é a batalha; em todo caso, é a divisão, visível ou latente. “A procissão – Escreve Ernesto Hello – passa levando a cruz, e as criaturas dividem-se à sua passagem. As criaturas dividem-se e nem sempre sabem que é a cruz que as divide”.

Não importa, o mundo não está acabado, e a esperança é sempre possível. O reino de Cristo, por mais combatido que seja, subsiste. O que os seus inícios nos fizeram é ver ampliado sob nossos olhos e pode aguardar com confiança o futuro.

A que ponto chegamos sobre isto? E que testemunho traz o tempo atual em favor da Igreja cristã, consideradas as suas aquisições e as suas carências, as suas provações e as suas necessidades?


É a nossa última questão.


14 – Plinio, Hist. Ant., XIII, 4; Tácito, Hist., V, 2, 5, 13.
15 – Cf. Tácito, Anais, XV, 44.
16 – Tertuliano, Apologeticum, 33.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

A Igreja e as civilizações anteriores - A. D. Sertillanges


Se é verdade que Cristo é o centro e não o começo da história cristã; que tudo gravita em torno dEle – o passado para prepará-lo, o presente para recebê-lo, o futuro para utilizá-lo; de tal sorte que a obra inteira seja sem corte, realizando a palavra de S. Paulo: “Tudo é para os eleitos” -, se esse plano religioso do mundo é o verdadeiro, manifesta é a consequência. Cristo deverá vir no momento em que mais necessidade se tem dele e em que dele mais se pode aproveitar.

Isso supõe que a sua época será ao mesmo tempo rica e pobre: rica em recursos e pobre em realizações; pobre também em esperança, se fosse abandonada a si mesma. E isso dá a prever que a obra cristã consistirá, não em desdenhar o passado, desdenhando-se de si mesma, visto como ela reina sobre o passado tanto como sobre o presente e sobre o futuro, - e tão pouco em copiar o passado, em subordinar-se a ele, em servi-lo, o que seria uma inversão dos papéis; mas em fazê-lo realizar seu fim. Para isso, deverá ela apoiar nele a sua obra histórica assim como, para crescer, o vivente se nutre daquilo que o solo produz. Não se há de esquecer, aliás, que andar é repelir para trás o solo em que a gente se apoia, e que nutrir-se é destruir o alimento enriquecendo-se da sua substância.

Esta concepção a priori precisa ser confrontada com os fatos, para se ver, primeiro, se os fatos  a comprovam; e, em seguida, como.


Foi de moda, outrora, ver em Cristo e nos primeiros obreiros da sua obra não sei que iniciados que, quais abelhas diligentes, teriam recolhido o suco das tradições, o pólen das organizações anteriores, para com eles sabiamente comporem esta cera e este mel: a Igreja e o Evangelho. Toda originalidade e toda transcendência seriam assim recusadas à religião de Jesus; ela seria um ensaio de sistematização partindo de dados adquiridos; não seria mais a Boa Nova, o Dom de Deus. Já não haveria “milagre”.

Assim tal qual, esta concepção está morta hoje em dia; nenhum crítico, por pouco sério que seja, ousaria sustentá-la. Tudo nos demonstra que os primeiros obreiros do Evangelho foram estranhos à cultura que semelhante ecletismo suporia; que de modo algum pensaram nisso.

Ao próprio Jesus os puros críticos não emprestam, tão pouco, essas intenções, que destoam de tudo o que se sabe dele. Quanto a nós, é evidente que ainda muito menos dispostos estamos a semelhante atitude. Sabemos que não foi assim, por fora, adventiciamente ou por colheita de elementos estrangeiros, que Jesus se propôs compor sua obra; foi por dentro, pelos meios da vida, e a partir de um germe divino.

Esse germe, que ele trazia, é o seu Espírito, cuja comunicação é simultaneamente intelectual, pelo dogma, e prática, sob a forma de sentimentos, de moções, de meios essenciais de ação. Tal era a alma do seu grupo. Isso é que era o “vinho novo”, que, dizia ele, não se devia conservar em odres velhos. Por essa expressão, ele mostrava bem a que ponto era estranho às vistas do ecletismo. Fazia coisa inteiramente nova, que era ao mesmo tempo coisa eterna, nisto que todo o passado colaborara nela a titulo de preparação, nisto que todo o presente devia servir-lhe de meio nutriente e todo o futuro de matéria para seus progressos. Nunca seria de mais repetir estas coisas.

Portanto, se há semelhanças – e as há numerosas – entre a religião de Jesus e as religiões do passado, não é por empréstimos que cumpre explicá-las primeiro, é por esta consideração simplíssima: que as religiões antigas foram criadas pelo instinto para corresponderem às necessidades do homem, às suas aspirações e às suas reflexões em face do destino. Na medida em que instintos, aspirações ou juízos estavam desviados, as antigas religiões foram também desviadas, e uma religião divina, como o cristianismo não devia assemelhar-se a elas; mas onde quer que as necessidades fossem reais, que as aspirações fossem legítimas e as reflexões sensatas, as religiões concluíam acertadamente, e a religião definitiva devia assemelhar-se-lhes nisso, embora excedendo-as, visto como as suas reflexões, hauridas de lá de cima, transcendem a amplitude sempre limitada de um olhar de homem.

É preciso capacitar-se de que, em religião, o divino é precisamente o mais humano, não tendo a religião outro papel senão rematar a vida do homem, mesmo quando a excede. O divino autêntico deve, pois, coincidir parcialmente com o humano autêntico, e isso não será um empréstimo, mas um encontro, motivado por um mesmo ponto de partida e por uma finalidade comum.

Deus dá o pão supersubstancial; os homens procuram fabricar o outro, e nem sempre têm falhado na sua fabricação. Deus dá a água que jorra até a vida eterna; mas já havia outras águas. Os que bebiam delas ainda tinham sede; ver-se-á bem isto pela solicitude deles quando jorrar a fonte divina; porém, mesmo assim, eles tinham achado nelas refrigério.

Destarte se explicam os traços comuns que com tanto comprazimento têm sido salientados – no intuito de fazer deles objeções – entre o cristianismo e o budismo, as religiões persas, gregas, Roma,as, etc., como se não fosse um elogio, em relação a uma religião que se pretende sem lacuna, o dizer-lhe: Não esquecestes este e aquele valor descoberto antes de vós por outras religiões. Chamem ao cristianismo, tanto quanto quiserem, “um microcosmo religioso”! É um grande louvor.


Todavia, historicamente esta resposta não é suficiente; pois não negamos que tenha havido empréstimos essenciais, empréstimos destinados a constituírem a religião, ao invés de servi-la. Por isto teremos de tornar à questão das utilizações do paganismo pela religião cristã. Mas, por enquanto, temos de repetir uma segunda forma da opinião, que faz do cristianismo um fruto natural do passado e do presente religioso a que sucedeu.

Muitos, com efeito, afastando os disparates que fariam de Cristo e dos apóstolos uns ajuntadores de noções e de devoções esparsas, nem por isso deixam de dizer que, para se formar, a Igreja herdou – apenas sem o saber, e sem o saberem os seus iniciadores – aquilo que aquela época compósita, cuja fisionomia exata tentamos dar mais acima, continha.

O cristianismo não passaria de um dos movimentos espontâneos de renascimento religioso que se ensaiavam no tempo de Jesus, e Jesus não teria feito senão determinar a cristalização num certo ponto, em certas formas, formas que aliás se alteraram, ao que dizem, pela influência dos cultos que não tinham sido bem sucedidos no mesmo esforço, e que ele entendia de suplantar.

Esta teoria tem por si os traços comuns que aproximam o cristianismo dos estados de espírito reinantes no momento em que ele nasceu, e das doutrinas ou dos ritos próprios às religiões ambiente. É assim que o universalismo e a interioridade, que figuram entre os sinais mais característicos do cristianismo, já se fazem adivinhar no sincretismo, que representa o meio imediato em que a Igreja teve de se formar.

Basta, porém, olhar nisso para verificar que essas tendências, se podiam servir para preparar as almas, de modo algum podiam, por si mesma, sugerir-lhes os pontos de vistas cristãos, porque destes àqueles há um abismo.

Bem verdade é que no tempo de Jesus os cultos outrora locais tendem a universalizar-se. Parecem agora abertos a todos. São-no realmente, salvo o mitraísmo. Mas é somente pelo seu lado exterior, o lado menos religioso; poder-se-ia dizer nada religioso; porque o exterior nada é, se não manifesta uma alma.

As bacanais, as procissões delirantes da Grande Mãe, em que os eunucos triunfam entregando-se a transes de epilépticos: eis o que se franqueia a todos. Desde que se trata da vida interior, mística e verdadeiramente moral, recai-se na estreiteza da iniciação. Considera-se como ímpia uma manifestação comum da doutrina e dos divinos arcanos. O número é uma profanação. O exclusivismo faz parte das alegrias do iniciado, neste mundo e no outro.

Os partidários da mentepsicose, pouco numerosos relativamente, ainda têm esta pálida desculpa de só desprezarem a multidão provisoriamente; ela renascera mais perto de nós, se disto for digna, e subirá algum dia ao Olimpo onde as nossas alegrias estão bem próximas. Mas os que terminam na morte o ciclo das preparações religiosas não se mostram lá muito universalistas, quando dizem equivalentemente: Que se arranje a multidão humana!

Aproximei isso destas grandes palavras: “Ide e ensinai todas as nações, ensinando-lhes tudo o que eu vos mandei”; “Não se acende a lâmpada para escondê-la debaixo do alqueire”; “Não há nada oculto que não deva ser manifestado”; “O que eu vos digo ao ouvido, pregai-o de cima dos telhados”: e verificareis a diferença.

Correlatamente, a tendência universalista do sincretismo comportava uma tendência para a interioridade, tendência que as religiões políticas das épocas anteriores desprezavam. Neste sentido, havia grande progresso. A salvação do Estado cedendo à preocupação da salvação da alma; o indivíduo imortal suspeitando o seu valor e, a despeito de monstruosas aberrações, elevando-se à ideia de sacrifício: aí já era o excelente. Os mistérios assinalavam esse estado novo da opinião religiosa. Mas julgai de perto essas manifestações, e capacitar-vos-eis da ilusão que haveria em aproximá-las da vida interior tal como compreendeu o misticismo cristão. A aparência de certos termos pode enganar; a realidade é muito menos nobre.

Que é que se pede ao iniciado para participar dos favores místicos? A pureza, o que poderia fazer crer por isto se entende o que o Evangelho entenderia. Mas, lendomelhor, percebe-se que se trata de coisa inteiramente diferente. Em matéria de pureza, pede-se-vos não serdes nem “ímpio”, nem “celerado”; é uma boa precaução contra as batidas policiais ou as raízes de objetos piedosos; mas como pureza interior é pouco, quando se pensa que a profissão de cortesã permite à iniciada conservar o que seus sacerdotes chamam de “mãos puras”.

Mais tarde, a iniciação do cristianismo já desenvolvido levará essas religiões a macaquearem o nosso misticismo; elas chamarão seus deuses – coisa nova – os “guardiães da alma e do espírito”, e as suas inundações de sangue de touro serão consideradas como tendo o efeito do batismo; mas, por seu próprio movimento, essas religiões não levam à vida interior; a pureza de que elas falam na sua catártica é uma pureza legal, semelhante à do Judeu que não comeu porco e está com as mãos limpas.

Notai que, entre os Judeus, esse formalismo, pelo fato de se substituir à ideia moral, era uma degenerescência; di-lo bastante o Salvador. Aqui, é o caso normal. Não se trata de deplorar as próprias faltas e de converter o próprio coração, mas de tomar um banho que vos liberta das lamas da existência à maneira de uma lavagem mecânica.

A pureza pagã é uma medida prudente contra as doenças, as enfermidades precoces, os acidentes, os desarranjos de mente e do corpo vindos dos deuses descontentes. E descontentes por quê? De modo algum porque o nosso coração está longe deles – o que, de resto, merecia às vezes louvor! – mas porque certos atos ou certas omissões nos tornaram para eles um objeto de horror.

Consegue-se dobrar os deuses por meio de encantações materiais. Para isso não basta uma consciência fiel; é preciso uma voz justa. O bárbaro, que não sabe pronunciar o grego, é excluído pela mesma razão que o ímpio ou o celerado. Assim traz o ritual. Tudo isso é pura magia, e não religião ou moral.

Apresso-me a observar, como já mais de uma vez o fiz, que essas críticas atingem as religiões antecristãs tomadas em si mesmas, e não sempre, e em tudo, os SUS fiéis cultos. É por isso mesmo que, aparecendo-lhes o cristianismo, eles se precipitam nele em multidão. A partir desse momento, a situação inverte-se, e, em vez de serem superiores à sua religião, eles serão esmagados pelo novo ideal, a ponto de se declararem servos inúteis, mesmo após heroicos esforços. Mas não se trata de indivíduos, trata-se dos próprios cultos e daqueles que os vivem tais como eles são. Esses acham-se entregues a práticas em que a magia ocupa um lugar inteiramente absorvente. Corre-se a toda parte para lhes ter o duvidoso lucro; mas isto mesmo prova que não lhes dá senão um mero sentido supersticioso. Não contente com a própria religião, pratica-se a dos outros, porque não se sabe de quem é que se pode ter necessidade. Não vale por dizer que a Divindade verdadeira, a que vê o coração, vos ficou alheia?

Conhece-se um certo Faventino que, no seu epitáfio, se gaba de ser ao mesmo tempo áugure da velha religião romana, Pai e arauto sagrado no culto do sol invicto (Mitra), arquibúcolo no culto de Baco, hierofante de Hécata, e sacerdote de Ísis. A gente pensa nesses magnatas da finança que fazem parte de trinta ou quarenta administrações.

E, quando os deuses tão ecleticamente desservidos dão mostra de resistir às súplicas dos seus fiéis, pretende-se possuir meios de forçá-los: prova nova da nulidade moral desses ritos. Não é, porventura, escandaloso que certas fórmulas ou simplesmente a invocação de um nome secreto, coloquem o poder de Deus à disposição do fiel, sem que a retidão de intenção entre nisso pelo que quer que seja? Que outra coisa é então esse Deus, se não é um daqueles Olimpianos de Homero que uma fatalidade domina, ainda quando se chamasse Júpiter, e que pode enganar-se ou enganar, a quem se pode enganar, a quem se pode forçar, se, por uma hábil manobra, se lhe consegue virar o poder?

A Igreja está tão pouco disposta a imitar esses ritos pretensamente santificadores, que os afasta com horror, acusando-os, pela boca de Paulo, de só terem a “satisfazer melhor a carne” (Cl II, 20-23), sem dúvida em razão do fim todo carnal colimado ao submeter-se a eles, mas também, o que não parece lá muito duvidoso, por não sei que sadismo de sensibilidades “détraquées”, como o indicam as estranhas histórias edificantes contadas nos Mistérios. Só se fala aí de violência e de luxúria, e, diz Gaston Boissier, “verdadeiramente parecia haverem-nas reservado para o segredo dos mistérios porque quase não se podia exibi-la em plena luz”, essa plena luz que via tantas!

“Bem aventurados os corações puros, porque verão a Deus”: é o contraste absoluto entre o cristianismo e essas falsas purezas legais.


Se desses pontos de vista gerais passássemos à minúcia, ainda muito menos justificada acharíamos a pretensão de fazer sair o cristianismo do meio compósito em que nasceu. Não basta dizer, por exemplo: a morte e a ressurreição do deus fazem parte de vários cultos; os ritos da iniciação assemelham-se ao batismo; os repastos sagrados pelos quais se comunga com Dionisios ou com Mitra são como que uma cena eucaristia; o iniciado de Átis come a carne de um animal divino e bebe o sangue do touro sagrado para se identificar com seu Deus; Orfeu e Cristo são aproximados pelos próprios primeiros cristãos; a linguagem ritual é às vezes idêntica no cristianismo e alhures, tal, por exemplo, o “refrigério” desejado aos mortos, o qual se julgaria tirado dos cultos de Ísis; o ascetismo cristão e o ascetismo pagão têm parentescos manifestos; os carismas, ou manifestações do Espírito, lembram os transes místicos dos cultos gregos ou orientais; a disciplina do arcano, ou proibição de revelar fora tais crenças ou práticas cristãs, é um caso particular nos Mistérios; os catecúmenos e os batizados representam os profanos e os mistes, etc.; tudo isso não basta para demonstrar uma filiação entre o cristianismo e cultos anteriores e contemporâneos.

Uma multidão de confusões insinuam-se nas aproximações estabelecidas. Há umas autênticas, e daqui a pouco direi a razão disso; porém a maioria são superficiais ao ponto de aproximarem apenas uma máscara de um semblante ou um retrato de uma caricatura. De sorte que, se não se tomar cuidado, salientando-as incide-se nesses “mais ou menos” que são uma espécie de trocadilho, como sucedeu a esse grande erudito que é Salomão Reinach, em punição dos “parti pris” que fizeram do seu Orpheus o último dos panfletos inspirados pela questão Dreyfus.

Para todos, por exemplo, é certo que a ceia eucarística, que se quereria fazer sair das divagações mitológicas, se apresenta historicamente como uma continuação da Páscoa judia, seu símbolo claramente invocado pelo próprio Jesus, e que portanto não há sombra de empréstimo, mas sim desenvolvimento voluntário, aliás transcendente, visto como a Páscoa judia era e sabia que era um símbolo, ao passo que a Páscoa cristã é uma realidade.

A liturgia da missa é igualmente judia: é a cerimônia do “sabbat”, na sinagoga, simplesmente aplicada às novas concepções e às realidades novas. Isto por aí mesmo se compreende, dada a composição dos primeiros grupos cristãos, que eram judeus e mui longe ainda de quererem ir buscar o que quer que fosse aos cultos pagãos. “Que pode a luz ter de comum com as trevas?, dizia S. Paulo, que acordo é possível entre Cristo e Belial?”

A gente se pergunta também o que é que a morte de Jesus sob Pôncio Pilatos, em plena claridade histórica, e consignada por Tácito nos seus Anais, pode ter de comum com a morte de Átis, da qual se confessará que é bastante dizer: é um símbolo. Os que a ela se uniam misticamente, assim bem o entendiam, pelo menos os melhores. Os que refletiam poderiam ter dito ao seu deus, tão pouco edificante e tão longe de toda realidade histórica:


Bem creio, cá entre nós, que não existes.


E, isso dizendo, ter-lhes-iam feito honra.

Quanto à ressurreição, é historicamente, e não misticamente, que ela faz parte do sistema cristão, especialmente no seu ponto de partida. Ela é o grande fato, a prova irrecusável, pela qual os Doze “se fazem degolar”, dirá Pascal, como por uma coisa que eles viram, que demonstra a missão de seu Mestre, e que portanto é para a doutrina deles um fundamento de realidade, e não um símbolo.

Acrescentemos que o símbolo de que se fala, os apóstolos cristãos não o conhecem provavelmente no inicio; eles quase não o apreciarão, vendo nesses pretensos mistérios meros “contos de velha” (I Tm IV, 7). Que significa, destarte, a ideia de empréstimo? Não se pede emprestado a símbolos, fossem eles sublimes – e com a maioria de razão se são julgados pueris – coisa com que afirmar historicamente e de que morrer.10

E assim sucede com tudo o mais. Tomais uma após outra todas as semelhanças que se procuram salientar: ou elas são inventadas, ou se mostram muito mais ainda diferenças, porque o seu espírito é inteiramente outro; e que é o gesto ou a palavra sem espírito? Este é que é a verdadeira realidade religiosa. De sorte que, depois de haver mostrado os cristãos e os pagãos agindo em comum desta ou daquela for,a dizendo isto ou aquilo, nada mostrastes, se diversa é a alma das palavras e das coisas.

Em toda a extensão da sua vida comum com as civilizações pagãs, a alma da Igreja cristã mostra-se antagonista a fundo, e não devedora. No início, ela se opõe às imitações mesmo mais inocentes. E isto, repito, não quer dizer que não haja aí pontos comuns. Deve haver. Mas há diversidade de espécie, porque há diversidade de origem, diversidade de espírito inspirador, diversidade de fim. A Igreja é inconfundível.

Estabelecido isto, resta ver como, tendo feição própria, a Igreja utiliza sem pestanejar tudo o que o passado lhe legou, tudo o que o presente lhe oferece, e antecipadamente se adapta a tudo o que o futuro lhe promete.


II


A caducidade religiosa do mundo, por ocasião do advento do Salvador, era bastante semelhante ao húmus que se amontoa, sobe as juncadas de folhas mortas, ao pé dos veteranos da floresta. Inerte por si mesmo, o húmus aguardava apenas um germe para irromper em brotos novos. A Igreja não tinha, pois que trazer tudo. Trazia a essência cuja definição fornecemos, alma permanente que ela deveria para sempre salvaguardar, mas que seus primórdios encarnavam num corpo rudimentar, destinado a progredir em todos os sentidos: doutrinalmente, praticamente, administrativamente, já que o tempo e o meio natural condicionam tudo o que vive.

Fidelidade a si mesma e intransigência no que respeita à sua essência íntima; mas também plasticidade e adaptação utilizadora a respeito de um meio providencialmente destinado à sua vida: tais são os dois deveres da Igreja. O segundo é menos necessário, se se quiser; mas essas questões de grau no indispensável não têm nenhum interesse prático.

S. Paulo chama as doutrinas pagãs, leigas ou religiosas, os elementos deste mundo (Gl IV, 3); quer dizer, sem dúvida, as letras do alfabeto ou os rudimentos de palavras com que se constrói o discurso. São elementos; conservam o seu valor de elementos; só são rejeitados se pretendem ser por si só o discurso. Se consentem na absorção, são louvados e utilizados.

A razão fundamental pela qual a Igreja tem essa aptidão e assim procede, é que, divina, isto é, filha do Criador de todas as coisas, é irmã de todas as coisas; é fundada na natureza, e admite a natureza não somente nos seus elementos profanos, mas também nos seus elementos morais e religiosos, que não são menos natureza do que o resto. É essa, para ela, um sinal de catolicidade, “nota” da sua verdade e da sua origem divina. “Só a igreja, escreveu Newman, conseguiu rejeitar os elementos maus sem rejeitar os bons, e fazer entrar na unidade da sua síntese coisas que em qualquer outra parte são incompatíveis”.


A Igreja utiliza, assim, principalmente três coisas: o senso do sublime, tirado do Oriente; o senso do belo e do razoável, especialidade dos Gregos; o senso do justo e do útil, próprio à civilização romana.

O Oriente chega à Igreja, para lhe enriquecer as concepções, por um canal todo indicado: a Bíblia. A civilização judaica, nas suas épocas clássicas, já era uma síntese depurada do Oriente religioso e uma síntese aproximada, já sofrivelmente rica, do Oriente político, filosófico e social. A dispersão, pondo o judaísmo em contato com as outras raças, amplia-o e, uma vez assimilado ao cristianismo, torna-o mais apto ao papel de nutrício que ele é chamado a desempenhar por sua parte, a respeito da vida nova.

O Oriente infiltra-se assim nas veias da Igreja como um sangue quente e brilhante cujo encarnado se reconhece facilmente hoje mesmo. Os espíritos estreitos a quem chocam os nossos ritos pomposos, as nossas tiaras e as nossas formulas por gosto enfáticas, acham nisso matéria para censura: mas o cristão desprendido de si pensa nos séculos e nas raças com que é solidário, na unidade feita de diversidades que a vida católica realiza, e sente-se ufano de aderir a uma sociedade integralmente humana.


Não menos úteis à vida da Igreja deviam ser os maravilhosos contributos da civilização grega. Eram-no ainda mais a certos respeitos. A filosofia, tão necessária para sistematizar a doutrina, para torná-la coerente com o espírito, proveitosa à investigação e defensável a respeito de adversários bem armados, da Grécia é que virá.

Separada da religião, ou posta a serviço de religiões falsas, pueris ou insuficientes, a filosofia não tinha servido de nada para a vida. Só dava o incerto, não assegurava da verdade e ainda menos da sua realização prática. Nada de trilha humana traçada, unicamente especulações, porque a autoridade faltava, se não faltavam o saber e a eloquência. Aquele que puder dizer: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” estará em condições de fazer a filosofia atingir seu escopo como faz atingir seu escopo tudo o mais. “Restaurar tudo em Cristo”, a filosofia terá o benefício desta palavra, e aquele que nem sequer lhe pronunciou o nome, aqueles que posteriormente falam uma língua de aduaneiros e de barqueiros, serão os verdadeiros salvadores dela.

Na época de Jesus, o classicismo está em via de dissolver-se nas loucuras místicas ou míticas em moda. Bem longe dos espíritos claros da Hélade, uma quantidade de pretensos pensadores degeneram no mágico, no curandeiro banal e no adivinho. Pelo órgão daqueles a que nós chamamos seus Padres, seus Doutores, a Igreja recolhe as tradições de Sócrates, de Platão, de Aristóteles; completa-as e compreende-as por assim dizer, melhor do que eles próprios, nisto que leva a fundo aquilo que eles apenas haviam esboçado, endireita o que eles haviam deformado, harmoniza com verdades novas o que eles tinham deixado sem nexo. Mais tarde, fá-los-á reinar, com seus êmulos, em face da sua própria apoteose simbólica, no próprio palácio do Vaticano. A Disputado Santíssimo Sacramento, de um lado, e a Escola de Atenas, do outro, decorando a Stanza della Segnatura, interpretam o “selo do pescador” como uma aceitação de todo o humano incorporado a todo o divino, para que Deus seja tudo de todos, e de tudo.

Não é segredo para nós que a Revelação é a salvação da razão, e que a luz que ilumina todo homem que vem a este mundo, se tem o seu foco divino no pensamento evangélico, sabe reconhecer-se também nos achados dos homens. De uma religião nada sistemática em si mesma, e de uma filosofia (a de Aristóteles) arreligiosa no fundo, mas em que o pensamento grego atingia o ponto culminante da sua força e da sua luminosa harmonia, a Igreja, representada pelo maior de seus doutores, fará a Suma Teológica, a obra filosófica mais religiosa e a obra religiosa mais filosófica que jamais tenha aparecido.

O que eu digo da filosofia aplica-se, sem que seja necessário demorarmo-nos nisto, a todos os aspectos, tão variados, da civilização helênica. A arte de nossas catacumbas e de nossas basílicas outrora não é senão a arte grega, degenerada, é verdade, mas aceita tal qual, e admitida ao batismo, enquanto aguarda ser confirmada, alimentada com o sangue de Cristo, absolvida de suas taras, casada com a divina Esposa, à qual dará esta gloriosa filha: a arte cristã. Prova de que o Espírito criador, servido pelo gênio do homem, não é menos artífice de beleza do que de prosperidade em qualquer domínio, de verdade e de virtude.


Enfim, eu disse que ao gênio romano a Igreja toma emprestado o seu espírito de governo, o seu senso do legal, a sua capacidade de reger a um tempo larga e firmemente as realidades humanas. O direito canônico, desde o inicio, enceta a larga curva que ainda não está fechada, que nunca o estará; sem pestanejar, vai buscar as suas mais precisas determinações à ciência jurídica de Roma. Submete-as, bem entendido, à sua matéria e aos seus fins – às vezes não o bastante, talvez: mais de uma vez, ao longo da história, notar-se-iam reminiscências da dureza romana a respeito de súditos regidos pela lei de amor; mas, no conjunto, a utilização segue sempre a mesma regra: envolvimento assimilador, entrada de tudo sob uma lei de vida que se endereça a tudo, querendo fazer realizar seus fins o homem todo.

Por si mesmo se concebe que a recíproca devia também ter lugar. O direito canônico influenciou todos os pensamentos jurídicos da nossa era; ele olhava de mais alto,  e, daí, a mais profundo: devia-se recorrer a ele para julgar das maiores causas. Pena é não se fazer isto ainda mais nestes nossos tempos de dispersão de espírito!


E, se se trata dos elementos propriamente religiosos encontrados pela Igreja no momento do seu nascimento e no curso dos seus primeiros desenvolvimentos, já não sucede com eles inteiramente o que sucede com os produtos da civilização geral. Os empréstimos, aqui, reclamam prudência. É preciso não se expor a incorporar germes mórbidos, e aquilo mesmo que mais tarde será nutriente pode ser mórbido no estado nascente.

Já lembrei que o primeiro cuidado da Igreja deve ser diferenciar-se, a fim de se definir. Uma vez bem reconhecido o que ela é, poderá ela entregar-se sem perigo a um trabalho de adaptação, em mira a um enriquecimento dos seus quadros.

É no começo do século II que a Igreja, conquistando todo o escol social, tem com que se fazer julgar tal como é, e pode pois tranquilamente apropriar-se de elementos úteis sem se arriscar a ver-se confundir com cultos doravante vencidos. Nesse momento, aliás, estando encerradas as perseguições, a dilatação da Igreja e o seu estabelecimento pacífico criam necessidades novas, que os contingentes estranhos ajudarão a satisfazer.

É assim que Gregório, o Taumaturgo, seguido nisso por todos os seus colegas, introduz em Neo-Cesareia costumes religiosos tirados do paganismo, mas que, bons em si mesmo, em todo caso indiferentes, podem adaptar-se às crenças cristãs. Festas, banquetes simbólicos, datas consagradas por longos usos são batizados, após serem cuidadosamente expurgados ou explicados. Dá-se com eles o que se dá com os edifícios religiosos dos pagãos, que são mudados de destinação, conservando-se. A intolerância necessária mostra-se assim isenta de fanatismo e de mesquinha impertinência. Ao mesmo tempo ostenta-se a liberdade do espírito religioso a respeito dos ritos acessórios, quando no paganismo o rito é tudo, e a interioridade ad libitum.

A liturgia acha, assim, como progredir no sentido da amplitude e do senso estético. A clareza majestosa e a bela ordenação gregas juntam-se à vida interior de que a Igreja tem o monopólio. O exterior poderá corresponder ao interior; o gesto secreto assumirá a amplitude de um gesto de multidão, para que a Igreja também ore, e pelo seu corpo tanto quanto pela sua alma.

A terminologia sagrada segue um movimento paralelo: vemo-la enriquecer-se de termos figurados tirados da poesia antiga, veiculados por meio de religiões rejeitadas, mas não inteiramente perversas. Os exorcismos solenes, as lustrações de água benta, as velas, as túnicas brancas, as procissões à imitação dos Panateneus, tiram daí sua origem.

A Festa de Natal, que faz coincidir o nascimento de Jesus com a festa do Sol invicto (Natalis invicti), lembra a cristãos recentes que o Senhor deles, nascendo em Belém, é que é o verdadeiro sol dos homens.

Agir assim não é pactuar, é ligar-se a tradições purificadas, a utilidades psicológicas ou sociais, a recordações, a valores de arte que, já não sendo veneno, se tornam alimento. O que os povos mais artistas ou mais religiosos do universo tinham achado não podia ser inteiramente vão. Não eram esses os odres velhos, o vestido velho em que o remendo novo do Evangelho não devia ser cosido; era o receptáculo eterno dos sentimentos humanos; era a veste de natureza que não se podia tirar fora sem dilacerar o homem, sem mutilar a história, que representa as etapas da vida do homem.

Essa adoção dos costumes pagãos, regulada com prudência, permitiu a utilização dos sentimentos e instintos que sustentavam os cultos locais; com isso, ela fornece À penetração evangélica uma grande força. O culto dos mortos, o culto dos demônios ou espíritos dos mortos que tinham sido piedosos, o culto dos protetores domésticos: penates, lares, genius, etc., representavam as mais antigas devoções conhecidas, e por isso as mais tenazes. Expulsá-las sem substituí-las era difícil, e aliás não se devia. O culto dos santos e dos mártires lá estava para auxiliar a substituição; ele compensava no espírito das multidões a perda das pequenas divindades populares. Quando se tira a uma criança a chupeta, ela depressa se consola se em lugar da chupeta lhe dão pão.

É bem conhecido o caso daquele bispo do Gévaduan, de que Gregório de Tours fala na sua Glória dos Confessores. Após vãos esforços para desarraigar o culto idolátrico do monte Helànus, que consistia em atirar oferendas numa lagoa e em se lhe banquetear nas margens para se tornar favoráveis os seus gênios, teve ele a ideia de fundar no lugar um oratório a Santo Hilário de Poitiers, com suas relíquias. Os campônios afluíram, e aquilo que atiravam no lago consagraram-no de então por diante às caridades do novo santuário.

Isso se fazia mais ou menos em toda parte, e mui sensatamente, pensem o que pensarem alguns. O culto dos nossos santos, bem compreendido, não é a idolatria que o protestantismo pretende; significa intercessão, união universal dos homens em Cristo e solidariedade nesse Vínculo, isto é, depois da ideia de Deus, a mais alta das ideias religiosas. Digamos melhor, ele evoca toda a religião, se o encararmos do lado do homem.

Produziram-se abusos; produzem-se ainda; a veneração e a adoração nem sempre foram bem distinguidas, mormente no inicio, por homens rústicos, e o egoísmo mais de uma vez invadiu o terreno dos sentimentos religiosos; mas isso não era culpa da Igreja. A grande construtora constrói; admite o risco. Paris espiritual não se constrói, tão pouco, num dia. Antes de exigir de todos a perfeição cristã, era preciso ligar as massas ao princípio cristão.


Melhor não posso concluir, nem acentuar uma última vez o caráter assimilador, ao mesmo tempo que separador, atribuído à nossa Igreja, senão por estes textos de um dissidente que podemos plenamente fazer nossos:


“A religião cristã, diz Harnack11, apresentou-se desde o começo com um caráter de universalidade em virtude do qual pôs seu cunho sobre a vida inteira, com todas as suas funções, com suas alturas e profundezas, seus sentimentos, seus pensamentos, seus atos. Só afastou a desonra e o pecado. Construiu-se com tudo o que ainda era capaz de viver, e isso graças ao seu poder de organização. Fora dela, quebrou tudo; em si mesma, tudo conservou. Podia isso, porque – sem dúvida ninguém o dizia e ninguém o sabia, mas cada alma piedosa o realizava em si mesma – porque, considerada na sua essência, era alguma coisa de simples, digamos antes de universal, ou católico, que podia unir-se a todos os coeficientes, que os reclamava mesmo”.


Duvido que qualquer autor católico tenha apresentado um argumento de apologética interna mais impressionante e em termos mais fortes.

“Ela, continua Harnack, permaneceu exclusiva, atraindo entretanto a si todo elemento estranho que tinha um valor qualquer. Foi por este sinal que ela venceu; pois sobre tudo o que é humano – eterno ou transitório – ela colocou a cruz, e desde então submeteu tudo ao além”12.

Donde esta conclusão naturalíssima: “Se o houvessem traduzido (o cristianismo) perante um tribunal, para lhe perguntarem com que direito admitira tantas novidades (e acrescentarei: pilhara tantos adversários), ele teria respondido: Não sou culpado; só fiz desenvolver os germes que haviam sido depositados em mim desde o inicio da minha existência”13.

É bem e sempre a mesma imagem, a mais expressiva das que se podem aplicar à Igreja. A Igreja é um germe que se desenvolve às expensas do seu meio, vivendo do seu meio sem lhe pertencer nem se comprometer nele.

Intransigência e plasticidade são os seus dois caracteres complementares; eles explicam toda a sua história; explicam mui primeiramente o seu início.

O que, nas possantes evoluções que lhe compõem o destino, se transforma, não é ela – ou, pelo menos, as suas transformações são as do grão, que evolui na mesma essência; - o que se transforma, verdadeiramente, é aquilo que ela vive, sendo uma desnaturação enriquecedora a condição imposta seja ao que for para ter acesso à substância.

Ela absorve e não é absorvida. Só aceita as luzes terrenas como matizes de transição para conduzir ao seu sol ou para acompanhar o seu sol – sublime halo que o astro divino, seu centro, irisa nas nuvens da nossa atmosfera; claridade suave que transforma em joias as agulhinhas de gelo do nosso ar e tamisa no entanto o esplendor obcecante; clarão difuso, clarão cambiante, que leva a irradiação mais longe e coloreia de beleza terreal a inacessível vibração da pura luz dos céus.

“Instaurar tudo em Cristo”, em Cristo socializado que é a Igreja; divinizar assim tudo o que é do homem e humanizar tudo que é de Deus: este é o programa. É ao que tendem todos os empréstimos que, sem que jamais se esgote o seu poder e envolvimento e de vivificação, o Evangelho eterno fez e há de fazer à eterna e universal civilização.


10 – A sei dos Naassênios, é verdade, ousou confundir Átis com Jesus; mas com isso só excitou o horror e a risada cristãs.
11 – Op. Cit., I, III, conclusão.
12 – Ibid, tomo II, p. 285
13 – Ibid, p. 206