quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Noite Escura - São João da Cruz

“Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Estando já minha casa sossegada.

Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Estando já minha casa sossegada.

Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa alguma,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em lugar onde ninguém aparecia.

Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!

Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.”

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Tiro no próprio pé... G. K. Chesterton

Há homens que destroem a si mesmos e destroem a própria civilização se também puderem destruir essa fantástica história [a história do cristianismo].

Esse é o fato supremo e mais aterrador envolvendo a fé: que seus inimigos usarão qualquer arma contra ela, as espadas que cortam os próprios dedos e as lenhas que queimam as próprias casas. Homens que começam a combater a Igreja em benefício da liberdade e da humanidade terminam jogando fora a liberdade e a humanidade só para poderem com isso combater a Igreja. Não é exagero. Eu poderia encher um livro com exemplos disso.

O sr. Blatchford iniciou, como um demolidor bíblico comum, querendo provar que Adão não teve culpa em seu pecado contra Deus; manobrando para defender essa ideia, ele admitiu, como mera questão secundária, que todos os tiranos, de Nero ao rei Leopoldo, não tiveram culpa em nenhum de seus pecados contra a humanidade.

Conheço um homem que tem tal paixão por provar que ele não terá uma existência pessoal depois da morte que recorre à tese de que ele não tem uma existência pessoal agora. Invoca o budismo e diz que todas as almas desaparecem uma na outra. Para provar que não pode ir para o céu ele prova que não pode ir para a cidade de Hartle-pool.

Conheci pessoas que protestavam contra a educação religiosa com argumentos contra qualquer tipo de educação, dizendo que a mente da criança deve crescer livre ou que os mais velhos não devem ensinar aos jovens.

Conheci pessoas que demonstraram que não poderia existir nenhum julgamento divino mostrando que não pode haver nenhum julgamento humano, nem mesmo em prol de objetivos práticos. Elas queimaram o próprio trigo para atear fogo à Igreja; destruíram as próprias ferramentas para destruí-la; qualquer pedaço de pau era bom para bater nela, mesmo que fosse o último pedaço de sua mobília desmantelada.

Não admiramos, mal desculpamos o fanático que destroça este mundo pelo amor do outro. Mas que devemos dizer do fanático que destroça este mundo por causa do ódio pelo outro? Ele sacrifica a própria existência da humanidade à não-existência de Deus. Oferece suas vítimas não para o altar, mas simplesmente para afirmar a inutilidade do altar e o vazio do trono. Ele está disposto a destruir até mesmo aquela ética primária pela qual todas as coisas vivem, em prol de sua estranha e eterna vingança contra alguém que jamais sequer viveu. E, no entanto, a coisa pende dos céus, incólume. Seus opositores só conseguem destruir tudo aquilo a que eles mesmos com justiça dão valor. Não destroem a ortodoxia; destroem apenas o sentido comum e político de coragem. Não provam que Adão não foi responsável perante Deus; como poderiam fazê-lo? Provam apenas (a partir de suas premissas) que o czar não é responsável perante a Rússia. Não provam que Adão não deveria ter sido punido por Deus; provam apenas que o patrão explorador mais próximo não deveria ser punido pelos homens.

Com suas dúvidas orientais sobre a personalidade, não nos dão certeza de que não teremos uma vida pessoal depois da morte; apenas nos dão certeza de que não teremos uma vida muito divertida ou completa aqui.

Não é apenas verdade que a fé é a mãe de todas as energias deste mundo, mas é também verdade que os inimigos dela são os pais de toda a confusão do mundo. Os secularistas não destruíram coisas divinas; destruíram coisas seculares, se isso servir de algum conforto para eles. Os Titãs não escalaram o céu; mas devastaram o mundo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Imagens: outras perspectivas.

Esse comentário foi feito por Marcos Biancardi em um tópico sobre a suposta idolatria dos católicos.

Quem se interessar pode ver aqui.

Achei bem interessante (por isso decidi postá-lo aqui), pois, além da acusação ser algo já ultrapassado e que já deveria ser superada há muito tempo, às vezes deixamos de lado outros aspectos interessantes do que são imagens e para que servem. Isso acontece quando nos limitamos a controvérsias como a "idolatria", que é uma das famosas falsas acusações que fazem aos católicos, pelo menos aqui no Brasil.

Segue parte do comentário:

[...] creio que caberia também notar que o conceito de idolatria a imagem também pode ultrapassar a discussão imediata do objeto, seja de veneração ou adoração, o que se chama de imagem. De fato, se ampliarmos um pouco o campo de análise e conteúdo das coisas veremos que a definição de imagem pode e está contida também na formação das palavras e da fala e, de todas as falas em todas as línguas de todas as épocas.


Assim, as palavras formadas pelos sons, pelos fonemas, representam sempre uma imagem que a ela palavra corresponde e, a própria sentença literal obedecerá também a essa lógica e realidade.


Ora, a própria Bíblia está repleta de imagens, de cenas, de milagres, de revelações que nos veem pelas palavras, frutos de imagens. Então, de modo rápido é fácil entender que a palavra é imagem para explicar o que se quer dizer.


Outras maneiras de representar pela escrita são os hieróglifos, ideogramas e assemelhados. Todas essas formas dispõem de imagens para falar de fatos, de conceitos, de idéias, do abstrato. Tudo é imagem. Somente Deus, o Senhor, não o é! Até mesmo, quando ficamos a escravizar - modo de dizer - nossa fé àquilo que cremos, estamos a praticar uma forma de idolatria, isto é, damos forma à fé e essa forma se baseia numa idéia particular, numa idéia que tem conteúdo no que cremos.


Por outro lado, dever-se-ia ainda considerar que o cristianismo utilizou-se sempre sabiamente do que cada época pode oferecer e do que cada época era capaz de operar para entender a mensagem de Cristo e, nem todas as épocas tiveram a chance de ter à sua disposição a palavra escrita como domínio público. Sequer escolas haviam, elas foram disseminadas pela Igreja na Idade Média e, mais ainda, nem livros e nem bibliotecas e tudo o mais.


Assim, a imagem passou a fazer parte do mundo da educação e da transmissão dos conhecimentos.


Por fim, considerar que Cristo Jesus é Deus e Deus que se fez carne e habitou entre nós é considerar também o o Indizível tomou forma e substância fazendo-se homem e, como homem, pode ser representado pela imagem do homem e como imagem de nós mesmos. Jesus teve pele, olho, cabelos, sangue e, chorou e sofreu e morreu e foi ressurreto ao Pai, ao Eterno, ao Inominável! Então, tudo o que é nominável o é também , por conseqüência do que é: imagem!


Enfim, não dá prá ficarmos, nós cristãos, presos a essa discussão que já deveria ter sido superada e, ao invés disso, vermo-nos como um só e mesma crença e fé. Mais ainda, olhar a cristandade a partir da sua origem e a ela estar vinculada para sempre, sob o trono de Pedro e sob a direção da única e verdadeira Igreja.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Jesus cumpriu a Lei? parte 3

A Mishná e o Talmude apresentam, como se ensina habitualmente, uma abordagem legal da Lei. Isto é geralmente verdadeiro no que diz respeito ao detalhe, mas não se aplica necessariamente quando está em jogo uma compreensão radical. Talvez o exemplo mais marcante figure na tentativa de R. Simlai, no terceiro século (bMak. 24ª), de reduzir a um único, em estágios sucessivos e em termos exclusivamente não haláhicos, os diversos mandamentos de Moisés:

Foram dados a Moisés seiscentos e treze mandamentos ... Veio Davi e os reduziu a onze. Ois está escrito: Salmo de Davi. Senhor, quem pode hospedar-se em tuas tendas? Quem pode habitar em teu monte sagrado? (1) Quem anda com integridade (2) e pratica a justiça (3) e fala a verdade no coração (4) e não calunia com sua língua (5) e não faz mal a seu próximo (6) e não difama seu vizinho (7) despreza o ímpio com o olhar (8) mas honra aos que temem o Senhor(9) é responsável por seus juramentos sem se retratar (10) não empresta dinheiro com usura, (11) nem aceita o suborno contra o inocente. Aquele que assim fizer jamais vacilará, (Sl 15,1-5) ... Veio Isaías e reduziu os mandamentos a seis, como está escrito; (1) Aquele que pratica a justiça (2) e fala o que é reto; (3) despreza o ganho da opressão, (4) recusa-se a aceitar suborno, (5) tampa os ouvidos para não ouvir falar em crimes de sangue, (6) e fecha os olhos para não ver o mal (Is 33,15) ... Veio Miquéias e os reduziu a três, como está escrito: O Senhor te mostrou, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige de ti: 91) apenas praticar a justiça, (2) e amar a bondade, (3) e caminhar humildemente com teu Deus (Mq 6,8)... Veio novamente Isaías e os reduziu a dois, como está escrito: Assim diz o Senhor: (1) Praticai a justiça (2) observai o que é direito. Veio Amós e reduziu a um, como está escrito: Assim falou o Senhor à casa de Israel: procurai-me e vivereis (Am 5,4).

Enquanto os sábios rabínicos são retratados como especialistas práticos nos detalhes mais finos daquilo que é proibido ou permitido, melhor dizendo, a maneira correta de implementar a Torá, e apenas menos frequentemente como moralistas ou teólogos, o traço mais importante na atitude de Jesus é uma preocupação abrangente com o propósito final da Lei que ele percebia, de forma primária, como essencial e positiva, não como uma realidade jurídica mas como uma realidade ético-religiosa, revelando o que pensava ser o comportamento justo e divinamente ordenado para com os homens e para com Deus. [48]