terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Evangelhos Canônicos e Apócrifos - Tabela comparativa.

Uma interessante tabela comparativa entre os "Quatro Evangelhos" e os outros evangelhos que vi numa publicação de Dave Armstrong e resolvi postar. É inegável o papel da Tradição para o reconhecimento canônico, apesar de não ter sido feito apenas por ela.


Para mais informações: http://ntcanon.org/table.shtml

Comentário que vale a pena ser lido.

Esse comentário foi feito no Facebook por um monge ortodoxo (Monge Demetrio) sobre uma foto de protestantes fazendo sinais negativos para um presépio. Gostei tanto que resolvi postar aqui:
Negar o simbolo da Cruz como algo bom e digno de ser venerado é proclamar o Sacrificio de Cristo nela como um fracasso nao superado pela Ressurreiçao! Negar o ícone como idolatria é negar o proprio fato histórico da Encarnaçao, donde o Invisível se fez visível (1ª Joao 1: 1, 2), e negar que o proprio homem seja imagem e semelhança de Deus. Todas estas heresias levaram os evangélicos a forjarem para si um Cristo etéreo, inconsistente, que salva a alma mas se esquece da materia que com ela forma uma unidade. Neste contexto se entende o porque sentem a necessidade tao forte de construir uma Arca para tocar com as maos (coisa proibida no AT), ou serem umgidos com sangue de carneiro (já que nao possuem também a verdadeira eucaristia)! Venerar a Cruz, os ícones, os santos, longe de ser idolatria, é proclamar que Deus Filho se encarnou, se tornou nosso irmao, nos salvou vencendo a morte, e santificou o homem na sua integralidade Corpo/Alma/Espírito, e que sua Açao Salvífica se estende e alcança também o mundo, os animais, os vegetais, e a materia inanimada. Absolutamente tudo é feito novo em Cristo!!! As Cruzes, os ícones, os paramentos litúrgicos, os óleos e a agua benta, as velas, os incensos, ...sao um chamamento para que todo o cosmos brinde a Deus, conoscoa, verdadeira adoraçao que ele merece e deseja! (Sl 19: 2, 5).

Perfeito!

sábado, 21 de janeiro de 2012

Divindade de Jesus – A importância da questão. - Peter Kreeft e Ronald K. Tacelli.

Um texto interessante para a reflexão:

1.    A divindade de Cristo é a doutrina cristã de maior destaque. Define-se cristão basicamente como uma pessoa que acredita nisso. E nenhuma outra religião tem uma doutrina sequer semelhante a essa. Os budistas não acreditam que Buda era Deus. Os muçulmanos não acreditam que Maomé era Deus. Eles afirmam: “Não existe outro Deus além de Alá, e Maomé é seu profeta”.

2.    A diferença essencial entre o cristianismo ortodoxo, tradicional, bíblico, apostólico, histórico e o cristianismo revisionista, modernista e liberal está na crença sobre a divindade de Cristo. A revisão essencial modernista procura ver Cristo simplesmente como o homem ideal, ou “o homem em favor de outros”; como profeta, rabino, filósofo, mestre, assistente social, psicólogo, psiquiatra, reformador, sábio ou mago, mas não como Deus encarnado.

3.    Essa doutrina serve como uma chave-mestra, que destranca todas as outras portas doutrinárias do cristianismo. Os cristãos crêem em todas as suas muitas doutrinas não porque raciocinaram e as encontraram como conclusões de um inquérito teológico, ou como resultado de experiências místicas, mas com base na autoridade divina daquele que as ensinou, como estão registradas na Bíblia e como foram transmitidas pela Igreja. Se Cristo fosse apenas humano, poderia ter cometido erros. Portanto, qualquer pessoa que quiser discordar dos ensinos pouco populares de Cristo terá de negar a divindade dele. E com certeza haverá aspectos de Seus ensinamentos que todos consideraremos ofensivos – se observarmos a totalidade desses ensinos, em vez de atermo-nos àqueles que consideramos aceitáveis ou familiares.

4.    Se Cristo é divino, então sua encarnação foi o evento mais importante da história. É o divisor de águas, e mudou tudo. Se Cristo é o Filho de Deus, possui a mesma essência divina; se é o Cordeiro que tira o pecado do mundo, então, quando morreu na cruz, a porta do céu, fechada pelo pecado, foi aberta para nós pela primeira vez desde o Éden. Nenhum evento na história poderia ser mais importante para todos os seres humanos.

5.    A divindade de Cristo é uma doutrina que possui uma qualidade existencial incisiva e sem paralelos. Se Cristo possui a mesma natureza divina do Pai, se está à destra de Deus, se Ele e o Pai são um, então Jesus é Deus, e como tal é onipotente e onipresente; Ele está presente agora mesmo, e pode transformar nossa vida neste instante como nenhuma outra pessoa poderia fazer. Somente Deus pode responder ao clamor desesperado do salmista: Cria em mim um coração puro, ó Deus (Sl 51.10). Apenas Deus pode criar. Existe até uma palavra especial em hebraico para essa ação: é bara’.

6.    Se Cristo é divino, Ele tem direito sobre toda nossa vida, incluindo nosso íntimo e nossos pensamentos. Se Cristo é divino, nossa obrigação absoluta é acreditar em tudo que Ele diz e obedecer a todas as suas ordens. Se Cristo é divino, o significado de liberdade passa a ser nossa conformidade para com Ele.

Fonte: "Manual de defesa da fé" de Peter Kreeft e Ronald K. Tacelli.

Comentários do blog:

Não sei se concordo com tudo que está escrito. Por exemplo, ele coloca a divindade de Jesus como crucial para o cristianismo. Creio que apesar de ser crucial, a ressurreição talvez seja mais ainda, pois a divindade dEle só pode ser evidenciada através dessa ressurreição. Sem ela é vã a fé cristã.

Por isso, a própria necessidade de se acreditar em tudo o que Jesus disse vem inicialmente de sua autoridade divina que nos é provada por meio da ressurreição. Deus poderia ter escolhido outros meios, mas esse é o que nós podemos saber disso.

Esse seria o ponto de principal discordância. Talvez não discordância, mas um comentário complementar.

Outro ponto seria que, mesmo que Ele não fosse Deus (o que discordo) não significaria necessariamente que ele poderia errar em ensino, pois não é necessário que seja Deus, bastaria que fosse enviado por Ele e seja guiado pelo seu Poder.

Se você nunca pensou nas consequências da Divindade ou não de Jesus, é um bom momento para pensar.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Desonestidades em debates.

Andei lendo o livro de Schopenhauer sobre o assunto, e já faz cerca de um mês que digitalizei essa parte. Só estava esperando que um amigo corrigisse (seu blog).

O livro foi traduzido pelo filósofo Olavo de Carvalho. Essa digitalização é apenas dos estratagemas sem a introdução de Olavo, de Shopenhauer, além dos comentários desses filósofos que poderão ser vistos de forma completa no livro.

Espero que tirem bom proveito, não para ganhar debates sem ter razão, mas para estarmos precavidos quanto a pessoas desonestas.

Bom proveito.


1 - Ampliação indevida


Ampliação. Levar a afirmação do adversário para além de seus limites naturais, interpretá-la do modo mais geral possível, tomá-la no sentido mais amplo possível e exagerá-la. Restringir, em contrapartida, a própria afirmação ao sentido mais estrito e ao limite mais estreito possíveis. Pois quanto mais geral uma afirmação se torna, tanto mais ataques se podem dirigir a ela. O antídoto é a exposição precisa dos puncti (os pontos que se debatem ou status controversiae (a maneira de apresentar a controvérsia).

Exemplo 1. Eu disse: “Os ingleses são a primeira nação no gênero dramático.” O adversário quis tentar uma instância e rebateu:  “Todo mundo sabe que na música e, por conseguinte, na ópera, eles nunca foram importantes.” Repliquei recordando que "a música não está compreendida no gênero dramático; este corresponde unicamente à tragédia e à comédia”; coisa que ele sabia perfeitamente, pretendendo generalizar minha afirmação de modo que compreendesse todas as representações teatrais e, portanto, a opera a música, para assim abater-me com segurança.

Inversamente, podemos salvar nossa primeira afirmação restringindo-a mais ainda do que era nossa primeira intenção, se a expressão utilizada se prestar a isso.

Exemplo 2. A diz: “A paz de 1814 restituiu a independência a todas as cidades hanseáticas alemãs.”  B replica com a instância in contrariam, isto é, que, com aquela paz, Danzig perdeu a independência que Napoleão lhe havia concedido. A salva-se assim: "Eu disse todas as cidades hanseáticas alemãs. Danzig é uma cidade hanseática polonesa”.

Este estratagema encontra-se em Aristóte¬les, Tópicos', Livro VIII, cap. 12, 11.

Exemplo 3. Lamarck (Philosophie zoologique vol. I, p. 203) afirma que os pólipos carecem de toda sensibilidade e estão desprovidos de nervos. Entretanto, é certo que eles têm alguma percepção, já que seguem a luz quando se movem, com certa técnica, de ramo em ramo, e agarram suas presas. Por isto, supõe-se que neles a massa nervosa esteja dispersa uniformemente pela massa de todo o seu corpo e,  de alguma maneira,  esteja fundida nela, pois eles têm evidentemente percepções, sem possuir órgãos sensitivos específicos.

Como isto derruba a hipótese de Lamarck, ele então argumenta dialeticamente: “Então todas as partes dos corpos dos pólipos deveriam ser capazes ter todos os tipos de sensações e também de movimento, de vontade e de pensamento, neste caso o pólipo teria em cada ponto de seu corpo todos os órgãos do animal mais perfeito, e cada um destes pontos poderia enxergar, cheirar, degustar, ouvir, etc, além de pensar, julgar, concluir: cada partícula de seu corpo seria um animal perfeito, e deste modo este mesmo pólipo estaria em um nível superior ao do homem, pois cada uma de suas minúsculas partículas teria a capacidade que o homem só tem em conjunto. Ademais, não haveria nenhuma razão para que aquilo que se afirma do pólipo não se estendesse à mônada, o mais imperfeito de todos os seres, e, por fim, às plantas, que também são seres vivos, etc.” Mediante o uso de tais estratagemas dialéticos, um escritor se trai, denunciando que, no íntimo, está convencido de que não tem razão. Pois apenas por ter sido dito que: “Todo o seu corpo tem sensibilidade para  a luz e,  portanto,  é  de natureza nervosa”, ele infere que seu corpo inteiro pensa.

2 - Homonímia sutil

Usar a homonímia para tornar a afirmação apresentada extensiva também àquilo que, fora a identidade de nome, pouco ou nada tem em comum com a coisa de que se trata; depois refutar com ênfase esta afirmação e dar a impressão de ter refutado a primeira.

NOTA: Synonyma são duas palavras que designam o mesmo conceito, Homonyma são dois conceitos designados pela mesma palavra (veja-se Aristóteles, Tópicos, Livro I, cap. 13). Baixo, agudo, alto são termos usados ora para os corpos, ora para os sons — são homônimos. Honesto, sincero, são sinônimos.
Este estratagema pode ser considerado idêntico ao sofisma ex homonymia.  Mas o sofisma da homonímia, se evidente, não enganará seriamente.

Omnes lumen potest extingui. Intellectus est lumen. Intellectus potest extingui.

Toda luz pode apagar-se.
O intelecto é luz.
O intelecto pode apagar-se.

Aqui observamos desde logo que há quatro termos: lumen em sentido literal e lumen em sentido figurado. Mas casos mais sutis podem levar a um engano, particularmente quando os conceitos designados pela mesma expressão são afins e se fundem um com o outro.

Exemplo 1. (Os casos intencionalmente inventados não são suficientemente sutis para ser enganadores. E preciso, portanto, ir buscá-los na própria experiência concreta. Seria excelente se pudéssemos dar a cada um dos estratagemas um nome conciso e ade¬quado, por meio dos quais se poderia rejeitar imediatamente  qualquer estratagema,  assim que os casos acontecessem.)

A.: "Você ainda não está iniciado nos mistérios da filosofia de Kant.”

B.: "Ah! De mistérios nem quero saber."

Exemplo 2. Critiquei como incompreensível o princípio da honra, segundo o qual um homem perde sua honra quando recebe uma ofensa, a menos que responda com outra ofensa maior ou a lave com sangue, seja do adversário, seja de si mesmo. Aleguei como motivo para isso que a verdadeira honra não pode ser ofendida por algo que alguém sofra, e sim apenas por aquilo que faça, pois a qualquer um de nós pode suceder qualquer coisa. O adversário atacou diretamente o fundamento de minha afirmação: mostrou, de modo evidente, que, quando um comerciante é falsamente acusado de enganar, de cometer ilegalidades ou de ser negligente no seu negócio, sofre um ataque em sua honra por algo que lhe acontece, e pode recuperar a honra fazendo com que o caluniador seja castigado ou desminta a acusação.

Aqui ele trocou, graças à homonímia, a honra civil, também chamada bom nome*, e que pode ser ferida pela calúnia, pelo conceito de honra cavalheiresca também chamada point d’honneur , que é ofendida pela injúria. Como o ataque à primeira não pode ser tolerado sem reação, mas deve ser rechaçado com uma refutação pública, com o mesmo direito não deve ficar impune um ataque à última, que deve ser rechaçada com uma injúria maior ou com um duelo. Em resumo, houve uma confusão de duas coisas essencialmente distintas, em virtude da homonímia da palavra honra. A homonímia deu origem a uma mutatio controversiae (uma mudança do ponto conflitivo em discussão).

3 - Mudança de modo

A afirmação que foi apresentada em modo relativo, [kata ti]*, relative é tomada como se tivesse sido apresentada em modo absoluto, universalmente, simpliciter ([aplos], absolute) ou  pelo   menos   é   compreendida   em   um sentido totalmente diferente, e assim refutada com base neste segundo contexto. Aristóteles dá o seguinte exemplo: o mouro é negro, mas, nos dentes, é branco. Portanto, é ao mesmo tempo negro e não negro. Este é um exemplo inventado, que na realidade a nin¬guém enganaria. Tomemos, ao contrário, um exemplo da experiência concreta.

Exemplo 1. Numa conversação sobre filosofia, reconheci que meu sistema defendia e elogiava os quietistas. Pouco depois surgiu uma conversa sobre Hegel e afirmei que grande parte dos seus escritos não tem sentido ou, ao menos, em muitas de suas passagens o autor colocava as palavras e o leitor tinha de colocar o sentido. Meu adversário não tentou refutar esta crítica ad vem, mas se contentou por formular o argumentum ad hominem: eu havia elogiado os quietistas e estes escreveram também muitas coisas sem sentido.

Aceitei este fato, mas corrigi sua afirmação dizendo que não elogiara os quietistas enquanto filósofos e escritores, e, portanto, não por suas realizações teóricas, mas somente enquanto pessoas, por seus atos, apenas sob um ponto de vista pratico. Mas no caso de Hegel, tratava-se, ao contrário, de realizações teóricas. Deste modo, o ataque cessou.

Estes três primeiros estratagemas são afins. Têm em comum o fato de que o adversário, na realidade, fala de uma coisa distinta daquela que se havia colocado. Quando nos deixamos levar por este estratagema cometemos, então, uma ignoratio elenchi (ignorância do contra-argumento). De fato, em todos os exemplos apresentados, o que o adversário diz é verdadeiro, só que não está em contradição real, mas apenas aparente, com a nossa tese. Deste modo, ele nega a conseqüência do ataque à sua conclusão. Negamos que seja correta a conclusão, isto é, que da verdade de sua afirmação se deduza a falsidade da nossa. Trata-se, pois, de uma refutação direta de sua refutação, per negationemum consequentiae.

Não se admitem premissas verdadeiras quando se prevêem as conseqüências que delas se seguem. Como antídoto, os dois seguintes meios: regras 4 e 5.

4 - Pré-silogismos

Se queremos chegar a uma certa conclusão, devemos evitar que esta seja prevista, e atuar de modo que o adversário, sem percebê-lo, admita as premissas uma de cada vez e dispersas sem ordem na conversação; do contrário ele buscará toda sorte de argúcias; ou, quando temos dúvida de que o adversário as admitirá, apresentaremos as premissas dessas premissas, fazendo pré-silogismos, procurando fazer com que admita as premissas de muitos desses pré-silogismos, sem ordem e confusamente, ocultando assim nosso jogo, até que tenhamos reunido tudo aquilo de que precisamos. Chega-se, portanto, à questão seguindo um longo caminho. Estas regras são apresentadas por Aristóteles nos Tópicos, Livro VIII, Cap. 1. Não é necessário dar exemplos.

5 - Uso intencional de premissas falsas

Podemos também, para comprovar nossas proposições, fazer antes uso de proposições falsas, se o adversário não quiser aceitar as verdadeiras, seja porque não as reconhece como verdadeiras, seja porque percebe que delas a tese será deduzida como conseqüência imediata. Então adotaremos proposições que são falsas em si mesmas mas verdadeiras ad hominem e argumentaremos ex concessis a partir do modo de pensar do adversário. Pois o verdadeiro também pode seguir-se de premissas falsas, mas não o falso de premissas verdadeiras. Deste modo, podemos também refutar teses falsas do adversário por meio de outra tese falsa que ele aceite como verdadeira. Devemos adaptar-nos a ele e usar o seu modo de pensar. Se, por exemplo, ele é militante de alguma seita com a qual não estamos de acordo, podemos adotar contra ele, como principia, as máximas dessa seita. Aristóteles, Tópicos, Livro VIII, cap. 9.

6 - Petição de princípio oculta.

Ocultamos uma petitio principii, ao postular o que desejamos provar: 1) usando um nome distinto, por exemplo, "boa reputação” em vez de "honra”, "virtude” em vez de "virgindade”, etc, ou ainda usando conceitos intercambiáveis: "animais de sangue vermelho” em vez de "vertebrados”;  2) fazendo com que se aceite de um modo geral aquilo que é controvertido num caso particular; por exemplo, afirmamos a incerteza da medicina postulando a incerteza de todo saber humano; 3) se, em contrapartida, duas coisas são conseqüência uma da outra, demonstraremos uma postulando a outra; 4) se preci¬samos demonstrar uma verdade geral e faze¬mos que se admitam todas as particulares (o contrário do número 2). (Aristóteles, Tópicos, Livro VIII, cap. 11.)

Os Tópica de Aristóteles contém boas regras para o exercício da dialética.

7 - Perguntas em desordem


Quando a disputa é conduzida de modo rigoroso e formal e queremos fazer com que nos entendam com perfeita clareza, então aquele que apresentou a afirmação e deve prová-la procede contra o adversário fazendo perguntas para concluir a verdade a partir das próprias concessões do adversário. Este método erotematico era particularmente usado pelos antigos (chama-se também método socrático) e é a ele que se referem o presente estratagema e alguns dos seguintes. (Todos reelaborados livremente a partir do Liber de elenchis sophisticis, cap. 15, de Aristóteles.)

Fazer de uma só vez muitas perguntas pormenorizadas, e assim ocultar o que, na realidade, queremos que seja admitido. Em contrapartida, expor rapidamente a sua própria argumentação, fundada nas concessões de outra parte, pois os que compreendem com lentidão não conseguirão acompanhar a discussão e não se darão conta das eventuais falhas e lacunas da demonstração.

8 - Encolerizar o adversário

Provoca-se a cólera do adversário, para que, em sua fúria, ele não seja capaz de raciocinar corretamente e perceber sua própria vantagem. Podemos incitar sua cólera fazendo-lhe algo francamente injusto, vexando-o e, sobretudo, tratando-o com insolência.

9 - Perguntas em ordem alterada

Fazer as perguntas numa ordem distinta da exigida pela conclusão que dela pretendemos, com mudanças de todo gênero; assim, o adversário não conseguirá saber aonde queremos chegar e não poderá prevenir-se. Neste caso, poderemos também servir-nos de suas respostas para tirar várias conclusões, até mesmo contraditórias, conforme as respostas o permitam. Este procedimento é análogo ao estratagema número 4, pois trata-se de mascarar o nosso modo de proceder.

10 - Pista falsa

Se percebemos que o adversário, intencionalmente, responde pela negativa às perguntas cuja resposta afirmativa poderia confirmar nossas proposições, então devemos perguntar o contrário da proposição que queremos usar, como se quiséssemos que fosse aprovada, ou então, pelo menos, por as duas à escolha, de modo que não se perceba qual delas queremos afirmar.

11 - Salto indutivo

Se fazemos alguma indução e o adversário admite os casos particulares em que esta se baseia, não devemos perguntar-lhe se admite também a verdade geral que deriva desses casos, mas devemos introduzi-la desde logo como se estivesse estabelecida e aceita, pois às vezes ele poderá crer que a admitiu, e o mesmo pode acontecer aos ouvintes, já que recordarão as muitas perguntas feitas sobre os casos singulares, que não podem deixar de levar à conclusão.

12 - Manipulação semântica

Quando o discurso é sobre um conceito geral que não tem um nome próprio e que deve ser designado figurativamente por uma metáfora, é preciso escolher a metáfora que mais favoreça a nossa tese. Assim, por exemplo, na Espanha os nomes com que são designados os dois partidos políticos, serviles e libertes, foram, certamente, escolhidos por estes últimos.

O nome protestantes foi escolhido por eles mesmos, assim como o de evangélicos. O nome hereges, em contrapartida, foi escolhido pelos católicos. Este princípio vale também para nomes de coisas, mesmo quando se aplique a elas mais literalmente. Se, por exemplo, o adversário propôs uma transformação, a chamaremos de "subversão”, porque esta é uma palavra hostil, e, entretanto, atuaremos de modo inverso se formos nós que fizermos a proposta. No primeiro destes casos, o oposto chama-se "ordem constituída",  no  segundo,  "regime opressor”.

O que uma pessoa totalmente sem intenção nem partidarismo chamaria de "culto” ou "doutrina pública da fé”, quem deseje falar a favor chamaria "devoção”, "piedade”, e um adversário "crendice”, "fanatismo”. No fundo, trata-se de uma sutil petitio principii: aquilo que se quer dizer é introduzido já na palavra, na denominação, da qual se deriva por um simples juízo analítico. O que um chama "manter uma pessoa em segurança” ou “colocá-la sob custódia”, seu adversário chama "encarcerá-la”. Um orador delata com freqüência sua intenção pelos nomes que dá às coisas.

Um diz: “o clero”, o outro, “os padres”. De todos os estratagemas, este é o que se usa mais freqüentemente de maneira instintiva. Fervor religioso / fanatismo; passo em falso ou caso amoroso / adultério; equívoco / obscenidade; desequilíbrio econômico /bancarrota; "mediante influência e ligações" / “mediante suborno e nepotismo”; "reconhecimento sincero” / "uma boa remuneração”.

13 - Alternativa forçada

Para que o adversário aceite uma tese, devemos apresentar-lhe também a contrária e deixar que ele escolha, ressaltando essa oposição com estridência, de modo que ele, se não quiser ser contraditório, tenha de se decidir pela nossa tese que, em comparação à outra, se mostra muito mais provável. Por exemplos desejamos que ele admita que um homem tem de fazer tudo o que seu pai lhe ordene. Para isso, perguntamos: “Deve-se obedecer ou desobedecer os pais em todas as coisas?” Ou ainda, se ele qualifica alguma coisa como "freqüente", perguntamos se por freqüente se quer dizer muitos ou poucos casos. O adversário dirá: “muitos”. É como o cinzento que, colocado junto ao negro, parece branco e, junto ao branco, parece negro.

14 - Falsa proclamação de vitória

Um golpe descarado é quando, depois de o adversário responder a muitas perguntas sem que as respostas fossem adequadas à conclusão que tínhamos em mente, declaramos e proclamamos triunfalmente demonstrada a conclusão que pretendíamos, ainda que de fato não se siga de suas respostas. Se o adversário for tímido ou tolo, e se tivermos boa dose de descaramento e uma bela voz, este golpe poderá funcionar. Este estratagema corresponde à falácia non causae ut causae (tratar como prova o que não é prova).

15 - Anulação do paradoxo

Se apresentamos uma proposição paradoxal e temos dificuldades para prová-la, proporemos ao adversário, para que a aceite ou recuse, uma proposição correta mas cuja exatidão não seja totalmente evidente, como se dela quiséssemos construir a demonstração. Se ele, suspeitando de alguma coisa, a recusar, faremos a redução ad absurdum e triunfaremos; se ele a aceitar, então já teremos dito alguma coisa de razoável e poderemos protelar a conclusão. Ou então aplicaremos o estratagema anterior e declararemos que nosso paradoxo está demonstrado. Para isto requer-se grande dose de descaramento, mas na experiência humana isto acontece, e há quem pratique este estratagema de modo instintivo.

16 - Várias modalidades do argumentum ad hominem

Argumenta ad hominem ou ex concessis. Se o adversário faz uma afirmação, devemos perguntar-lhe se não está, de algum modo — ainda que seja só em aparência — em contradição com algo que anteriormente disse ou aceitou, ou com os princípios de uma escola ou seita que ele elogie ou aprove, ou com o comportamento de membros dessa seita (ainda que se trate de membros não autênticos ou só aparentes), ou com a conduta do adversário mesmo, Se, por exemplo, defende o suicídio, logo gritamos: “Por que você não se enforca?” Ou, se afirma que Berlim é uma cidade incômoda, gritamos de imediato: "Por que você não vai embora na primeira diligência?” De uma maneira ou de outra sempre estamos sujeitos a nos deixar apanhar por semelhante tramóia.

17 - Distinção de emergência

Se percebemos que o adversário nos acossa com uma prova contrária à nossa, com frequência poderemos nos salvar mediante alguma distinção sutil, na qual não havíamos pensado anteriormente, caso a questão admita algum tipo de dupla interpretação ou dois casos diferentes.

18 - Uso intencional da mutatio controversiae

Se notamos que o adversário faz uso de uma argumentação com a qual ameaça nos abater, não devemos consentir que prossiga neste rumo e chegue até o fim, mas devemos interromper o debate a tempo, sair dele ou desviá-lo e levá-lo para outra questão. Em suma, trazer à baila uma mutatio controversiae.

19 - Fuga do específico para o geral

Se o adversário solicita expressamente que apresentemos alguma objeção contra um ponto concreto de sua tese, mas não encontramos nada apropriado, devemos enfocar o aspecto geral do tema e atacá-lo assim. Por exemplo, se temos de dizer por que uma determinada hipótese física não é crível, falaremos da incerteza geral do saber humano, ilustrando-a com toda sorte de exemplos.

20 - Uso da premissa falsa previamente aceita pelo adversário

Se já interrogamos o adversário acerca de nossas premissas, e ele as aceitou, não devemos perguntar-lhe mais nada. Devemos, isto sim, tirar nós mesmos a conclusão diretamente a partir dessas premissas. Assim, ainda que esteja faltando uma ou outra premissa, nós a presumiremos como aceita e tiraremos a conclusão. Isto é um uso da falácia non causae ut causae.

21 - Preferir o argumento sofistico

Quando nos vemos diante de um argumento adversário que é meramente aparente ou sofistico, podemos liquidá-lo ao desvendarmos seu caráter capcioso e ilusório. Mas é ainda melhor se o combatemos e despachamos com um argumento igualmente sofistico e aparente. Pois aqui não se trata da verdade, mas da vitória. Se, por exemplo, ele apresenta um argumentum ad hominem, é suficiente tirar sua força com um contra-argumento ad hominem (ex concessis). E, acima de tudo, será mais rápido, utilizar um argumento ad hominem, se isto for possível, em lugar de uma longa explicação sobre a verdadeira natureza das coisas.

22 - Falsa alegação de petitio principii

Se o adversário exigir que admitamos algo do qual derivaria imediatamente o problema em discussão, nos recusaremos a fazê-lo, considerando tal exigência uma petitio principii. De fato, nosso adversário e os ouvintes facilmente enxergarão como sendo idêntica ao problema uma proposição que lhe seja muito afim. Deste modo, lhe subtrairemos seu melhor argumento.

23 - Impelir o adversário ao exagero

A contradição e a luta impelem a exagerar as afirmações. Por isso, podemos provocar o adversário contradizendo-o e induzi-lo assim a exagerar para além do que é verdade uma afirmação que, em si e em certo contexto, pode ser verdadeira; e, uma vez refutado o exagero, é como se tivéssemos refutado também a proposição original.

Em contrapartida, quando o adversário nos contradisser, deveremos prestar atenção para não exagerar ou estender nossa tese. Com freqüência o adversário buscará também estender nossa afirmação para além do que havíamos exposto. Neste caso, é preciso detê-lo imediatamente e reconduzi-lo aos limites de nossa afirmação com um: “Eu disse isto e nada mais.”

24 - Falsa reductio ad absurdum

A arte de criar consequências. Da proposição do adversário tiram-se à força, através de falsas conseqüências e distorções dos conceitos, outras proposições que não estão ali contidas e que de fato não correspondem à sua opinião e que são, e, em contrapartida, são absurdas ou perigosas. Como agora parece que tais proposições, que estão em contradição entre si ou com verdades geralmente admitidas, procedem de suas afirmações, isto equivale a uma refutação indireta, apagoge. É um novo uso de falácia non causae ut causae.

25 - Falsa instância

Refere-se à apagoge baseada numa instância exemplum in contrarium. A [epagogê] inductio , necessita de um grande numero de casos para assentar o princípio geral; a ([apagogê]), ao contrário, basta que apresente um caso único para o qual o princípio não seja válido, para que este seja demolido. Um caso deste gênero chama-se instância, [enotasis], exemplum in contrarium, instantia. Por exemplo, a proposição “todos os ruminantes têm chifres” é demolida pelo único exemplo do camelo.

A instância é um caso de aplicação da verdade geral sob cujo conceito é preciso assumir algo com respeito ao qual aquela verdade não é válida; por conseguinte, fica completamente demolida. Mas neste raciocínio pode haver também enganos. E, por isto, quando no debate o adversário faz uso da instância, é preciso ter em conta o seguinte: 1) Se o exemplo é, na realidade, conforme à verdade. Há problemas cuja única solução autêntica é que o caso não é verdadeiro: por exemplo, muitos milagres, histórias de fantasmas, etc. 2) Se realmente entra no conceito da verdade apresentada: com freqüência isto acontece só em aparência e é preciso esclarecê-lo com uma distinção precisa. 3) Se está efetivamente em contradição com a verdade apresentada: muitas vezes isto é assim só em aparência.

26 - Retorcio Argumenti

Um golpe brilhante é a retorcio argumenti , quando o argumento, que o adversário quer usar a seu favor, pode com mais razão ser utilizado contra ele. Por exemplo, ele diz: “É apenas um menino, devemos deixá-lo fazer o que quiser”. Retorcio: “Precisamente porque é um menino, deve-se castigá-lo para que não persevere em seus maus hábitos.”

27 - Provocar a raiva

Se, diante de um argumento, o adversário inesperadamente fica zangado, devemos utilizar assiduamente esse argumento; não apenas porque é bom deixá-lo irado, mas também porque presumimos que a esta altura tocamos o lado mais fraco de seu raciocínio, e que o adversário, neste ponto, já não consegue tirar de nossas mãos o domínio da situação.

28 - Argumento ad auditores

Em geral, adota-se este estratagema quando uma pessoa culta discute com um auditório inculto. Se não dispomos de nenhum argumentum ad rem e nem mesmo de um ad hominem, formulamos um ad auditores, isto é, uma objeção inválida, mas cuja invalidade só um conhecedor do assunto pode captar. E, ainda que o adversário seja um conhecedor do assunto, não o são os ouvintes. Aos olhos destes, ele estará derrotado, tanto mais se nossa objeção conseguir que sua afirmação apareça, de algum modo, sob um aspecto ridículo. As pessoas são inclinadas ao riso fácil, e os que riem estão do lado daquele que fala. Para demonstrar que a objeção é nula, o adversário deverá entrar numa longa discussão e remontar aos princípios da ciência ou a qualquer outro recurso. Mas não é fácil encontrar um auditório interessado nisso Exemplo. O adversário diz: "Na formação da crosta rochosa primária, a massa que mais tarde se cristalizou para formar o granito e outro tipo de rochas era líquida por efeito do calor e, portanto, fundida. A temperatura tinha de ser por volta de 250° C. A massa cristalizou-se sob a superfície marítima que a cobria”. Replicamos com o argumentum ad auditores, assinalando que, a tal temperatura, e até mesmo muito antes, aos 100° C, o mar teria estado fervendo e teria se evaporado no ar. Os ouvintes riem. Para vencer-nos, o adversário terá de demonstrar que o ponto de ebulição não depende só do grau de calor, mas também da pressão atmosférica, e esta, assim que apenas a metade da água dos mares tivesse se evaporado, aumentaria até o ponto em que nem mesmo aos 250° C poderia ocorrer a ebulição. Mas isto ele não consegue demonstrar porque, para ouvintes sem conhecimentos de física, seria preciso expor todo um tratado.

29 -Desvio

Se percebemos que vamos ser derrotados, recorremos a um desvio, isto é, começamos de repente a falar de algo totalmente diferente, como se fosse pertinente à questão e constituísse um argumento contra o adversário. Isto se faz com alguma modéstia se tal desvio ainda se mantém no campo do thema questionis; e de modo bastante insolente, quando vai simplesmente contra o adversário e nada fala do tema.

Exemplo. Elogiei o fato de na China não existir uma nobreza hereditária e de os cargos serem preenchidos tão somente na base de examina. Meu adversário afirmou que ter conhecimentos não prepara para exercer um cargo mais do que os privilégios de nascimento (que ele tinha em alta consideração). Mas isto foi contestado. Ele imediatamente fez um desvio, dizendo que, na China, cidadãos de todas as classes são punidos com castigos corporais, e associou isto com beber muito chá, reprovando nos chineses ambas as coisas. Quem se deixar levar por todas estas objeções acabará se desviando da discussão e deixará escapar uma vitória que já estava em suas mãos.

O desvio insolente acontece quando aban¬dona completamente o assunto da quaestio e começa mais ou menos assim: “Sim, pois bem, como você dizia há pouco, etc...” Isto pertence, certamente, ao caso da "Ofensa pessoal”, do qual falaremos no último estratagema. Considerada em sentido estrito, o desvio é o grau intermediário entre o argumentum ad personam, que iremos discutir, e o argumentum ad hominem.

Qualquer discussão entre pessoas comuns mostra como este estratagema é, por assim dizer, instintivo. Se um debatedor lança ao outro reprovações pessoais, este não responde com uma refutação, mas sim com reprovações pessoais ao primeiro, deixando subsistir os lançados contra ele e, portanto, quase os admitindo. Atua como Cipião, que atacou os cartagineses, não na Itália, mas na África. Na guerra, às vezes um tal desvio pode ser válido. Numa discussão, não é bom utilizá-lo, pois ele acolhe as reprovações anteriormente feitas, e porque o ouvinte escuta as piores coisas de ambas as partes. Na discussão, só se deve usá-lá faute de mieux (na falta de algo melhor).

30 - Argumentum ad verecundiam

O argumento ad verecundiam (dirigido ao sentimento de honra). Em vez de fundamentos, utilizamos autoridades, segundo os conhecimentos do adversário. Diz Sêneca: Unuscuiusque mavult credere quam judicare ("qualquer um prefere crer a julgar por si mesmo”). Portanto, o jogo nos é mais fácil quando temos de nosso lado uma autoridade respeitada pelo adversário. E para este haverá tanto mais autoridades válidas quanto mais limitados sejam seus conhecimentos e suas capacidades. Se estas capacidades são de primeira ordem, haverá para ele muito poucas autoridades ou quase nenhuma. Quando muito, ele respeitará a autoridade de pessoas competentes numa ciência, arte ou profissão que para ele sejam pouco conhecidas ou de todo ignoradas; e mesmo assim com desconfiança.

Em contrapartida, as pessoas comuns têm profundo respeito ante os especialistas de todo gênero. Ignoram que quem faz de um assunto sua profissão não ama o assunto em si, e sim o lucro que ele lhe dá; e que aquele que ensina um assunto raras vezes o conhece a fundo, porque àquele que o estuda a fundo não resta, em geral, tempo para dedicar-se ao ensino. No entanto, para o Vulgus há muitas autoridades que gozam de seu respeito; portanto, se não encontramos nenhuma autoridade adequada, podemos apelar a uma aparentemente adequada, ou citamos o que alguém disse com outro sentido ou num contexto diferente. E são as autoridades que o adversário não entende aquelas que, geralmente, mais efeito obtêm.

Os ignorantes têm um respeito muito particular pelos floreios retóricos gregos e latinos. Pode-se também, caso necessário, não só deformar o sentido dessas autoridades, mas diretamente falsificá-las e inclusive citar algumas que são pura invenção. Geralmente o adversário não tem o livro à sua disposição nem tampouco sabe consultá-lo. O mais belo exemplo disto nos é dado pelo cura francês que, para não pavimentar a rua em frente a sua casa, como tinham de fazer os demais cidadãos, citou uma frase da Bíblia: paveant illi ego non pavebo (“eles que se apavorem; eu não me apavorarei”, mas, para os ouvintes de língua francesa, soava como paver, “pavimentar”). Isto convenceu o Conselho da comunidade. Também podemos usar os preconceitos gerais como autoridade. A maior parte das pessoas pensa, com Aristóteles, que [a men pollois doxei tauta ge einai phanen] (“as coisas que parecem justas a muitos, dizemos que o são”). De fato, não existe nenhuma opinião, por absurda que seja, que os homens não se lancem a torná-la sua, tão logo se tenha chegado a convencê-los de que é universalmente aceita. O exemplo vale tanto para suas opiniões quanto para sua conduta. São ovelhas que vão atrás do carneiro-guia aonde quer que as leve. Para eles, é mais fácil morrer do que pensar. É estranho que a universalidade de uma opinião tenha para eles tanto peso, pois basta-lhes observar a si mesmos para constatar como eles mesmos aceitam opiniões sem julgar, pela força do mero exemplo. Mas, na realidade, não o vêem porque estão desprovidos de todo conhecimento de si mesmos.

Só os melhores dizem, com Platão: [pollois polla dokei] (“os muitos têm muitas opiniões”), isto é, o Vulgus tem muitas lorotas na cabeça, e quem desejar livrar-se delas terá muito trabalho pela frente.

A universalidade de uma opinião, se falamos a sério, não é uma prova nem um indício de veracidade. Os que afirmam isto devem admitir: que a distância no tempo priva aquela universalidade de sua força probatória; do contrário, deveriam estar em vigor todos os antigos erros que num tempo eram universalmente considerados verdade. Por exemplo, seria preciso aceitar de novo o sistema ptolemaico ou, em todos os países protestantes, o catolicismo; 2) que a distância no espaço produz o mesmo efeito; do contrário, a diversidade de opinião entre os que professam o budismo, o cristianismo e o islamismo os   poria   em   apuros.   (Segundo Bentham, Tactique des assemblées legislatives, vol. 2, p. 79.f22)

O que se chama opinião geral reduz-se, para sermos precisos, à opinião de duas ou três pessoas; e ficaríamos convencidos disto se pudéssemos ver a maneira como nasce tal opinião universalmente válida. Então descobriríamos que, num primeiro momento, foram dois ou três que pela primeira vez as assumiram e apresentaram ou afirmaram e que os outros foram tão benevolentes com eles que acreditaram que as haviam examinado a fundo; prejulgando a competência destes, outros aceitaram igualmente essa opinião e nestes acreditaram por sua vez muitos outros a quem a preguiça mental impelia a crer de um golpe antes que tivessem o trabalho de examinar as coisas com rigor. Assim crescem dia após dia o número de tais seguidores preguiçosos e crédulos.

De fato, uma vez que a opinião tinha um bom número de vozes que a aceitavam, os que vieram depois supuseram que só podia ter tantos seguidores pelo peso concludente de seus argumentos. Os demais, para não passar por espíritos inquietos que se rebelam contra opiniões universalmente admitidas e por sabichões que quisessem ser mais espertos que o mundo inteiro, foram obrigados a admitir o que todo mundo já aceitava. Neste ponto, a concordância torna-se uma obrigação. E, de agora em diante, os poucos que forem capazes de julgar por si mesmos se calarão, e só poderão falar aqueles que, totalmente incapazes de ter uma opinião e juízo próprios, sejam o eco das opiniões alheias. E estes, ademais, são os mais apaixonados e intransigentes defensores dessas opiniões. Pois estes, na verdade, odeiam aquele que pensa de modo diferente, não tanto por terem opinião diversa daquela que ele afirma, quanto pela sua audácia de querer julgar por si mesmo, coisa que eles nunca poderão fazer, sendo por dentro conscientes disto.

Em suma, são muito poucos os que podem pensar, mas todos querem ter opiniões. E que outra coisa lhes resta senão tomá-las de outros em lugar de formá-las por conta própria? E, dado que isto é o que sucede, que pode valer a voz de centenas de milhões de pessoas? Tanto, por exemplo, quanto um fato histórico que se encontre em cem historiadores, quando se constata que todos se copiaram uns aos outros, com o que, enfim, tudo se reduz a um só testemunho. (Segundo Bayle, Pensées sus les Cometes, vol. I, p. 10.)

Dico ego tu dicis, se denique dixit et Me: Dictaquepost toties, nil nisi dieta vides.
("Eu digo, tu dizes e, no fim, o diz também ele; depois de dar-lhe tantas voltas, ninguém mais vê aquilo que se disse.”)

Não obstante, quando se discute com pessoas comuns pode-se fazer uso da opinião geral como autoridade.

Em geral, veremos que, quando duas cabeças comuns disputam entre si, a arma comum que escolheram é a autoridade: é com isto que eles combatem um ao outro. Se uma cabeça mais refinada tem de enfrentar-se com alguém deste tipo, o melhor será lhe aconselhar que se resigne a utilizar também esta arma, escolhendo-a conforme os pontos fracos de seu adversário. Pois contra a arma dos fundamentos, este é, ex hipothesi, um Siegfried com chifres, imerso na maré da incapacidade de pensar e julgar.

Nos tribunais disputa-se recorrendo exclusivamente a autoridades; à autoridade da lei, que é firme. O papel próprio da autoridade judicial é encontrar a lei, isto é, a autoridade aplicável a um caso concreto. Mas a dialética tem um espaço de ação suficiente quando, numa situação determinada, o caso concreto e a lei, na realidade alheios um ao outro, são girados até que se possa considerar que têm uma relação entre si; e também ao contrário.

31 - Incompetência irônica

Quando não se sabe opor nenhum fundamento aos do adversário, pode-se declarar com alegação irônica de incompetência: “O que você diz ultrapassa minha débil capacidade de compreensão; pode estar certo, mas não posso compreendê-lo e renuncio a todo julgamento.” Com isto insinuamos aos demais ouvintes, entre os quais gozamos de consideração, que se trata de coisa insensata. Muitos professores da velha escola eclética, ao aparecer a Crítica da Razão Pura e, sobretudo, quando começou a despertar interesse, disseram: “Não entendemos nada disso”, e com isto pensavam que a haviam demolido. Mas quando alguns professores da nova escola lhes mostraram que tinham razão e que, simplesmente, eles não a haviam compreendido, mudaram bruscamente de humor.

Este estratagema podemos utilizar tão somente quando estamos seguros de que, ante os ouvintes, gozamos de estima superior ao que têm pelo adversário. Por exemplo, um professor frente a um estudante. Na realidade, isto corresponde ao estratagema anterior e é um modo especialmente malicioso de se valer da própria autoridade em lugar de razões. O contra-ataque é: “Permita-me, com sua grande penetração você não teria a menor dificuldade para compreendê-lo, e só pode ser culpa da minha exposição”, e dar-lhe a coisa tão mastigada que ele nolens volens tenha que entendê-la e fique claro que ele, no princípio, em realidade não entendeu nada. Assim se retorce o argumento: ele queria insinuar-nos um “absurdo” e nós provamos uma "incompreensão". Ambas as coisas, com requintada gentileza.

32 - Rótulo odioso

Um modo rápido de eliminar ou, ao menos, de tornar suspeita uma afirmação do adversário é reduzi-la a uma categoria geralmente detestada, ainda que a relação seja pouco rigorosa e tão só de vaga semelhança . Por exemplo: “Isso é maniqueísmo”, “É arianismo”, “É pelagianismo”, “É idealismo”, “É panteísmo”, “É brownianismo”, “É naturalismo”,”"É ateísmo”, “É racionalismo”, “É espiritualismo”, “É misticismo”, etc. Com isto, fazemos duas suposições: 1) que aquela afirmação é efetivamente idêntica a essa categoria ou, ao menos, está compreendida nela e estamos dizendo: “Ah, isto nós já sabemos!”; e 2) que esta categoria já está de todo refutada e não pode conter nenhuma palavra verdadeira.

33 - Negação da teoria na prática

“Isso pode ser verdade em teoria; mas na prática é falso.” Com este sofisma, aceitam-se os fundamentos mas negam-se as conseqüências; em contradição com a regra: a ratione ad rationatum valet consequentia (“da premissa à conseqüência a conclusão é obrigatória”). Essa afirmação expressa algo que é impossível: o que é certo na teoria tem de sê-lo também na prática. E, se não o é, há uma falha na teoria: algo foi ignorado e não foi avaliado; por conseguinte, é falso também na teoria.

34 - Resposta ao meneio de esquiva

Se o adversário não dá uma informação ou resposta direta a uma questão ou a um argumento, e se esquiva com uma contrapergunta ou uma resposta indireta, refugiando-se numa proposição que não tem a ver com o tema e indo para qualquer outro lugar, isto é um sinal claro de que nós (às vezes sem sabê-lo) encontramos um ponto fraco, pois esta atitude, por sua vez, corresponde a um mutismo relativo. Devemos portanto persistir no ponto e não deixar o adversário sair do lugar, mesmo quando não vejamos ainda em que consiste a debilidade que aí encontramos.

35 - Persuasão pela vontade

O qual, se puder ser utilizado, tornará supérfluos todos os demais: em vez de fornecer razões ao entendimento, influi-se com motivações na vontade, e o adversário, do mesmo modo que os ouvintes quando têm um interesse em comum com ele, são subitamente ganhos para a nossa opinião, mesmo que esta tenha sido tomada de empréstimo num manicômio. Pois na maior parte das vezes, pesam mais umas migalhas de vontade que uma tonelada de compreensão e persuasão. Naturalmente, isto só funciona em circunstâncias muito particulares. Fazemos o adversário perceber que sua opinião, desde o momento em que seja aceita, faria um dano notável a seus próprios interesses e ele a deixará cair com a mesma rapidez com que soltaria um ferro candente que inadvertidamente tivesse agarrado . Por exemplo, um eclesiástico defende um dogma religioso. Fazemo-lo observar que isso está indiretamente em contradição com um dogma fundamental de sua igreja, e ele o abandonará.

Um proprietário de terras afirma a excelência da mecânica na Inglaterra, onde uma máquina a vapor realiza o trabalho de muitos homens. Fazemo-lo observar que logo também os veículos serão arrastados por máquinas a vapor; com isso cairá o preço dos cavalos de seus numerosos estábulos; e veremos o que ele diz. Em tais casos a reação mais freqüente é: Quam temere in nosmet legem saneimus iniquam ("Com que rapidez sancionamos uma lei que vai contra nós!”).

Sucede assim quando os ouvintes, mas não o adversário, pertencem a uma seita, corporação, sindicato, clube, etc. A tese que ele sustenta pode ser justa, mas é suficiente aludir o fato de que vai contra os interesses comuns da referida corporação, etc, e todos os ouvintes acharão os argumentos do adversário frouxos e mesquinhos, ainda que sejam excelentes, e os nossos justos e acertados, ainda que sejam mera burla. O coro se proclamará ruidosamente a nosso favor, e o adversário, envergonhado, terá de abandonar o campo. Sim, os ouvintes geralmente acreditarão ter dado sua aprovação por pura convicção. Na realidade, o que nos desfavorece parece, na maior parte das vezes, absurdo ao entendimento. Intellectus luminis sicci non est, etc. (citação completa): “O entendimento não é uma luz que arde sem óleo, mas é alimentado pela vontade e pelas paixões.” Este estratagema poderia ser designado como “colher a árvore pela raiz”; geralmente é chamada argumentam ah utili.

36 - Discurso incompreensível

Desconcertar, aturdir o adversário com um caudal de palavras sem sentido. Isto baseia-se em que

"Gewonlich glaubt der Mensh,
Wenn er nur Worte hort,
Es musse sich dabei doch auch was
denken lassen."

“Normalmente o homem, ao escutar ? palavras, acredita que também deve haver nelas algo para pensar” (Goethe, Fausto).

Se no fundo está convencido de sua própria debilidade, se está habituado a escutar todo tipo de coisas que não compreende e faz como se as entendesse, podemos impressioná-lo oferecendo, com ar grave, um absurdo que soe como algo douto e profundo, face ao qual careça de vista, ouvido e pensamento, e apresentá-lo como prova incontestável de nossa própria tese. Como se sabe, em tempos recentes, alguns filósofos adotaram este estratagema frente a todo o público alemão, com êxito brilhantíssimo. Mas, como se trata de exemplar odiosa, recorreremos a outro exemplo, antigo, tomado de Goldsmith, Viçar of Wakefield, p. 34.

37 - Tomar a prova pela tese

(O qual deveria ser um dos primeiros.) Se o adversário tem de fato razão e felizmente escolheu, para defender-se, uma prova ruim, será fácil refutarmos essa prova, e daremos isto como uma refutação da tese mesma. No fundo, isto reduz-se a apresentar um argumentum ad hominem por um ad vem. Se ao adversário ou aos ouvintes não lhes vem à mente uma prova melhor, vencemos. Por exemplo, se alguém emprega, para provar a existência de Deus, o argumento ontológico que é fácil refutar. Esta é a forma pela qual bons advogados perdem uma causa boa. Querem defendê-la com uma lei que não é aplicável e aquela que é aplicável não lhes vem à mente.

38 - Ultimo estratagema

Quando percebemos que o adversário é superior e que acabará por não nos dar razão, então nos tornamos pessoalmente ofensivos, insultuosos, grosseiros. O uso das ofensas pessoais consiste em sair do objeto da discussão (já que a partida está perdida) e passar ao contendor, atacando, de uma maneira ou de outra, a sua pessoa. Isto poderia chamar-se argumentum ad personam para distingui-lo do argumentum ad hominem. Este se afasta do objetivo propriamente dito para dirigir-se aquilo que o adversário disse ou admitiu. Em troca, quando argumentamos ad personam, o objeto é deixado completamente de lado e concentramos o ataque na pessoa do adversário, e a objeção se torna insolente, maldosa, ultrajante, grosseira. É um apelo desde as forças do espírito às do corpo, à animalidade. Esta regra é muito popular, pois todo mundo é capaz de aplicá-la e, por isto, é usada com freqüência. Mas é preciso perguntar-nos que contra-ataque poderá empregar a parte contrária, pois, se quiser pagar na mesma moeda, se chegará a uma rixa, a um duelo ou a um processo por injúria.

Seria um grande erro pensar que basta evitar toda alusão pessoal. Na realidade, o fato de demonstrar a alguém, com todo comedimento, que não tem razão e que, por conseguinte, julga e pensa de maneira equivocada — e assim se dá em todo triunfo dialético — o amargura mais do que qualquer expressão rude e ultrajante. Por que Porque, como diz Hobbes (De eive, cap. I): Omnis animi voluptas omnisque alaeritas in eo sita est quod quis habeat, quibuseum eonferens se, possit magnifiee sentide de se ipso (“Todo prazer do espírito e todo contentamento consistem em termos alguém em comparação com o qual possamos ter alta estima de nós mesmos”). Nada supera, para o homem, a satisfação de sua vaidade e nenhuma ferida dói mais do que aquela que a atinge. (Daí procedem expressões como “a honra vale mais que a vida”, etc.) Esta deleitação da vaidade provém principalmente da comparação de nós mesmos com os demais em todos os aspectos, mas especialmente no que se refere às capacidades intelectuais. E esta comparação se dá de maneira efetiva e muito violenta nas controvérsias. Daí o furor do derrotado, mesmo quando não lhe fazem injustiça, e daí que ele se refugie, como ultimo recurso, neste último estratagema, sem que isto possa ser evitado com simples gentileza da nossa parte. Ter muito sangue frio pode ser de enorme utilidade nessas ocasiões, se, quando o adversário passa aos ataques pessoais, respondemos com calma que isso não tem nada a ver com o tema discutido e retornamos rapidamente a este e continuamos a demonstrar que objetivamente o adversário não tem razão, sem prestar atenção às suas ofensas; portanto, mais ou menos como diz Temístocles dirigindo-se a Euribíades: [patakson men, akouson de] (Bate, mas escuta.) Mas isto não é dado a todos.

O único contra-ataque seguro é, portanto, a que já Aristóteles indicava no ultimo capítulo dos Tópicos: não entrar em controvérsia com qualquer um que chegue, mas só com aqueles que conhecemos e dos quais sabemos que têm inteligência suficiente para não propor coisas absurdas que levem ao ridículo, e que têm suficiente talento para discutir à base de razões e não com bravatas, para escutar e admitir tais fundamentos, e que, enfim, apreciem a verdade, prestem com gosto o ouvido às razões, mesmo quando procedam da boca do adversário, e sejam o bastante equitativos para suportar que não se lhes dê razão, quando   a  verdade   está  do   outro  lado. Disto segue-se que, entre cem pessoas, há apenas uma com a qual valha a pena discutir. Aos demais, deixemos que digam o que querem, porque desipere est júris gentium (ser idiota é um dos direitos do homem) e pensemos no conselho de Voltaire: La paix vaut ene ore tnieux que Ia vérité (“A paz vale ainda mais que a verdade”) e um provérbio árabe diz: “Da árvore do silêncio pende, como fruto, a paz”.

Em todo caso, a controvérsia é, com frequência, útil para os dois lados, como um roçar de cabeças que serve para cada um retificar os próprios pensamentos e também para adquirir novos pontos de vista. Mas os dois contendores devem ser similares em cultura e inteligência. Se um carece da primeira, não capta tudo, não está au niveau. Se carece da segunda, o rancor que este fato produz o instigará à deslealdade, à astúcia, à vilania.

Entre a disputa in colloquio privato s. familiari e a disputatio solemnis, pro gradu, etc, não existe uma diferença essencial. A diferença é tão só que, nesta ultima, se requer que o respondens (aquele que responde) deva sempre ter razão face a seu opponens (contendor) e, quando preciso, o praeses (aquele que preside o debate) virá em sua ajuda. Ou também que, nesta ultima, se argumenta de um modo mais oficial e os contendores revestem os argumentos de uma forma silogística rigorosa.

domingo, 1 de janeiro de 2012

O cristianismo é culpado pela escravidão? - Ravi Zacharias

Sam Harris também critica o cristianismo pela escravidão, o que eu acho muitíssimo irônico (ver Carta, 14-19). Na superfície, ele defende a igualdade da dignidade humana (ver Carta 18). Ao mesmo tempo, ele faz piada com a crença de bilhões de pessoas e quer erradicar essas crenças com base na sua crença de que o cientista que crê somente na matéria é, de fato, intelectualmente superior. Ele diz expressamente que 93% dos cientistas não reconhecem a idéia de Deus (Carta 39). De onde ele tirou esse número? De que cientistas ele está falando? Eles são ocidentais ou orientais, comunistas ou capitalistas? E se uma porcentagem de cientistas orientais mais alta que a de cientistas ocidentais acredita em Deus? Isso provaria que os ocidentais são superiores do ponto de vista intelectual aos orientais? Já vi dados estatísticos afirmando que 40% dos cientistas realmente acreditam em Deus. [1]

Mesmo se o número de Harris for verdadeiro, não podemos contestar que, só porque uma porcentagem alta de pessoas acredita em algo, isso não torna esse algo moralmente correto? Existe um motivo porque a escravidão não é tratada diretamente na Bíblia, como Harris deseja que fosse. Evidentemente ele não leu Jó 31.13-15, em que Jó defende a justiça para aqueles que trabalham para ele e que tanto ele quanto seus trabalhadores são iguais na condição humana.

O Novo Testamento contém uma carta bela e terna escrita pelo apóstolo Paulo a Filemom, um proprietário de escravo. Nessa carta, Paulo pede a Filemom que trate seu escravo fugido não como a um servo, mas como a um irmão. Numa frase importante, Paulo escreve: “Mesmo tendo em Cristo plena liberdade para mandar que você cumpra seu dever” (v. 8); mas não manda. Em vez disso, ele apela não meramente para o direito terreno, mas para o direito mais sublime do amor: “Assim, se você me considera companheiro na fé, receba-o como se estivesse recebendo a mim. Se ele o prejudicou em algo ou lhe deve alguma coisa, ponha na minha conta” (v. 17,18). O que mais Sam Harris gostaria que ele dissesse?

Ao contrario do igualitarismo que a fé cristã ensina expressamente, os escritos de renomados ateus são contra o igualitarismo. Igualitarismo não é dogma do ateísmo. Ouça Nietzche: “A igualdade é uma mentira inventada por pessoas inferiores que querem se reunir em bandos para superar o poder daqueles que são naturalmente superiores a elas. A moral dos ‘direitos iguais’ é a moral de rebanho e, porque se opõe ao cultivo de indivíduos superiores, leva à corrupção da espécie humana” [2]

Temos aqui um deles nos dizendo que existem seres humanos “superiores” e “inferiores”. Já trilhamos o caminho ateísta antes e ele nos levou ao Holocausto. Foi a crença numa moral absoluta, num igualitarismo divino verdadeiro, que pôs fim à escravidão. O motivo por que Jesus não fala nada sobre o problema da escravidão é muito simples. Ele não se manifestou sobre muitas questões que o “direito” poderia tratar sem mudar o coração, entre eles a derrubada de Roma – o império que havia escravizado sua amada Jerusalém e seu povo. Seus discípulos queriam que ele falasse ousadamente contra as leis de Roma, que os explorava e lhes restringia a prática da fé. Na verdade, aqueles que queriam calar Jesus até opuseram Roma contra ele, mas ainda assim ele não falou contra a tirania romana.


Notas:

1 – Ver Larson, E. J.; Witham, L. Scientists Are Still Keeping the Faith, Nature 386, 1997, p. 435-36; ver também Collins, Francis. Why This Scientist Believes in God, 6 de abril de 2007. Disponível em: HTTP://www.cnn.com/2007/US/04/03/collins.comentary/index.html> Acesso em: 1 de outubro de 2007.

2 – Citado em Novak, Philip. The Visiono f Nietzche, London: Veja, 2001, p. 16.


Texto retirado do livro "A morte da Razão - Uma resposta aos neoateus"