sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Qual é a causa da morte?

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A morte possui, em relação ao homem, vastas implicações filosóficas e teológicas. Podemos conceder ao fisiologista tudo o que ele deseja e reivindica; ele não é inimigo da fé cristã, uma vez que permanece em seu domínio dos acontecimentos fisiológicos e materiais. Podemos deixar que ele explique-nos como a morte ocorre. Não há dúvidas de que os cientistas notem o quanto é difícil definir a morte em termos biológicos quanto os teólogos e filósofos encontram dificuldade para responder a todos os questionamentos levantados pelo materialista e o incrédulo. Como exemplo de tal tentativa da ciência para indicar as causas da morte em termos que possuem algum significado, posso citar a da Encyclopaedia Britannica, sobre a palavra Biologia: “Investigações recentes chegaram à conclusão de que a causa imediata da detenção da vitalidade, no primeiro momento, e sua destruição, no segundo, é a coagulação de certas substâncias no protoplasma, e que a última contém várias matérias coaguláveis, que solidificam em temperaturas diferentes, dependem da destruição de sua substância fundamental neste calor, e até o ponto  em que a morte é provocada pela coagulação de compostos meramente acessórios”. Desta passagem nós vemos a hesitação dos mais recentes investigadores quando tentam definir a morte de outra forma, através sinais acidentais que mostram que isto ocorreu. Os teólogos e filósofos católicos são convidados a dar maior esclarecimento das causas deste terrível fenômeno.

Como cristãos, temos nossos próprios problemas na questão da morte, alguns que podem ser atribuídos ao teólogo e outros ao filósofo. O teólogo pergunta porquê a humanidade, em geral, considera a morte como uma pena. A questão do filósofo é diferente: ele pergunta como o fenômeno está relacionado com a maldade da alma espiritual.

A fé católica, que é o local adequado do teólogo, ensina que a morte do homem é uma punição: “Por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram” [1]. A fé católica não considera a morte dos animais em qualquer modo ou sentido de pena, mas, para a morte do homem, é deliberadamente afirmado que ela é o resultado do pecado. Como teve origem essa interpretação do fenômeno da morte? Por que é considerada uma medida punitiva, quando todas as aparências disso tem a inevitabilidade de uma lei de natureza similar que governa a morte dos animais? Como um evento de ordem natural pode tornar-se um castigo? A resposta é encontrada na força de uma pressuposição. A fé pressupõe algo que pode ser conhecido sozinho: ela pressupõe que Deus fez a estrutura física do homem imortal por meio de um presente especial, um presente adicionado à natureza humana, mesmo que separável dele. Deus projetou toda humanidade de modo a possuir um dom extra: o dom da imortalidade. O homem a perdeu através de seu pecado, por causa da culpa de seu ato. Assim – mesmo pressupondo este dom adicional – é perfeitamente exato dizer que a morte é uma punição, não um acontecimento normal. Os teólogos comumente admitem que sem este dom o homem não é, e de fato não poderia ser, imortal corporalmente. Não pretendemos saber ou dizer que não seria possível ao Criador fazer um organismo corporal vivo que dure para sempre em virtude suas características naturais intrínsecas. O mais provável é que não é acima do poder do Criador produzir um organismo desse tipo; a teologia não se preocupa com essa hipótese. Nossas especulações estão confinadas com aquele organismo que conhecemos e que é dito no livro de Gênesis que foi formado do barro. A respeito de tal organismo o teólogo diz que, embora deixado a si mesmo cedo ou tarde caia, tal queda não esteve de acordo com intenções iniciais de Deus. Mas que ele planejou evitar que decaia por um dom adicional de característica inteiramente sobrenatural. A retirada deste dom através do ato do pecado pode ser verdadeiramente considerado como a causa da morte, neste sentido, relativo a este pressuposto. Seria precipitado negar a Deus o poder de fazer um organismo que pudesse ser naturalmente imortal. Se assim tivesse feito o homem, o pecado não seria penalizado pela morte, uma vez que ele nunca destrói o que está de acordo com sua natureza. Não foi assim, contudo, a forma que Deus criou o homem. Ele não fez um homem naturalmente imortal em sua estrutura corpórea; pelo contrário, ele o fez naturalmente mortal, mas adicionou à mortalidade o dom da imortalidade sobrenatural. Assim, o que é sobrenatural – exceto, de fato, o estado de Visão Beatífica, pode sempre ser perdido ou retirado. Essa insistência terrível de Deus a respeito da mortalidade fundamental do homem é a chave para o capítulo da Queda no Gênesis: “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar” [2]. O dom da imortalidade dado por Deus ao homem foi inteiramente gratuito e sobrenatural em sua qualidade. É realmente impossível para nós dizer ou imaginar em que isso consistiu. Isso foi mais que um estado externo, guardando o homem de todas as possíveis forças que poderiam ter causado a morte; foi uma qualidade inerente e intrínseca, embora pudesse ser perdida, como a graça também pode ser perdida. Estava no homem o poder para viver, mas também estava nele o poder para morrer, se ele escolhesse demonstrar-se infiel ao pacto de Deus com ele: “mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente.“ [3].

A morte, então, era conhecida pelo homem como uma contingência possível mesmo nos dias de sua inocência; Adão não conheceu o mal; ele não sabia que estava nu; mas ele sabia, mesmo no estado de total ignorância, que poderia morrer; o significado da palavra morte era claro para ele: “Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais. Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis” [4].

Esta clara apreciação do significado da morte pelo homem, quando ainda não conhecia nenhum mau, traz à tona a gratuidade, alguém poderia até dizer precariedade, natural do dom da possível imortalidade que foi concedido a ele.

É evidente, portanto, que a tradição católica que considera a morte como uma pena tão sabiamente não interfere nas investigações físicas sobre as causas da morte. Não é a verdadeira essência do pensamento católico neste assunto assumir que a punição do homem encontra-se neste aspecto particular, que seu corpo deveria ser deixado à sua fraqueza congênita, a sua deterioração natural, quando a interrupção ou remédio de qualidade sobrenatural da imortalidade é dado? Resumamos estas considerações nas concisas palavras de São Tomás: “A morte é natural por conta das condições da matéria, mas é penal por conta da perda do dom divino que tem o poder de preservar da morte” [5].

Mas o teólogo não é a única autoridade a ser atacada pela explicação exclusivamente secular da morte. O filósofo católico, especialmente o filósofo escolástico, é chamado a explicar como, com a doutrina que ele mantém a respeito da alma humana, ele pretende deixar a morte às causalidades meramente físicas. Se uma essência espiritual, uma alma imortal, anima o corpo, se é, na terminologia escolástica, a forma do corpo, não se deve assumir que a morte ocorre somente – pode ocorrer somente – quando aquela alma sai do corpo? Assim, uma vez que a alma é alegada como o princípio e fonte de vida do corpo, desde que esteja no corpo, o organismo deve estar vivo. Agora, diz o fisiologista, o fenômeno da morte pertence inteiramente ao plano material das coisas; em nenhum momento, em nenhum estágio da decadência corporal algo é retirado ou modificado por alguma ação mística chamada “alma”. Não tem sido considerado necessário definir a morte como a partida da alma; a morte é suficientemente explicada e amplamente descrita, diz, não somente o materialista, mas o vitalista, através de causas que não transcendem a ordem dos dados observáveis. O fisiologista está, de fato, correto em sua opinião da natureza física dos fatores que causam a morte no homem; mas ele está errado em supor, como constantemente faz, pelo menos por implicação, que se houvesse realmente uma alma imortal nas coisas humanas, um rumo diferente seria tomado. A insinuação é, obviamente, que não há alma; que uma alma humana não poderia morrer, tal é a conclusão não mencionada do adversário da filosofia espiritualista. É, portanto, a própria natureza da presença permanente da alma no homem ser de tal tipo que o fenômeno da morte não destina a ser interrompido pela alma em qualquer tempo ou sob quaisquer circunstâncias, nem ser interferido por ela; a filosofia católica nunca considerou a alma como tendo este dever ou função. Nós dizemos que a presença de uma alma imortal do homem pode ser vagamente ou estritamente, de acordo com a escola que os pensadores cristãos pertencem. A vaga visão é mais imaginativa, mas fenomenalista; é vista sobre a alma espiritual como sobre uma substância extramundana habitando em um corpo material. Para estes pensadores poetas, bastantes filosóficos, que apoiam tais visões a morte seria a destruição da casa da alma, uma destruição provocada por operações materiais. A casa estando destruída, a alma cria asas, vai para o mundo puramente espiritual, bom ou mal. Tal poesia seria suficiente para visualizar a morte como um fato inteiramente terrestre.

A tarefa do rigoroso escolástico, que é também o pensador católico mais exato, vai, portanto, ser mais difícil. Para ele a alma espiritual no homem é a “forma” do corpo, o princípio de unicidade na vida e personalidade do homem. A alma, na ortodoxa filosofia católica, é mais que uma habitante no corpo; é para o corpo a causa que o faz ser o que é. Pode o escolástico, que também é um católico, serenamente ignorar a alma no fenômeno da morte, quando toda sua filosofia o faz sustentar que a união entre a alma e o corpo no homem é a maior e mais intima de todas as ligações? A resposta é que o estudioso, como os modernos fisiologistas, olham para as ações inteiramente materiais como causas da morte no homem. Para o escolástico, a morte não é uma separação entre a alma e o corpo; é a quebra, a “dissolução” do corpo. A alma parte, se diz, pois a morte ocorreu, pois o organismo está morto, e não vice-versa: o homem não morre pela saída da alma do corpo, mas a alma sai porque ele morreu. Tudo isso está em conformidade com o modo especial da função que nossos filósofos atribuem à alma. A alma é a causa formal do corpo, não a causa eficiente: esta distinção é a raiz desta peça importante da realidade criada. Um espírito como a alma pode somente ser a “forma” de um corpo se certas disposições materiais e predisposições forem providas para sua recepção. Estas predisposições muito importantes são produzidas por causas eficientes, como a geração dos pais, e muitos outros fatores. Agora, outras causas eficientes podem debilitar estas disposições indispensáveis, ou melhor: podem destruí-las completamente. Chamamos esta ação de morte. Sem estas disposições, a alma não pode mais ser a “forma” do corpo: a própria definição de “forma” contrariaria esta continuação. Não estamos aqui preocupados com a sobrevivência da alma após a morte ou o destino e futuro da alma quando ela cessa de “informar” o corpo; estes pontos serão tratados inteiramente aos poucos. Nossa tarefa agora é tornar claro que, de acordo com os próprios princípios de nossa filosofia espiritualista, nossa fé na presença de uma alma no homem não obriga-nos explicar a morte de outra forma além de uma corrente de causas exclusivamente de ordem material.

Notas:
[1] Romanos V, 12;
[2] Genesis III, 19;
[3] Genesis II, 17;
[4] Genesis III, 4.
[5] Suma, II-II, Q. CLXIV, art I.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A unidade do Sacrifício cristão

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Quase todos sabem que a censura principal do protestantismo contra a doutrina católica do sacrifício eucarístico é este: a Igreja Católica, ao ensinar a necessidade de um segundo sacrifício, nega virtualmente a suficiência total do sacrifício do Calvário. Entretanto, a Igreja nunca cessou de proclamar por todos os meios ao seu alcance que seu sacrifício eucarístico não constitui de forma alguma uma abolição do sacrifício natural de Cristo na Cruz, mas é, pelo contrário, uma tributada à grande ação redentora de Cristo. O sacrifício do altar cristão e do Calvário são um mesmo sacrifício, ensina a Igreja Católica. Ao mesmo tempo, a Igreja sustenta que o sacrifício eucarístico o é, em toda extensão da palavra, um ato que se renova diariamente, mesmo que seja o antigo sacrifício. Se unem de forma particular, portanto, nesta matéria divina, a unidade e a dualidade. Opino que, se não nos segurarmos fortemente no conceito sacramental do sacrifício eucarístico, será impossível refutarmos o argumento protestante. Mas, uma vez que fizemos alusão do verdadeiro sentido do sacramento, a dificuldade proposta se desvanece e ressalta a unidade fundamental do sacrifício cristão.

Se o sacrifício eucarístico fosse, de alguma maneira, natural, seria impossível evitarmos o fato de que haveria dois sacrifícios diferentes, o que levaria à pergunta de “por que dois sacrifícios?” de forma absolutamente lógica. A circunstancia de que o segundo sacrifício se realiza em condições totalmente distintas não nos permitiria evitar esta conclusão; se o sacrifício é in natura, por mais encoberto que seja, é, de fato, outro sacrifício e não o mesmo.

Mas se, por sua vez, o sacrifício é um sacramento em todo sentido do termo, não pode ser um novo holocausto, e se transforma na representação pura e simples do sacrifício histórico ou natural.

Se no sacrifício eucarístico houvesse uma imolação, uma morte, ou um ato heróico de qualquer tipo que não formasse parte do sacrifício da Cruz, se converteria imediatamente num segundo sacrifício, pois em tal caso ocorreria no mundo da graça algo novo, algo que não se realizou na Cruz.

O que constitui o prodígio e natureza própria do sacramento cristão é, precisamente, ser um ato que pode repetir-se de forma indefinida, mesmo que seu conteúdo (ou objeto) permaneça imutável.

Tal é o papel representativo do sacramento cristão. Coisa semelhante não pode acontecer fora da esfera sacramental: o sacramento não é, por acaso, este mistério da incessante repetição ou representação de uma coisa imutável em si mesma? Se Cristo se apresentasse aos nossos olhos em seu estado natural e nessas condições fosse oferecido ao Pai, esta nova vinda e nova oferenda seriam feitos históricos e formariam novas etapas na existência do Filho de Deus. A presença sacramental e a oferenda sacramental não são acontecimentos históricos na vida de Cristo; não constituem capítulos diferentes no livro de Sua existência, mesmo que, naturalmente, o ato pelo qual instituiu a Eucaristia, oferecendo-se pela primeira vez, é um fato fundamental em sua trajetória histórica. Ser oferecido sacramentalmente não forma parte da existência histórica do Filho de Deus. Se existe repetição nos atos, não a efetua Cristo, mas a Igreja militante na terra. “Assim como o que oferecemos em diversos lugares é um só Corpo e não muitos Corpos, do mesmo modo é um único sacrifício”. Sicut enim quod ubique offertur unum est corpus et non multa corpora, ita et unum sacrificium (III, Q. LXXXIII, art. I ad 1m.)

É curioso observar como um erro de princípio nestas altas disciplinas pode conduzir a divergências profundas de pensamento e, até mesmo, a apresentações perigosas da verdade católica. Para salvaguardar a unidade do sacrifício cristão, foi formulado em nossos dias a estranha hipótese de que o sacrifício eucarístico, mas que uma representação do sacrifício da Cruz, é uma parte integrante dele. Se considera a ambos os sacrifícios, o atual e o da Última Ceia, como outras etapas do grande sacrifício total que culminou sobre a Cruz.

Não me proponho criticar as diversas opiniões teológicas. Entretanto, é algo certo que considerar o sacrifício eucarístico como parte integrante do sacrifício universal equivale a deformar e alterar o papel que a tradição atribui ao sacramento. Por mais importante que seja o drama, o sacramento não forma parte dele; é, por sua própria essência, a representação do drama já terminado. O drama histórico deve encontrar-se completo antes que possam existir sacramentos, já que eles são memoriais do fato realizado, e não prólogos nem epílogos de grandes acontecimentos históricos. Se o sacrifício eucarístico fosse, de alguma forma, parte de um sacrifício universal, se representaria unicamente a si mesmo; conteria somente a si mesmo; não aplicaria outra graça além da que lhe corresponde como parte; não conteria outra imolação além da justificada por seu caráter limitado dentro de uma realidade superior. Entretanto, o sacramento cristão e, principalmente, o sacramento-sacrifício,, é uma representação, uma aplicação, uma imolação e uma plenitude de toda a imensidão do sacrifício universal. Se desejamos salvar a integridade essencial de nossa Missa, devemos vê-la como algo que existe por si mesmo, e nunca como o começo ou o fim de outra realidade, por mais divina e poderosa que seja.

Compreendo bem a tentação intelectual de quem abandonou o ponto de vista sacramental em termos gerais e, especialmente, a visão sacramental do sacrifício eucarístico. Se encontra diante de uma dualidade desconcertante, e crê vencê-la fazendo da Missa uma parte do sacrifício cristão. Crê, assim, no que poderíamos chamar de unidade orgânica, se é que podemos considerar “uno” aos diversos membros de um mesmo corpo. Na teoria que acabamos de mencionar, a Missa se converte em um membro, não no corpo inteiro. No conceito tradicional, pelo contrário, a Missa é o todo; contém Cristo totalmente, com todo o tipo de integridade que descrevemos no capítulo anterior. Não é, por acaso, um dos princípios básicos do sacrifício eucarístico a plenitude e o caráter definitivo do holocausto da Cruz? Se a Missa acrescentasse algo à Cruz, deixaria de ser sacramento, deixaria de representar. A Missa é a recordação, o memorial, da Paixão de Cristo. Que outra coisa representa o monumento se não for a vitória completa, o ato heróico,
o triunfo definitivo? Não erguemos monumentos aos fracassos, nem aos projetos não concluídos. Remover algo da plenitude do sacrifício da Cruz, por um lado, e da plenitude do sacrifício da Missa, por outro, não é uni-los em um único organismo, mas destruir os dois. É impossível aqui fazer um todo com duas metades, pois o sacramento e a realidade natural são coisas totalmente diferentes. Se unificam por meio dessa mesma diversidade, como já disse, pois um é a representação completa da totalidade da outra. A visão tradicional da Igreja, como provarei adiante, é que o sacrifício do Calvário foi completo e perfeito dentro do gênero “sacrifício”; a Eucaristia não pode acrescentar-lhe nada, pois ela é de fato “o resplendor de sua glória e figura de sua substância”.

Voltando ao argumento protestante, podemos ainda responder que essa posição é compreensível se é negado todo o sistema sacramental, raízes e ramos, convertendo a fé em um único caminho até Cristo; mas caso se admita algum sacramento-regeneração, há de admitir-se o sacramento-sacrifício; falo aqui do Batismo e da Eucaristia.

Em ambos os casos não existe mais que uma representação – no sentido técnico do termo – da Morte de Cristo, e sua aplicação à alma em particular. Se o Batismo não é uma abolição do sacrifício de Cristo sobre o Gólgota mas, pelo contrário, é o sinal da vitória do Senhor, por que a Eucaristia seria uma abolição? Em ambos os casos não tratamos com outros modos de contato entre as almas e o Cristo histórico? O sacrifício eucarístico poderá ser um contato mais vivo, mais ardente, caso prefira, mais cheio de virtude ativa que de passividade, já que contém uma substância divina; mas, apesar de tudo, não existe diferença radical, em termos rigorosamente teológicos, entre Batismo e Eucaristia, considerando esta última em sua verdadeira função sacramental de sacrifício e alimento espiritual.

Conviria solucionar agora uma dificuldade que pode desconcertar aos pensadores mais minuciosos, aos analistas mais finos de questões teológicas. O sacrifício eucarístico foi oferecido pela primeira vez na Última Ceia, antes que tivesse lugar o sacrifício natural da Cruz. Isso não indica que o sacrifício da Eucaristia constitui, de certa forma, o inicio de todo o processus da imolação cristológica? Cristo por acaso não realizou, ao oferecer-se em sacrifício no cenáculo, o primeiro ato desse sacerdócio que culminou no Calvário? Repito aqui o que seria extremamente difícil, se não impossível, localizar a Última Ceia no quadro da redenção, se damos ao sacrifício eucarístico o sentido e o valor de um sacrifício natural. Se o fosse, seriamos obrigados a aceitar a conclusão de que o mundo foi redimido antes que Cristo derramasse sua primeira gota de sangue, uma vez que a Última Ceia possuiria, por direito próprio, valor infinito de sacrifício.

A outra alternativa naturalmente seria a que alguns teólogos modernos adotam, cujas opiniões já citei; eles consideram a Última Ceia como o primeiro ato de um sacrifício universal, fazendo com que a realidade natural e sacramental se apóiem mutuamente. Apesar disso, se admitimos desde o princípio a visão sacramental do sacrifício eucarístico, toda dificuldade desaparece. Uma vez que o sacramento é, por essência, uma representação, Cristo poderia instituí-lo em qualquer momento, desde que exista corporalmente na realidade da Encarnação, e não somente na esperança dos crentes.

Essa realidade imensa, Cristo imolado na Cruz, poderia ser representada antes ou depois do Calvário, e mesmo que o sacramento derive toda sua verdade e eficácia da Morte de Cristo, sua instituição, celebração e até mesmo seu uso podem preceder a essa morte. A celebração do sacrifício que Cristo realizou não substituiu a finalidade da Cruz, como também não a substituiu a primeira fração de pão efetuada na Igreja cristã depois da vinda do Espírito Santo. Somente os sacramentos estão sublimados de tal forma acima dos acontecimentos históricos.

Falando do Batismo, São Tomás nos apresenta sucintamente a teologia dessas maravilhosas “antecipações” de Nosso Senhor. Considerando como coisa certa que os homens poderiam ter recebido o batismo antes mesmo da morte de Cristo na Cruz, ele afirma: “Mesmo antes da Paixão de Cristo, o Batismo recebia sua eficácia dessa Paixão, uma vez que a prefigurava, mas a figurava de forma diferente dos sacramentos da Lei Antiga, que eram exclusivamente figuras, enquanto que o Batismo, antes da Morte de Cristo, recebia o poder de justificar desse mesmo Cristo, cuja virtude a Paixão havia de transforma-se em fonte de salvação”. Etiam ante passionem Christi baptismus habebat efficaciam a Christi passione, in quantum eam praefigurabat: aliter tamen, quam sacramenta veteris legis, nam illa erant figurae tantum; baptismus autem ab ipso Christo virtutem habebat justificandi, per cujus virtutem ipsa etiam passio salutifera fuit (III. Q. LXVI, art. II ad 1m).

Aplicando esta doutrina ao sacrifício eucarístico da Última Ceia, podemos dizer que ele prefigurava o sacrifício da Cruz; o Cristo que logo daria sua a própria Carne e Sangue naturais o poder de redimir a humanidade, deu ao pão e vinho a virtude de representar sacramentalmente essa mesma Carne e Sangue. Não é preciso considerar, como certos pregadores gostam de fazer, o sacrifício eucarístico da Última Ceia como um voto final do Filho de Deus, comprometendo-se a morrer na Cruz. O conceito tradicional sobre a Última Ceia é de teor sacramental: Cristo, perto de abandonar este mundo, nos deixou o memorial (ou monumento) de Si mesmo; nada intrínseco à natureza desse monumento o obrigava a instituí-lo depois do próprio feito. O monumento é de natureza tal que pode ser erguido antes, uma vez que é um sacramento. A instituição do sacramento eucarístico da Última Ceia não foi somente o voto de Cristo oferecendo-se para morrer, mas o triunfo antecipado de Cristo sobre a morte.