sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Livro inédito no Brasil: A Verdade Sobre o Papado - Rafael Merry del Val

Finalmente este livro que traduzi foi publicado. Ele pode ser encontrado aqui: http://www.editoraloreto.com/produto/a-verdade-sobre-o-papado/

É um dos melhores livros já publicados no Brasil sobre este tema.

O que você irá aprender com este livro:
  • Antes de tudo, o conteúdo deste livro é uma verdadeira aula de como tratar seriamente determinado assunto;
  • As provas de que Jesus organizou sua Igreja sob a autoridade de São Pedro e de seus sucessores;
  • Que São Pedro esteve sim em Roma, e foi lá que ele morreu;
  • Textos patrísticos que comprovam que esta foi a crença ininterrupta dos primeiros cristãos;
  • Que as mentiras protestantes a respeito do Papado são completamente refutadas com uma análise séria das Escrituras e dos textos Patrísticos;
  • Que Pedro é, sem qualquer sombra de dúvidas, a Rocha sobre a qual a Igreja foi construída.




segunda-feira, 21 de agosto de 2017

São Pedro, Bispo de Roma – Autor desconhecido.

Depois de demonstrado que São Pedro pregou mesmo em Roma, cabe-nos provar ter sido ele o primeiro bispo daquela cidade sem par na Igreja.

Não abusaremos da paciência dos leitores com infindável lista de autorizadas personagens que dão testemunho em tal sentido. Contentar-nos-emos de mostrar, com documentos respeitáveis, que varões como Santo Irineu, Caio, São Cipriano, Optato, Santo Agostinho, São Jerônimo, Suplício Severo, o autor anônimo do Carmen Adversus Marcionem abonam o ponto de vista católico.

Antes de tudo, lembramos que todos os catálogos de bispos de Roma, sem exceção alguma, catálogos organizados com o maior escrúpulo, tanto no ocidente como no Oriente, colocam sempre o nome de São Pedro à frente dos chefes que teve a Igreja.

Se os norteasse com um profundo amor à verdade, há muito que devia ter cessado o clamor de certa classe de protestantes contra os direitos de São Pedro ao título de bispo de Roma.

Fechando os olhos a tantas razões alegadas pela Igreja, o protestante persiste na sua negação invocando, a seu favor, um argumento tirado do silêncio do apóstolo São Paulo. Na verdade, afirmaram eles, se São Pedro fosse o bispo de Roma no tempo das missões apostólicas de São Paulo, infalivelmente teria este último feito referência ao mesmo, quando escreveu a sua conhecida epístola aos romanos…

À primeira vista, semelhante argumento parece de grande alcance, pois não se concebe que o bravo evangelizador dos gentios, numa epístola em que saúda mais de vinte irmãos na fé com morada em Roma, silenciasse o nome do bispo daquela cidade. Não lhe ficaria bem enviar cumprimentos a tantas ovelhas, pondo à margem o pastor.

Outra, porém, é a verdade. Basta lembrar por ora, que São Paulo também escreveu aos cristãos de Éfeso e não faz qualquer alusão ao bispo daquela terra. Por igual enviou epístola aos coríntios, aos gálatas, aos tessalonicenses, aos colossenses, aos hebreus… e em nenhuma delas faz menção dos pastores colocados à frente daquelas comunidades.

Como explicar tudo isto? Primeiramente, é bem possível que os portadores dessas mensagens, que eram pessoas de sua inteira confiança, levassem especiais recomendações, orais ou escritas, para os bispos das referidas paragens. Depois, convém ter presente que eram maus tempos, constantes as perseguições religiosas, e tudo aconselhava a não pôr em evidência o nome do bispo local num documento público. Etc.

Podemos acrescentar a tudo isto que é sempre desaconselhável englobar o nome do chefe de uma diocese na enumeração de simples fiéis.

Quem leu o que aí fica devia naturalmente esperar que o protestante pusesse ponto final nas suas contestações à estada de São Pedro em Roma e à sua consequente investidura episcopal naquela cidade.

Mas o que sucede é que o homem continua no mesmo pensamento: passa de um galho para outro e, sem se dar por achado, lança o seguinte argumento: “Se Pedro ali tivesse a sede do seu episcopado, São Paulo não invadiria anarquicamente diocese alheia”, pois ele tinha por princípio “não edificar sobre fundamento alheio”.

Antes de tudo, meu amigo, este sistema de conduta não foi sempre adotado por São Paulo; e a prova é que ele pregou o Evangelho nas igrejas de Damasco, Antioquia e Jerusalém, que não haviam sido fundadas por ele. Além disto, o argumento apresentado contra nós, se provasse alguma causa, provaria exatamente o contrário dos seus desejos.

Leia com atenção todo o capítulo XV da citada epístola aos romanos. Nela, efetivamente, declara São Paulo que não costumava pregar a Boa Nova onde Cristo já havia sido anunciado, a fim de não edificar em cima de alicerce de outra pessoa (vers. 20).

“Por isso mesmo, continua ele, me via embaraçado, muitas vezes, para ir ver-vos e não tenho podido fazê-lo até agora. Entretanto, já não tenho motivo para me demorar, por mais tempo, nestas terras; e desejando ir ver-vos há muitos anos, logo que me ponha de viagem para a Espanha, espero ver-vos de passagem” (vers. 22-24).

Conforme se vê, as palavras do apóstolo das gentes nos levam a uma conclusão bem diferente das que os protestantes desejam. E qual será esta a conclusão? Paulo comunica que, tencionando ir à Espanha, verá, de passagem, os romanos, com os quais, de há muito, desejava entrar em relações. Não demorará entre eles porque não gosta de edificar em cima de alicerce de outrem. Quer isto dizer, implicitamente, que ali outro já havia edificado antes dele. Aliás, ele já o tinha feito sentir no começo da sua epístola: “vossa fé é conhecida em todo o mundo” (I, 8). Já havia afirmado que “os romanos estavam cheios de caridade, cheios de toda a ciência” (XV, 14). E pouco depois dirá que eram tão submissos a seus superiores eclesiásticos que “a obediência deles era notória em toda parte” (XVI, 19).

De tudo isto se conclui que, antes de Paulo aparecer em Roma, já existia por lá uma cristandade tão florescente que a sua boa fama corria em todo o mundo cristão. Mas quem teria fundado tamanho bloco de discípulos do Salvador na capital do maior império do mundo?

– São Pedro, respondem-nos todos os documentos dignos de respeito.

Pois bem, negando a viagem de Pedro a Roma, os nossos irmãos separados saíram atrás de um possível fundador, lançando mão de todos os recursos da imaginação, já que a História não os favorecia; e ainda hoje estão embaraçados nessa busca eternamente frustrada.

Em lugar de assim procederem, o que lhes competia era pensar como todos os espíritos razoáveis, admitindo que, sendo Roma a capital do Império e a cidade mais corrompida da Europa, onde enxameavam as religiões mais extravagantes, fosse evangelizada e convertida pelo príncipe dos apóstolos, o imediato representante do divino Mestre.

Como se percebe, o exame da epístola aos romanos o que deixa de entrever é exatamente o contrário da tese protestante.

São Pedro em Roma – Autor desconhecido

Depois de haver fundado as igrejas de Jerusalém e Antioquia, as mais célebres da Ásia, partiu S. Pedro para o Ocidente com o propósito de fixar-se em Roma, até então baluarte do paganismo e destinada a tornar-se o centro da vida cristã.
Na cidade dos Césares estabeleceu ele a sua cátedra episcopal. Derramando nela seu sangue por amor do divino Mestre, inaugurou a dinastia dos Papas, que já conta vinte séculos de existência. É exatamente isto que pretendemos demonstrar contra os sofismas do protestantismo. É fora de dúvida que o príncipe dos apóstolos, tendo-se libertado da prisão em Jerusalém, escolheu Roma para sua residência episcopal. Sobre a certeza deste fato, em toda a antiguidade cristã, não pairou sequer a sombra de uma contestação.
Foi somente no século quatorze que apareceu o primeiro a pô-lo em dúvida, aliás interesseiramente. Com o intuito de defender Luiz de Baviera contra o Papa João XXII, Marcílio de Pádua lançou no ar a dúvida, que os protestantes breve converteram em negação formal, como quem aproveita toda a arma para atingir o fim que tem em mira.
Para que saiba, entretanto, quanto é fora de contestação a estada de São Pedro em Roma, bastam os seguintes testemunhos, todos de imenso valor.
São Cipriano que viveu no século terceiro da nossa era e foi bispo primaz da África, numa sua epístola a Antoniano, diz: “Tendo ficado vaga a sede de Fabiano, isto é, a sede de Pedro, e da dignidade da cátedra, foi Cornélio criado bispo” (Epístola X ad Antonianum).
Orígenes, o maior luminar da Escola de Alexandria, falecido em 254, atesta que São Marcos escreveu o seu Evangelho a pedido dos “romanos que tinham ouvido a pregação de São Pedro” (Coment. In Genes., tomo 3).
Tertuliano, morto depois de 222, entre outras alusões à estada de São Pedro em Roma, diz o seguinte: “Oh! Igreja feliz à qual deram os apóstolos, juntamente com seu sangue, o tesou re sua doutrina, onde Pedro se assemelhou ao Mestre no gênero de morte. Etc.” Escrevendo contra os hereges, o vigoroso polemista apelava para o fato da estada de São Pedro em Roma, sem medo de ser contestado.
Há, porém, entre quase uma dezena de outros documentos comprovando a tese da Santa Igreja, dois, pelo menos, de uma força demonstrativa extraordinária. São os testemunhos deixados por Santo Irineu e Santo Inácio.
Santo Irineu morreu em 202, após haver sido educado na escola de Policarpo, que, por sua vez, fica distanciado dos apóstolos apenas por uma geração. Pois este venerando varão, na sua obra “Contra as Heresias”, repetidas vezes fala na presença de São Pedro em Roma. Acha-se isto no III livro, c. I, n. I da citada obra. Eis o trecho decisivo: “Encontrando-se entre os hebreus, redigiu Mateus o Evangelho na língua deles, enquanto Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e aí fundavam a Igreja”.
Não podemos, entretanto, deixar sem especial menção o testemunho de Eusébio, tristemente adulterado por protestantes. Assim reza o texto de Irineu: “Fundando, portanto, e instituindo a Igreja, os bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo entregaram o episcopado a Lino… A este sucedeu Anacleto. Depois deste, em terceiro lugar, Clemente ocupou o episcopado (transmitido) pelos apóstolos” (Adversus Hereses, III, 3)
Vejamos agora o que diz Eusébio na sua História Eclesiástica: “Depois de Pedro, Lino foi o primeiro a exercer o episcopado na Igreja Romana”. É ainda Irineu quem, no seu livro Chronicon, em texto sagazmente omitido por protestantes, escreveu o seguinte: “Como o apóstolo Pedro houvesse fundado a igreja de Antióquia, foi enviado para Roma, e aí, pregando o Evangelho, permaneceu bispo desta cidade por vinte e cinco anos. Depois de Pedro, Lino foi o primeiro a reger a Igreja de Roma.” (Hist. Ecclesiae, livro III, cap. 4)
Diante do exposto, como preservar negando verdades tão meridianas? Negar a verdade conhecida por tal é pecado contra o Espírito Santo, atitude indigna de um discípulo do Salvador.
Santo Inácio, martirizado no ano 107, de viagem para Roma, escreveu várias epístolas a diferentes igrejas, confortando-as na Fé e obediência aos superiores eclesiásticos. Numa dessas cartas, dirigida aos romanos, diz textualmente: “Tudo isto não vos ordeno como Pedro e Paulo, eles eram apóstolos, enquanto eu sou um condenado à morte.”
Parece claro, em tal linguagem, haver nos romanos, já então, um perfeito conhecimento daqueles dois arautos do Evangelho…
[Continua…]

Pedro nos Atos dos Apóstolos – Autor Desconhecido

Não querendo dar-se por vencido, o protestante volta à fala, dizendo que a melhor prova de que Pedro não recebeu especial autorização para dirigir a Igreja é que nunca fez uso dessa investidura.

A crermos em suas palavras, os “Atos”, livro em que São Lucas nos deixou os fatos mais salientes da atividade dos apóstolos, nada nos dirão acerca do exercício do primado de São Pedro. Mas, como tudo isso anda longe da verdade!

Admitindo-se, por hipótese, que Pedro jamais houvesse posto em prática os direitos da sua primazia, poderíamos concluir daí que esse direito não lhe pertencesse? Não e não. Onde já se viu que uma lei deixasse de existir só porque alguém deixou de se utilizar das vantagens que ela lhe oferecia?

Ora, as palavras de Cristo valem por uma lei, dando a Simão-Pedro o direito de governar a Igreja, fazendo-lhe as vezes aqui na terra; se Pedro não tivesse exercido esse direito, poderíamos assim explicar o fato: que não tivesse havido precisão de exercitá-lo.

Repetimos o que acima deixamos dito: o não-uso de um direito concedido por Deus não serve de prova de sua não-existência.

Mas será mesmo exato que os outros apóstolos não deram sinais de reconhecer essa primazia? Será ainda exato que a história da Igreja não contenha certos vestígios de haver ela sido posta em ação? O protestante acha isto tão indubitável que escreveu o seguinte: “a ausência do sol ao meio dia não é mais notável do que a ausência da supremacia oficial de São Pedro nas páginas do Novo Testamento”.

Vamos aos fatos. Não terão os apóstolos dado mostras de reconhecer a primazia de São Pedro? Por que então todos os evangelistas, sem exceção de um só, todas as vezes que falam nos Doze ou os mencionam pelos respectivos nomes, dão a Pedro o lugar de honra e primazia? Não lhe parece que tal prioridade seja altamente significativa, especialmente depois das antigas contendas para saberem qual deles era o maior? Outrora queriam saber qual deles era o primeiro: agora é o próprio São Mateus quem nos afirma no seu Evangelho: “Primeiro, Simão que se chama Pedro” (X, 2).

Recordemos os primeiros capítulos dos “Atos”, onde São Lucas relata os mais notáveis sucessos da Igreja primitiva. Que é que neles se lê? Lá aprendemos que foi São Pedro o primeiro a anunciar o Evangelho aos judeus, depois da morte do Salvador; por sinal que com seus primeiros sermões converteu três mil pessoas (II, 41). Que foi São Pedro quem admitiu na Igreja os primeiros gentios (X, 9 e seguintes). Que foi Pedro quem operou o primeiro milagre em confirmação da fé em Jesus Cristo (III, e seguintes).

Dizem-nos os “Atos” que, da mesma forma que o povo fazia com o Salvador, fazia com Pedro, no sentido de levarem até ele grande número de enfermos para que os curasse (V, 15).

Acha pouco tudo isto? Pois ouça mais. Leia os “Atos” (I, 15 e seguintes) e lá verá que foi São Pedro o apóstolo que promoveu e presidiu a eleição de um novo apóstolo para substituir a Judas. Pelos “Atos” (II, 14; IV, 8) verá também que foi São Pedro o primeiro a tomar a defesa de seus colegas contra o sinédrio, que queria impedi-los de pregar. Leia nos “Atos” (VIII, 20) Pedro condenando, com pasmosa autoridade, o primeiro herege simoníaco.

Se Pedro é preso por ordem de Herodes, toda a Igreja se põe em oração até vê-lo milagrosamente salvo (Atos XII, 3). Parece pouco tudo isto? Pois escute: quando, em Jerusalém, se reúne o primeiro concílio para decidir acerca de uma questão importantíssima, é Pedro o primeiro que toma a palavra e põe termo à controvérsia (Atos XV, 7 e seguintes).

Sempre Pedro é visto como chefe supremo, na defesa da fé e dos bons costumes, na propagação da Igreja, na promulgação das leis, no dom dos milagres, no papel de imediato representante de Jesus Cristo.

São Paulo, campeão antipapal? [Parte II] – Autor Desconhecido

Parece, mas não é…
Focalizemos logo o verbo [pareciam] que, à primeira vista, parece uma bomba atômica, capaz de botar por terra a estátua de S. Pedro e, na realidade, é apenas um sofisma embarcado no equívoco de uma palavra. É que o protestante toma aí o verbo [parecer] no sentido de ter a aparência de uma coisa sem, na realidade, ser essa mesma coisa. Veio daí a ardilosa conclusão tirada por ele: que Pedro, Tiago e João eram exteriormente considerados colunas da Igreja, mas de verdade não o eram.
Ora, qualquer exegeta medíocre sabe que o verbo [videri], parecer, vez por outra se apresenta com o sentido de [ser considerado o que] verdadeiramente é. Eis o que quis dizer São Paulo: “Dizeis que meu evangelho e minha doutrina não são dignos de fé. Pois ficai sabendo que em Jerusalém eu os expus à apreciação daqueles que para vós são os depositários do verdadeiro cristianismo, tidos e havidos como colunas da Igreja. Condenaram-me por isto? Repreenderam-me? Não. Aquelas autoridades não acharam em mim o que condenar e, dessa forma, aprovaram todos os meus ensinamentos. Além disto, Pedro, Tiago e João, aos quais cabia o direito de examinar minha doutrina, reconheceram o apostolado que Deus me tinha confiado e, em sinal de amizade, me apertaram a mão”.
Se o protestante quiser ler outras passagens do Novo Testamento nas quais [parece] se apresenta no sentido de ter [as aparências de uma coisa ou pessoa que é realmente], leia o evangelho de S. Marcos, capítulo décimo, versículo 42; ou o evangelho de S. Lucas, capítulo vinte e dois, versículo 24, para não irmos mais longe.
O protestante da epístola de S. Paulo aos gálatas quer concluir que o apóstolo das gentes fala de Pedro como de um simples colega, e não de um chefe.
Aqui, como em outros casos da vida, vai grande distância entre o ser e o parecer. Parece, realmente, exprimir isto mesmo, mas um exame desapaixonado dos documentos revela o contrário. Nessa passagem da epístola aos gálatas, o objetivo do Apóstolo não é nem a chefia de Pedro sobre a Igreja nascente, nem tão pouco uma divisão sistemática e exclusivista do campo destinado à evangelização.
Por que, caro protestante? Porque . Paulo, ao escrever a citada epístola, já sabia ter sido Pedro quem batizara os primeiros gentios, abrindo para eles as portas da Santa Igreja. Alguns anos para trás, ele, S. Paulo, ouvira dos lábios de S. Pedro a seguinte declaração: “Sabeis que, desde os primeiros dias, Deus ordenou que, por minha boca, ouvissem os gentios a palavra do Evangelho” (Sobre isto leia Atos XV, 7).
Por outro lado, é absolutamente inexato que Paulo houvesse limitado sua pregação aos gentios. E a prova disto é que, em todas as suas excursões apostólicas, sua primeira tarefa era pregar a Boa Nova aos israelitas. Só depois de repelido por estes é que se voltava para os pagãos, quase sempre mais bem dispostos e generosos. Para se convencer disto, queira ler os capítulos 13, 14, 17, 18, 19, 20, 21 dos Atos.
Considerando, historicamente, os doze anos por ele vividos até então a serviço do Evangelho, Paulo faz ver aí como Deus tinha abençoado sua pregação aos gentios por meio de numerosos milagres e conversões, da mesma forma que era abençoado o ministério de Pedro entre os israelitas. Note bem isto: por que aí S. Paulo compara sua carreira apostólica com a de S. Pedro? Não é fora de qualquer dúvida que também os outros apóstolos haviam pregado o Evangelho aos israelitas? Por que destacar aqui somente a Pedro quando se dirige aos gálatas que só ele, Paulo, havia evangelizado e convertido?
A mais plausível explicação é que, pelo fato de ser Pedro o chefe supremo da Igreja, ao menos de nome todos os cristãos deviam conhecê-lo e seguir-lhe a direção.
Agora falaremos do discutido episódio de Antioquia.
Conforme sabemos através do Novo Testamento, achavam-se os apóstolos Pedro e Paulo naquela cidade, cujos cristãos, na sua maioria, tinham vindo do judaísmo. Procurando acomodar-se às exigências do meio, viviam ali os dois citados apóstolos com os novos cristãos sem se preocuparem com leis mosaicas, já então suprimidas pelo Evangelho.
A esse tempo, chegam de Jerusalém alguns cristãos convertidos do judaísmo, ardentes de zelo pela lei mosaica. Temendo cair no desagrado deles e assim afastá-los do cristianismo, pouco a pouco Pedro foi se afastando das refeições a que compareciam os cristãos daquela terra. Além disto, embora sabendo que os ritos mosaicos de nada adiantavam à vida cristã, condescendia com a fraqueza dos judeus-cristãos e diante deles cumpria as referidas prescrições rituais. Era assim, aliás, que procediam os outros apóstolos, sobretudo S. Tiago, bispo de Jerusalém.
Por iguais razões, S. Paulo tinha circuncidado a seu caro discípulo Timóteo; e, numa de suas viagens a Jerusalém, entrou no templo, purificou-se de acordo com as prescrições de Moisés e ofereceu as oblações legais.
Por aí se vê que o retraimento de Pedro significava somente uma condescendência paternal, um ato de caridade para com seus compatriotas recém convertidos ao cristianismo. Mas naquela cidade as circunstâncias eram diferentes das de Jerusalém; e Paulo, que pregava o Evangelho quase sempre aos gentios, previu a campanha de difamação que seus inimigos breve iriam mover contra ele, apoiados no exemplo do chefe dos apóstolos.
Com efeito, muitos judeus e até Barnabé, fiel companheiro de Paulo, já estavam voltando às práticas rituais do judaísmo; também eles tinham deixado de comer com os gentios convertidos.
Em tão sombrias circunstâncias, percebeu Paulo que o caminho a seguir era mostrar, publicamente, que a atitude de Pedro, justificável em Jerusalém, não era bem conforme ao espírito do Evangelho, desde que o Divino Mestre nos havia libertado das peias mortificante do mosaísmo.
Um dia, portanto, num dos ágapes dos cristãos ao qual Pedro comparecera, Paulo o adverte publicamente, como se vê de sua epístola aos gálatas (capítulo II, versículo 13): “Se tu, sendo judeu, vives como os gentios (batizados) e não como judeu, por que obrigas (com teu exemplo) os outros a judaizarem?”.
Agora pergunto ao protestante: haverá, nessa admoestação pública, qualquer contestação do primado apostólico? De modo algum. Aí Paulo não desobedece a nenhuma ordem dada por Pedro, não se insurge contra sua doutrina, não nega sua autoridade. Não lhe falou aí como um superior, cheio de autoridade, porém à maneira de filho mais velho, fazendo-lhe ver a necessidade de viver de acordo com o que ele próprio, Pedro, ensinava noutros lugares.
Eis a única significação dessa passagem da epístola aos gálatas. Ouça lá como o genial Santo Agostinho comenta este episódio, transformando-o em novo argumento a favor as suprema autoridade de Pedro: “Com santa e piedosa humildade, Pedro aceita a observação feita por Paulo (que assim agiu) inspirado na liberdade do amor. Deixou assim aos seus sucessores um raro exemplo de consentirem em ser corrigidos pelos súditos, quando se desviarem do reto caminho…”

São Paulo, campeão antipapal? [Parte I] - Autor desconhecido.

Outro argumento de que se valem os protestantes para negar a suprema autoridade de São Pedro, apóia-se no capítulo onze da segunda Epístola de S. Paulo aos Coríntios. Eis o texto com que eles nos acenam: “Cuido que em nada tenho sido inferior aos grandes apóstolos” (versículo 5).

Louco por uma oportunidade em que pareça triunfante, o nosso irmão separado exclama logo: “entra pelos olhos que esta asserção absoluta de Paulo é incompatível com a teoria romana”. A verdade, entretanto, é que nada existe mais simples e claro do que a interpretação de tal passagem, de acordo com a opinião adotada pela Igreja Católica.

Falaremos com a desejada clareza. Depois da primeira missão de S. Paulo a Corinto, alguns falsos apóstolos fizeram tudo o que podiam fazer para desacreditá-lo aos olhos daquele povo recém convertido. Para realizarem seu perverso intuito, começaram pondo-lhe em dúvida a autoridade e o título de apóstolo que ele mesmo usava. Com que direito Paulo se apresentava como Apóstolo, se ele não tinha sequer conhecido o divino Mestre neste mundo? Com que direito ele, convertido da última hora, se equiparava aos Doze privilegiados que Cristo havia escolhido a dedo e com ele tinham trabalhado e sofrido? Não viam por aí que Paulo era um intruso?

Exagerando naquela campanha um perigoso ardil do inferno para matar o entusiasmo daquela gente pelo cristianismo que ele mesmo lhe havia ensinado, S. Paulo sai a campo e prova que é legítimo o seu nome de apóstolo. É que ele tinha diretamente escolhido por Cristo, da mesma forma que os Doze. Como os Doze, ele havia recebido de Cristo a sagrada apostólica.

Eis o que São Paulo aí quer dizer. Nem de leve faz alusão à existência de um chefe visível na Igreja, como imediato representante do Salvador na direção da cristandade. Pretender encontrar nesta passagem qualquer argumento contra o primado só prova uma coisa: ignorância ou preconceito religioso.

No seu empenho de lançar o descrédito sobre a autoridade papal, agarram-se logo os protestantes a outra passagem de São Paulo, desta vez tirada de sua epístola aos gálatas, no capítulo segundo.

Ei-la: “Quatorze anos depois, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também a Tito. Mas subi em consequência de uma revelação; e expliquei aos fiéis o Evangelho que prego entre os gentios, e particularmente àqueles que pareciam ser os de maior consideração, pelo temor de não correr ou de haver corrido em vão. Quanto, porém, àqueles que pareciam ser os mais considerados (quais hajam sido noutro tempo, pouco me importa; Deus não faz acepção de pessoas) àqueles, digo, que pareciam ser alguma coisa, esses nada me comunicaram. Antes, pelo contrário, tendo visto que me havia sido comunicado o Evangelho da incircuncisão, como (fora dado) a Pedro o da circuncisão, (porque o que Deus obrou em Pedro para o apostolado da circuncisão, também obrou em mim para os gentios); e, tendo conhecido em mim a graça que me foi dada, Tiago e Cefas, e João que pareciam ser as colunas da Igreja, nos deram as mãos, a mim e a Barnabé, em sinal de companhia, para que nós pregássemos aos gentios. “Ora, tendo Cefas vindo depois a Antioquia, resisti-lhe publicamente, porque era repreensível”. (versículo 11)

Aí está todo o trecho de S. Paulo onde muitos protestantes querem enxergar desapreço do grande apóstolo para com a autoridade de S. Pedro. Façamos de todo ele um exame escrupuloso. Para o protestante, o emprego do verbo [pareciam], a coordenação igualitária de Pedro e Paulo, a repreensão que este fez àquele, em Antioquia, são três golpes mortais vibrados contra a primazia de Pedro.

Para bem entendermos essa linguagem de S. Paulo aos Gálatas, é preciso explicar, antes de tudo, os fatos que o levaram a escrever dessa vez aos habitantes da Galácia. Porque, tanto nesta última região como em Corínto, por onde S. Paulo já andara evangelizando, tinham aparecido, na sua ausência, inimigos rancorosos que lançavam mão de todos os meios para desacreditá-lo perante aquelas populações.

E o motivo principal de tão perversa propaganda era que os judeus recém batizados não podiam absolutamente compreender que a lei de Moisés em que eles tinham sido educados e da qual tinham uma idéia elevadíssima, fosse substituída pelo cristianismo. Para eles o cristianismo ensinado por Paulo, em lugar de completar, o que fazia era destruir a Lei mosaica. Por isto moviam oposição obstinada ao apostolado de Paulo que lhes parecia um perigo revolucionário.

Na Galiléia, a atitude dos inimigos do Apóstolo primava pela astúcia. Sem se oporem abertamente às decisõe do Concílio de Jerusalém, que havia decidido estarem sem vigor determinados ritos e prescrições da lei mosaica, afirmavam jeitosamente que aquela decisão do concílio era de caráter provisório, para evitar choque com as idéias de Paulo. E insistiam dizendo que o verdadeiro Evangelho era o que saia da boca de Pedro, Tiago e João, que eram as colunas da Igreja, que estes é que desde o princípio haviam convivido com o Salvador e guardado com exatidão seus ensinamentos. Etc,. etc.

Assim argumentando, não negavam que a fé em Cristo bastava para a eterna salvação; mas repetiam que as observâncias do rito mosaico davam aos cristãos uma perfeição religiosa que os pagãos batizados nunca poderiam conseguir, se não as pusessem em prática. Desconfiassem, portanto, da pregação de Paulo, que era um perigoso inovador. Ele que tão recentemente perseguira os cristãos, não podia agora merecer tão grande confiança; e o seu Evangelho só podia ser incompleto e defeituoso… Quem quisesse ser perfeito, diziam os tais, escutasse antes o que diziam as colunas da Igrejas, e recebessem a circuncisão e observassem o ritual da lei de Moisés.

Tão ardilosas afirmações estavam produzindo efeito em muitos corações. As novas cristandades convertidas por Paulo sentiam-se num mar de dúvidas e corriam grande perigo de cisma. Estava, pois, o grande apóstolo no imperioso dever de intervir para evitar este perigo, defendendo sua doutrina.

Feita esta longa exposição, mostraremos a que ficam reduzidos os argumentos do protestante, quando procura concluir daí que S. Paulo desdenhou a autoridade de S. Pedro como chefe supremo da Igreja.

[Continua…]

“Tu es Petrus” – Pe. Leonel Franca

Texto extraído do livro “Catolicismo e Protestantismo” do pe. Leonel Franca.

O argumento tirado do primeiro versículo não colhe, diz o sr. Ernesto, porque a pedra sobre a qual Cristo diz há de construir a sua Igreja não é o Apóstolo mas o próprio Cristo. “Em resumo: nosso Salvador não disse a S. Pedro: ‘tu és pedra e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’, mas disse-lhe: tu és um fragmento de pedra (isto é o que significa o seu nome), da pedra que confessaste; e sobre esta pedra, que sou eu, edificarei a minha Igreja; em outros termos: ‘edificarei a minha Igreja sobre mim e não sobre ti’. E fragmentos da mesma pedra são todos os santos que constituem a Igreja”.

O leitor confrontando a paráfrase do sr. Oliveira com o texto evangélico já percebeu tudo o que lhe enxertou desastradamente a sua exegese tendenciosa, “fragmento de pedra que confessaste… sobre esta pedra que sou eu” não existem absolutamente em toda a perícope evangélica onde Jesus Cristo não fala uma só vez de si, mas só de Pedro e a Pedro. Ora, toda esta interpretação visivelmente apaixonada já nos havíamos excluído nestes termos: Quem quer que leia despreocupadamente o passo de S. Mateus para logo se persuadirá que, em todo ele, Cristo só se dirige a Pedro: tibi dico, tu es, tibi dabo, quidquid ligaveris. Não há como isolar um inciso em que o Salvador entrasse a falar de si. Todos os membros do texto se articulam, se compaginam num todo, cuja continuidade não é possível interromper sem lhe quebrar as harmonias divinas.

Mas entre PETRUS e PETRA há diferença que passa entre seixo de rocha, fragmento de pedra e pedra. Não há tal. Esta diferença só existe na versão grega. O nome PETRA, feminino, não se adaptava à designação de um homem. O tradutor grego, helenizando o original KEFAS preferiu a forma PETRUS. Todas as outras versões, onde não havia este inconveniente, conservaram, como pode observar o francês moderno, a identidade da forma verbal nos dois incisos do versículo. Pode verificar-se na versão armena, etiópica, cóptica, persa, caldaica, siríaca, arábica e eslava. […]

Cristo falava aramaico. Ora, em aramaico nenhuma diferença verbal há entre Pedro e pedra. Traduzindo à letra, o texto original de S. Mateus dizia: tu és Pedra (Kefa) e sobre esta Pedra (Kefa) edificarei a minha Igreja. Desfaz-se assim a última aparência de arrimo a que se abordoa, desesperada, a exegese protestante. Como poder, com efeito, afirmar razoavelmente a diversidade na significação de duas palavras idênticas, usadas na mesma frase, e referindo-se uma à outra por um demonstrativo enfático?

Mais. Reduzir o nome de Kefas a um fragmento de pedra, e “fragmentos da mesma pedra são todos os santos que constituem a Igreja”, diz o pastor, é falsificar todo o sentido do Evangelho. Se não era Simão esta pedra fundamental da Igreja por que lhe mudou Cristo o nome em Pedra? Tu te chamarás Cefas, isto é, Pedra, disse-lhe Cristo no primeiro dia que o viu (João 1, 42); tu és Pedra, repete-lhe Cristo agora. Porventura os nomes impostos por Deus são palavras vazias, figuras sem significado, sombras sem realidade? Como! Tanto aparato de circunstâncias, tanta gravidade de palavras, tanta solenidade de fórmulas (Bem-aventurado és tu… E eu te digo: tu és Pedro), para dizer que Pedro será um “fragmento”, uma pedrinha no grande edifício do Reino de Deus! Mas “fragmento”, pedrinha são todos os fiéis, todos os membros da sociedade cristã. E qual seria, neste caso, o significado desta cena, uma das mais graves, das mais majestosas, das mais solenes do Evangelho? Algo parecido com o parturiunt montes!! Não! Não! Ante a exegese protestante revolta-se a consciência cristã num brado da mais justificada indignação.

São Pedro e os Papas – Autor Desconhecido.

Como chave de ouro desta série de argumentos, examinaremos o testemunho do próprio São Pedro.

A sua atitude humilde em face das observações de São Paulo, afirma o pastor protestante, bem nos mostra que “ele (Pedro) inteiramente ignorava possuir a posição e os títulos pomposos que, em nome dele, os papas assumem. Nas suas epístolas, – a crer em nosso ardente contraditor, – nada existe “que se pareça com um decreto do Vaticano”. Em palpável contraste com o autoritarismo vanglorioso das bulas papais, escreve São Pedro: “Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, esta é a rogativa que faço aos presbíteros, eu, presbítero como eles.” (Páginas 242-243)

Parece-lhe então, meu amigo, que esta humilde linguagem de São Pedro afaste a hipótese de ser ele o chefe visível e universal da Igreja? Pois, a mim não acontece a mesma coisa. Para lho demonstrar, lembro que São Pedro não escrevia para protestantes, preocupados em negar-lhe a autoridade, porém a cristãos que de boa fé haviam abraçado o Evangelho, cristãos que em Pedro reconheciam o continuador de Jesus Cristo e nem por sonho pensavam em pô-lo em dúvida.

– Mas, que contraste entre os apóstolos e as bulas papais! – dirá o pastor protestante.
Está-se vendo que o senhor nunca leu uma bula papal. Como São Pedro, o Papa ainda hoje se dirige aos bispos, saudando-os com o doce nome de irmãos; e assim é que se assina? Servo dos servos de Deus. Estas expressões nada encerram de autoritarismo vangloriosos.

– Mas os Papas – atalhará o pastor – dão ordens terminantes, ameaçam castigos, lançam excomunhões.

Pois não é assim que procedem as autoridades cônscias de seu dever? Foi assim mesmo que, na hora precisa, procedeu o humilde São Pedro. Quando o Sinédrio pretendia algemar a Igreja nascente, impondo o silêncio aos seus apóstolos, eis como, em nome de todos, São Pedro rebate as pretensões do poder civil: “Não podemos! Antes de obedecer aos homens, é necessário (obedecer) a Deus.” (Atos IV, 20; V, 29)

Veja com que severidade São Pedro julga e repreende a Ananias e Safira; veja como o Espírito Santo, confirmando a sentença dada por ele, fulmina de morte os dois culpados (V, 1-11). Veja também o desassombro com que ele rejeita as sacrílegas propostas de Simão Mago e lhe exprobra a miserável oferta (VIII, 18-24). Pois os papas, no decurso dos séculos, não fizeram outra coisa: fustigaram os vícios, condenaram os malfeitores, defenderam a liberdade da Igreja contra os caprichos dos poderosos do mundo.
Seguindo o exemplo de S. Pedro, os Papas, sem deixarem de ser humildes, têm defendido a causa do Evangelho contra o erro, contra o vício, contra a força.

Para se convencer disto, basta abrir a história com sincero desejo de tirar dela as lições que dela se desprendem.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

O Ídolo Contemporâneo - Parte II

Por
Rev. Padre Jacques-Marie-Louis Monsabré

Diz-se aí, senhores, que as palavras Deus, Providência e Imortalidade são velhas e intoleráveis; nada mais verdadeiro. O ídolo contemporâneo, submetido à pressão das ideias e dos atos que por um lado nos representam a Deus, e por outro lado a alma humana, cai por terra, quebra-se, esmigalha-se, e protesta contra as temerárias pretensões dos seus fabricadores. Antes de vos dar os pormenores desta consoladora catástrofe, não vos impressionou, como a mim, este fato singular, a saber: que temos a ideia precisa de seres, essencialmente diferentes da matéria, a ideia de forças superiores à matéria? Seja qual for a origem desta ideia, como a poderíamos alcançar, se nada existiu e nada existe além da natureza? É-me absolutamente impossível admitir, que um ser possa nunca formar ideia do que não existe, ideia que, na hipótese de se formar, deveria por fim ser rejeitada quando a inteligência fosse esclarecida pela verdade. E, pois, que nos dizem que somos o ludibrio de uma ilusão, afirmo que a ilusão é improdutível, e que é absolutamente impossível que possamos formar ideia de coisas, cujos elementos não existiram, não existem, não existirão nunca. Estudai as quimeras que o espírito humano concebe, e vereis que se compõem de elementos realmente existentes na natureza: mas na hipótese de que a matéria é o único ser atual e possível, como poderia eu conceber as quimeras, Deus e a alma, se a essência que lhes atribuo está fora de tudo que existe ou pode existir? Não sei, senhores, se vos apresento bem esta dificuldade que o senso comum desde logo opõe ao materialismo; mas eu vejo-a, compreendo-a, e sinto que dissipa completamente do meu espírito todas as dúvidas. Analisemo-la, porém, e deste modo compreendereis melhor a sua força. Deus representa para nós o necessário, o infinito, a suprema perfeição, o motor de todos os mundos, o ordenador inteligente de todos os mundos, o Criador e Senhor da nossa vida. Se Deus não existe, é absolutamente necessário que a matéria corresponda a todas estas ideias, porque é impossível suprimi-las sem dar um desmentido ao espírito humano e sem cair no mais espantoso caos. Não é este o intento dos fabricadores e dos pontífices do grande ídolo; sentem, já vo-lo disse, a fatalidade que atribui à matéria tudo o que se nega a Deus. Logo, a matéria deve ser necessária, infinita, a perfeição suprema, a onipotência inteligente. O peso destas perfeições esmaga e aniquila a matéria. Como seria necessário o ser tantas vezes divisível e diviso, suscetível de aumento e diminuição, incessantemente mutável, o ser que posso imaginar como não existindo, ou existindo de um modo diferente, aumentar, diminuir, mudar, consoante apraz ao meu pensamento? Dominado pela minha potência avassaladora, só por meio dela é que esse ser lograria a ter consciência de si. É um ser necessário! E não possui meio algum de manifestar a sua necessidade, e não a conhece senão sob uma forma contingente e mediante fenômenos contingentes! Estranho ser necessário! Como seria infinito? O infinito não se concebe senão suprimindo simultaneamente o limite e o número. Ora, a matéria está sujeita aos números. Na matéria não só se multiplicam seres distintos, mas cada ser e cada parte do ser se resolve numa inumerável quantidade de seres que escapam à observação experimental. A soma de todas estas quantidades finitas, não produz senão um número finito. Repugna à inteligência um número atualmente infinito, composto de unidades sucessivas. Afirmar a possibilidade de tal número seria o mesmo que destruir os fatos, porque um número infinito na matéria produziria o pleno absoluto, o pleno no seu máximo de densidade; e nesta hipótese o vácuo seria um absurdo, o espaço uma quimera, as formas confundir-se-iam, os movimentos estacionariam, o mundo não seria mais do que uma grande massa informe, uma noite, um repouso imenso. As mesmas dificuldades com referência à perfeição. É impossível admitir a perfeição suprema no ser do qual posso afirmar o mais e o menos, no ser onde não vejo senão mudanças contínuas; e o meu espírito busca um ser no qual, segundo a expressão da Escritura, não há nem sombra nem vicissitude. Dir-me-ão: a matéria está sempre em ação; seja. Mas por mais que atue, nunca logrará elevar-se às regiões sublimes onde o meu espírito contempla a suprema perfeição. À medida que a matéria for aperfeiçoando, o meu espírito subirá mais acima; e, se eu mesmo não sou mais do que matéria, lançar-me-ei, em nome dum ser impossível, a uma luta perpétua. Como admitir perfeição suprema num ser essencialmente contraditório? Se ainda não vedes claramente, senhores, como são profundos os golpes que estas grandes ideias abrem no ídolo, descei das esferas da metafísica às humildes regiões do senso comum, e ponde a matéria em presença do movimento universal, da imensa variedade dos seres e da ordem do mundo. Se Deus não existe, é forçoso que seja a matéria a causa de todas estas maravilhas, e, todavia, a matéria, segundo a confissão dos seus adoradores, é originariamente indiferente e cega. Quando “por um esforço inato, a matéria organiza os seus elementos dispersos, e adquire propriedades e perfeições que não tinha” , escrava de leis fatais que a impelem a progredir, sofre a tirania de todas as circunstâncias fortuitas que determinarão as suas formas. “Singular causa, diz com razão um crítico moderno, que viola todas as leis da lógica, e que está em perpétua contradição consigo mesma: ininteligente, produz uma obra que revela inteligência; cega, realiza a harmonia; imprevidente, a tudo prevê; fortuita, cria a ordem; inconsciente, restabelece a solidariedade; fatal, opera como se fora dotada de vontade própria; inanimada, produz a alma e a vida; privada de razão, de entranhas e de sentimentos, opera prodígios de gênio e de amor”. A matéria é tudo, a matéria pode tudo, a matéria faz tudo; eis aqui, senhores, as proposições mais incompreensíveis que se podem conceber, se não é que as explicações com que pretendem justificá-las não são ainda mais incompreensíveis. Como é que a matéria move o universo? Nada mais simples: o movimento, dizem, é essencial à matéria. Quer dizer, senhores, afirma-se, sem provas, o contrário do que o espírito naturalmente concebe quando une estes dois elementos: matéria e movimento; o contrário precisamente do que a experiência ensina e comprova. Naturalmente concebemos que a matéria é movida; experimentalmente apenas observamos séries de movimentos, cujo princípio escapa à ação dos sentidos. Nestes movimentos observamos uma diminuição contínua em proveito da estabilidade dos corpos, de onde se segue que, se nos é lícito determinar a essência da matéria, apoiados na observação das suas tendências, nunca devemos dizer: o movimento é essencial à matéria, mas sim: o estado estático é essencial à matéria. Sobre este ponto os melhores físicos estão de acordo com a tendência natural do nosso espírito a admitir na matéria um movimento adquirido. Segundo eles, a inércia da matéria é o resultado principal da experiência e o fundamento da mecânica: a física deve sempre fazer entrar nos seus cálculos a matéria como coeficiente da inércia” . E de mais, senhores, já vistes, quando desenvolvíamos as provas da existência de Deus, como era absurda a consequência logicamente deduzida do movimento essencial da matéria: cada átomo deveria possuir, como primeiro motor, o plano harmônico de todas as evoluções do movimento; o infinitamente pequeno tornar-se-ia, por esta vasta concepção do todo, num infinitamente grande . Quereis unir a força e a matéria? Pois bem: o que é a força? É uma série de movimentos produzidos por outros movimentos? É a mesma questão. É uma qualidade inerente à matéria? Mas na matéria há uma qualidade que tende ao repouso e que é a negação daquela. É o calor, a eletricidade, o magnetismo? Estes fenômenos são efeitos do movimento e não causas. É um axioma, uma fórmula, uma abstração? Isto não significa nada . É um ser distinto da matéria? De duas uma: este ser ou é múltiplo como os elementos, ou é único. Se é múltiplo, é forçoso que seria determinado e ordenado ao movimento do todo por uma força superior; se é único, é simples, imenso, inteligente, onipotente; o materialismo não o pode admitir sem se contradizer, sem renegar o seu ídolo. Logo, a inércia é essencial à origem de todo o movimento: primeiro mistério. A indiferença e a uniformidade produziram a imensa variedade dos seres: segundo mistério. Diz-se, senhores, que tudo começou por um período atômico e que a mecânica presidiu à origem das coisas. Abster-me-ei de perguntar ao átomo primitivo e à mecânica original de onde procedem: esta pergunta poderia embaraça-los. Estudemos, pois, aqueles seres tais como nos são propostos. Os átomos constitucionais são idênticos e indiferentes à mecânica indeterminada. Pergunto: a conclusão natural que o senso comum deduz destes princípios não é porventura que devem produzir seres perfeitamente semelhantes, na hipótese de que alguma coisa produziram?E digo, na hipótese de produzirem alguma coisa, porque a afinidade eletiva que se supõe nos átomos, está em manifesta contradição com a semelhança completa e indiferença que se lhes atribui. Não tem ao menos o mérito dos átomos de Epicuro, com os quais se pode conceber uma certa variedade nos seres. De mais, a indeterminação original da mecânica não se pode converter por si em determinação. Ponhamos, porém, de parte esta dificuldade. Admitamos que as causas primordiais, cuja apresentação acabo de fazer-vos, produzem todos os seres orgânicos. Eis a vida; essas causas não vão mais longe. “Não há nada semelhante à vida, senão a mesma vida” . Nasce sempre, e por toda a parte, de m gérmen vivo que se alimenta de um blastema, gerado também por um ser vivo. Para o seu desenvolvimento, a vida necessita ainda de princípios orgânicos que possa assimilar; as substâncias inorgânicas, elementares no estado de indiferença química, não a podem sustentar . Diz alguém “que uma garrafa com carbonato de amoníaco, cloreto de potássio, fosfato de soda, de cal, de magnésio, de ferro, de ácido sulfúrico e sílica é, de um modo ideal, o princípio vital completo” . Desafio a quem quer que seja a que faça passar esse ideal à realidade. Mas as gerações espontâneas? Não as estudei de perto, senhores, mas apelo para as experiências decisivas que enterram para sempre aquela hipótese ; apelo para o testemunho de sábios conscienciosos que me afirmam “que a matéria sem espontaneidade nada pode gerar” , “que a geração espontânea é impossível” , “que todas as experiências rejeitam tal hipótese” , que as forças físico-químicas estão condenadas a uma esterilidade absoluta; “que é necessário admitir, em todo o ser vivo, uma ideia que se desenvolve e manifesta pela organização” . Há mais, senhores; não só todo o gérmen protesta contra o átomo primitivo e contra a mecânica primordial, mas os próprios gérmens protestam contra os gérmens. Com efeito, estes gérmens são todos determinados em espécies distintas que nunca se confundem . Ideou-se, bem o sei, um romance científico, abundante em hipóteses, onde a luta pela existência e a seleção natural exercem um papel extravagante, e onde se infere a possibilidade das variedades nas espécies, a possibilidade das suas transformações sucessivas e, da possibilidade das transformações de uma espécie em outra, a possibilidade das transformações de um reino em outro . Mas a experiência bem longe de justificar estas afirmações audaciosas, pelo contrário, desmente-as. Na verdade, diz-nos a experiência que a seleção artificial só produz variedades; que os esforços livres, inteligentes e calculados do homem para um fim indeterminado desfazem-se constantemente contra a imutabilidade da espécie; que a natureza caprichosa reconduz sempre ao primitivo tipo os produtos da arte humana, desde que a arte humana os abandona. Daqui concluímos, com a experiência, que a seleção natural, resultado de circunstâncias fortuitas, não pode operar nenhuma transformação radical, que os tipos são irreformáveis, que o “plano da organização é invariável na determinação dos limites da espécie, que a espécie não sai da espécie” , numa palavra, que o poder soberano dos átomos idênticos e da mecânica indeterminada são contos que servem para conciliar o sono. Estamos, senhores, na presença de um terceiro mistério de onipotência não menos ininteligível e repugnante que os precedentes: o mistério da harmonia produzida pela ininteligência. Não negamos que a matéria possa tornar-se inteligente; isto seria negar o homem e as suas obras; mas para isto é necessário que a matéria se eleve, por uma longa série de transformações, até ao cérebro humano, produtor do pensamento. Antes de examinar o proceder deste órgão maravilhoso, pergunto ao materialismo se as obras do homem não são precedidas de uma obra inteligente, se não existe uma harmonia preexistente aos nossos atos intelectuais. Não, responde-me o materialismo pela boca dos seus mais conspícuos doutores; a natureza procede cegamente, sem desígnio e sem ordem; ao lado das coisas que parecem manifestar um plano, há as exceções e as monstruosidades; “a harmonia é um ideal do homem que aplica ao universo o seu modo de ver as coisas” . É fácil responder a estas afirmações mais que audaciosas. Se há exceções e monstruosidades na natureza são evidentemente desprovidas de valor em comparação dos fatos precisos e determinados nos quais se manifesta um desígnio meditado; quando muito, aquelas exceções provam o limitado alcance do nosso espírito que não pode explica-las. Aos olhos do verdadeiro sábio, a exceção confirma a lei; a monstruosidade faz sobressair os esplendores da ordem pelo poder do contraste. Quanto ao dizer-se que nos enganamos afirmando a inteligência onde vemos a ordem, é impossível, porque somos obrigados, não pela imaginação, mas pela força analógica do senso comum a reconhecer uma inteligência onde quer que vejamos a harmonia e a ordem. É escusado repetir aqui, senhores, o que já ponderei acerca da harmonia do mundo e dos desígnios superiores que ela nos revela. É necessário fechar os olhos de propósito, para não ver coisas tão evidentes, e para não compreender que, se trabalhamos a fim de que as nossas obras sejam realizadas com número, peso e medida, nada mais fazemos do que imitar essa obra admirável na presença da qual todo o homem reto e sincero tem o sentimento do seu nada. “Analisai a molécula. É um modelo de simetria que apresenta um tipo geométrico; os corpos simples para que formem os compostos não se podem combinar senão em números proporcionais determinados e invariáveis” . Uma potência matemática preside a toda a combinação , o sábio descobre-a no infinitamente pequeno, o povo contempla-a no infinitamente grande. E nos seres vivos “um plano de admirável harmonia dispõe as partes de modo que se adaptam perfeitamente ao fim para o qual o todo existe . Que maravilhosa arte nos tecidos! Só no homem há trinta, e nos seus admiráveis enlaçamentos cada molécula ocupa seguramente o lugar que lhe é devido. Que sábia previdência na lei das uniões e na lei do amor, convergindo não somente à propagação da espécie, mas ainda à conservação, à proteção, a educação de seres frágeis que se preparam para as lutas da vida! Os materialistas invocam a fixidez das leis , a federação dos elementos atômicos, o consensus necessário das suas tendências invencíveis , como se todas estas coisas não supusessem uma inteligência que fez a lei, organizou a federação dos elementos e regula as suas tendências. Agrada-me sobremaneira aquele sábio, quando exclama: “Foi a lei, isto é, a inteligência, a ideia, o espírito, o amor que formou o mundo” , e aquele outro que, no seu arrebatamento, esquece as áridas fórmulas da ciência e canta, como se fora poeta, os gloriosos hinos dos elementos e o espírito divino que os fecunda . Bem vedes, senhores, que há inteligência antes do cérebro humano. Se a matéria não pensa senão por meio deste órgão, é forçoso aceitar este absurdo enorme: a ininteligência é mãe da harmonia. Ó divindade miserável! Ídolo falaz do materialismo, eis-te esmagado pelo universo inteiro. O movimento, a variedade dos seres, a vida, a harmonia, tudo pesa sobre ti e te reduz a pó; quero, porém, descarregar os derradeiros golpes sobre a tua teoria do cérebro humano de que te glorias como se fora a tua obra prima. Não é agora, senhores, ocasião oportuna de fazer uma longa demonstração da espiritualidade da alma: esta questão tratar-se-á a seu tempo. Também não me deterei em refutar esses sofismas vulgares com que os materialistas obstinadamente nos apresentam, como causas das nossas operações intelectuais e morais, as condições orgânicas e as funções concomitantes. Limitar-me-ei a consignar os fatos perante os quais é forçoso admitir, ainda uma vez mais, a impotência absoluta da matéria. Em todos os nossos atos, ainda nos mais nobres e levantados, temos a consciência de que somos limitados, e, por conseguinte, dependentes. E se apenas dependemos da matéria, é à matéria que devemos atribuir a consciência do nosso eu, as nossas ideias, os nossos juízos, os nossos raciocínios, a nossa vontade, o sentimento do dever, isto é, devemos derivar, contra os princípios da razão, o imutável do variável, o uno do divisível, o livre do fatal, o meritório do irresponsável. O ser vivo, incessantemente movido pelo princípio que o anima, perde e adquire, algo desaparece e renova-se a ponto de que, da matéria que possuía no começo de um período matematicamente medido pela ciência, não lhe resta a mínima molécula logo que aquele período termina. Por mais nobre que seja a massa de que é formado o cérebro humano, é certo que a cada momento se transforma. E sendo assim, deveríamos, sob a impressão constante de um trabalho que remova o nosso cérebro, modificar constantemente a afirmação da nossa existência. E não é assim. A afirmação da nossa existência é sempre a mesma. Há vinte, quarenta, sessenta anos, e mais ainda talvez, que nós dizemos: eu. Eu imputável que subsiste através da incessante mutabilidade do nosso organismo. Como explicar isto, senhores? Havemos de dizer que cada átomo antes de se ausentar teve o cuidado de dizer adeus e fazer as suas confidências ao átomo que o vem substituir? Seria uma loucura afirmar tal. O eu subsiste e afirma-se precisamente, porque há em nós uma substância simples e imutável que une as fases mutáveis da nossa existência, e a matéria sempre transformada e sempre substituída, não pode ser aquela substância. Do mesmo modo, senhores, a matéria divisível não pode ser a substância que vê em nós as ideias e realiza a unidade dos nossos juízos e raciocínios. A preciosa massa cerebral, por muito impressionável que seja, não pode receber senão as imagens que lhes são apresentadas e, supondo que as conserva, tais imagens nunca nos representariam senão seres particulares, indivíduos determinados. Se em mim há apenas impressões cerebrais, verei, quiçá, tal árvore, tal animal, tal homem, mas ser-me-á absolutamente impossível, exprimindo por uma só palavra um gênero, uma espécie na sua totalidade, ver a árvore, o animal, o homem em geral, e por maioria de razão se se tratar de coisas material e atualmente irrepresentáveis, com o necessário, o possível, o infinito, o absoluto, o futuro e outras. Não é o divisível, mas o uno que forma as ideias e sobe tudo o que as enlaça em nossos juízos e raciocínios. Quando dizemos: este homem é justo, onde é que se realiza o laço desta proposição? Quando afirmamos que tal conclusão está contida em tais e tais premissas, onde é que se pronuncia esta afirmação? É em cada molécula da substância cerebral? Mas como, se não há mais do que um juízo e raciocínio? Quem opera a intelecção de uma substância tão divisível e divisa, senão a unidade que a governa, a unidade que aquela massa não é, nem pode ser. Dizem: a matéria está sujeita a leis inflexíveis. Que seja. Mas, não obstante, eu sou livre. Se determino marchar para a direita e não para a esquerda, marcho; levantar o braço e não tê-lo imóvel, levanto-o; abrir os olhos, e não tê-los fechados, abro-os; realizar um dado pensamento e não outro, realizo-o. Em todos estes atos eu tenho a consciência de que é a minha vontade que se cumpre. E se eu fosse apenas matéria seria tão escravo da necessidade que não somente não poderia praticar atos livres, mas, o que é mais, nunca poderia saber o que significa a palavra liberdade. Ora, se a fatalidade da matéria repugna à liberdade, a consequência necessária é, que a irresponsabilidade repugna à ideia de mérito ou demérito. Entretanto, senhores, é incontestável que existe em nós a noção e o sentimento daquelas duas coisas, porque temos a noção e o sentimento do dever. Domina a nossa vida, regula, dirige e qualifica os nossos atos, uma lei de que não somos autor e que por isso mesmo não podemos alterar. Se ajustamos as nossas ações com esta lei, praticamos o bem, merecemos; se a transgredimos, praticamos o mal, desmerecemos. Ora, com que direito afirmamos das nossas ações que “esta é meritória e aquela é má” se acima de nós nada há, se depois de nós só há matéria? Não nos dizem porventura que a matéria é o joguete duma inflexível necessidade? Como posso eu adquirir mérito ou demérito se estou sujeito a violências tais de que não posso escapar? O respeito, o amor, a liberalidade, a caridade e a dedicação outros tantos efeitos são da lei fata; o desprezo, o ódio, o assassinato, o egoísmo, não são crimes, não, mas produtos da necessidade. Isto é, decerto, uma inaudita monstruosidade, mas tão criminosa como a existência de um nó no tronco de uma árvore, ou de um tumor no músculo de um animal. Se o materialismo quiser ser consequente, deve admitir que o vício e a virtude são produtos como o vitriolo e o açúcar, que é tão contrário à moral o ser perverso como o ser zarolho ou corcovado . Mas o materialismo revolta-se algumas vezes contra estas consequências, e acusa-nos, quando lhas lançamos em rosto, que lhe movemos uma guerra desleal e que fugimos, por medo, das refutações científicas. Sois testemunhas, senhores, de que eu também fugi destas refutações. Se para esmagar o ídolo contemporâneo não tivera mais argumentos do que o deduzido da ideia do dever, ainda assim não sairia do terreno científico. Os dados do senso íntimo serão porventura tão científicos como os da experiência física? A ciência, a verdadeira ciência, não consistirá acaso em conhecer os princípios e ver neles as conclusões? Se nos princípios do materialismo vejo a destruição de toda a moral, terei ainda a necessidade de procurar novos argumentos? Não tenho o direito de dizer, que quando um princípio destrói o que deve ser, é um princípio falso, visto como os princípios são regras de ser? É por isto, senhores, que os materialistas se veem obrigado a capitular, ainda que contra a vontade. Conhecendo a sua flagrante contradição com a consciência do gênero humano, o materialismo deserta do erro e admite a ideia do dever. Há mais de sessenta séculos que a consciência do gênero humano fala, e nos diz que é necessário cumprir o dever ainda mesmo com detrimento da matéria. Ouvistes? Ainda mesmo com detrimento da matéria! Pois bem, nada mais atroz e insensato do que esse axioma universal da moral, se a matéria é o nosso único criador e senhor. A sabedoria, a justiça, o dever exige que a respeitemos, que lhe prestemos culto, que sigamos docilmente os seus movimentos. E, todavia, nada mais baixo e vil! “Não há inteligência, não há faculdades superiores; tudo é sensibilidade, tudo embrutecimento, tudo terreno”, segundo a enérgica e bela expressão de Bossuet. Bem pelo contrário, foi sempre glorioso, e sê-lo-á sempre, o elevar-se o homem acima da matéria, resistir ao ardor do seu sangue e à violência dos seus instintos em obséquio à justiça, sofrer pela justiça, morrer pela justiça, desprezar a matéria tanto quanto é necessário para manifestar uma grande dedicação. Quando a miséria solta os seus gemidos, quem é mais belo, mais amável, mais digno de louvor, o epicurista que fica indiferente, e que, fiel à máxima egoísta dos pagãos, não sente dor nem piedade em presença do desgraçado, ou o homem generoso que liberaliza o seu dinheiro, emprega o seu tempo, as suas forças e arrisca a sua vida para salvar a vida de um dos seus irmãos? Quando a pátria invadida solta o grito de alarme e chama os seus filhos, qual é o herói, cujos feitos gloriosos mais tarde cantará? É o covarde que, pro amor da sua querida matéria, vai escondê-la e procura ele mesmo subtrair-se às balas e aos golpes do inimigo, ou o homem valente que voa para se alistar nas fileiras dos bravos, e se expõe às fadigas de uma campanha sangrenta e oferece impávido e o seu peito generoso ao fogo do inimigo? Ó matéria, ídolo bestial e frágil, a minha grandeza será tanto maior quanto mais entranhado for o desprezo que te votar. Não só me roubas a honra se te sirvo, mas ainda se em teus braços procuro a felicidade, ela me foge com obstinada ironia . Assim, pois, ó matéria, se tu não podes satisfazer as aspirações da minha alma, como posso eu suportar o jugo da tua divindade? Vai, vai! Eu não tenho necessidade de ti, basta-me o meu grande Deus. Ó Deus! Se tu não existiras, que profundo e espantoso abismo não se abriria para engolir o que há de mais nobre, e grande, e respeitável sobre a terra! Que valor teriam as orações dos santos? De que serviriam as sublimes contemplações das almas absorvidas no ideal? De que serviria o sangue dos mártires do dever? De que serviriam os gemidos e a derradeira esperança da justiça oprimida? De que serviriam as lágrimas dos abandonados? O nada, o nada seria o termo de tudo isto! O nada!... em quanto os perversos estimulados pela irresponsabilidade dos seus crimes devastariam o mundo! Que horror! Não, não, meu grande Deus, nós não queremos ser órfãos. Só tu podes sustentar o universo de que és Pai. Vinde a nós, e repeti-nos a grande palavra do deserto: Eu Sou o que Sou: Ego Sum qui Sum. Sim, força infinita, causa universal, existência necessária, perfeição suprema, inteligência soberana, criador e ordenador do mundo, senhor da nossa vida, tu és o que és, e a matéria é o que não é, porque sem ti seria nada. Vede, Senhor: eis-me aqui, de joelhos, com os olhos e mãos levantadas ao céu: contigo n´so calcamos aos pés os membros rotos do ídolo da falsa ciência, e em lugar da cega multidão que a toda hora exclama: Não há Deus, Non est Deus! Nós, teus filhos, cantamos com o coração transportado e com a alma comovida: Creio em Deus: Credo in Deum.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

O Ídolo Contemporâneo - Parte I

Por
Rev. Padre Jacques-Marie-Louis Monsabré

Senhores:

Há um progresso descendente oriundo do erro, como há um progresso ascendente oriundo da verdade. Confessar a existência real e pessoal de um ser superior e invisível, o mesmo é que aceitar, em princípio, todas as verdades que se relacionam com esta existência, por mais profundas e incompreensíveis que sejam. Mas quando o espírito humano empreende suprimir os mistérios que não pode explicar, não abandona a sua empresa senão depois que se persuade ter destruído a própria raiz daqueles mistérios. A negação pura e simples de Deus devia suceder às imensas complicações dos sistemas panteístas, nos quais reaparecem, sob formas de difícil compreensão, e, conseguintemente, inaceitáveis, as ideias de causa primária e de finalidade, das quais o panteísmo quereria prescindir. A unidade primordial que se destrói por si mesma divide-se e converte-se numa multiplicidade infinita, sem deixar de ser uma; a substância da qual emanam os seus atributos que produzem por sua vez inumeráveis atributos; o ser puro, indeterminado que se determina; o ser nada que se torna algo; este ser que adquire a consciência de si mesmo e que se torna universo; a ideia que não se desenvolve senão para tornar a si depois do exílio, da dispersão e da fuga de si mesma: eis o que o panteísta deve crer. É duro, confessemo-lo. A inteligência fatiga-se analisando estes profundos desvarios; e os esforços do idealismo para regularizar entre nós a situação do panteísmo não têm logrado salvar este erro do descrédito universal. A Alemanha, depois de ter chamado ao panteísmo a filosofia do futuro, lança-lhe em rosto estas desdenhosas palavras: “Aquilo a que, ordinariamente, chamam profundidade do espírito alemão, mais se pode dizer confusão de ideias do que profundidade de espírito... Nada há que mais repugne do que ver essa filosofia aparentar uma profunda erudição, e ensoberbecer-se das suas teorias ocas e nebulosas”. Do desdém passou-se à grosseria. “Os nossos filósofos modernos gostam muito de nos dar, requentados, velhos legumes, pondo-lhes nomes novos, para no-los servirem como últimas invenções da cozinha filosófica” .

Numa palavra, já não presta o eu igual ao eu, o eu absorvido pelo não-eu, a ideia pura e os seus três momentos; tudo isto passou para dar lugar à santa natureza, à matéria fecunda, existente por si mesma, às condições físicas e aos seus resultados. Mas uma inexorável fatalidade persegue o espírito humano ainda em seus mais profundos desvarios. O materialismo, negando Deus, não pode prescindir das ideias que este nome augusto representa, bom ou mau grado seu refere-as ao ser impotente cuja existência única e suprema proclama. Aqui, realmente, não há mais do que uma substituição, e Leibniz disse com justiça: “Uma natureza universal deve, necessariamente, tornar-se um ídolo”.

Bem o sabeis, senhores, este ídolo é a vergonha do nosso tempo. Ensina-se à mocidade que deve prestar culto ao deus-matéria, prometeu-se ao povo os favores deste ídolo. Na presença de tal escândalo, já não é bastante repetir aquela palavra enérgica proferida do alto desta cadeira por um dos meus predecessores contra o materialismo ; é necessário entrar a todo custo na oficina científica onde se fabrica o ídolo contemporâneo, ver como os obreiros trabalham no seu artefato, estudar os processos do fabrico, notar os defeitos do produto que pretendem impor às adorações do gênero humano, esmigalhar o ídolo, para a glória do nosso grande Deus e honra da consciência pública.

I

Reduzem-se a três classes os obreiros ocupados na fabricação do deus-matéria: os tímidos limitam-se a circunscrever os limites das ciências naturais; proclamam a soberania da experiência para determinar os fatos da ordem física, e a necessidade de prescindir, no estudo dos fenômenos, das suas condições e leis, de toda a preocupação sistemática.  Nisto não os censuramos. As concepções a priori podem extraviar a observação que investiga as leis da natureza. Seja-nos, porém, lícito lamentar que homens que se dizem sábios restrinjam o domínio da ciência, evitando, de propósito, com referência às causas primeiras e às forças imateriais, certas conclusões que naturalmente se apresentam, no fim de toda a experiência bem feita; conclusões que ilustres sábios idos aceitaram sem hesitação, porque satisfazem a imperiosa necessidade que a razão experimenta, depois de analisar os fenômenos, de se elevar a conhecimentos mais altos e de saciar, por meio de legítimas especulações, as suas naturais tendências para a perfeição, preenchendo as lacunas da experiência.  Seja-nos permitido ainda observar que há, na ordem puramente intelectual como na moral, fatos sobre os quais a experiência, sem mais instrumentos do que os olhos e a razão, pode pronunciar-se com tanta segurança como na ordem física, e que é injusto, por conseguinte, enfeudar a experiência em proveito exclusivo das ciências chamadas positivas.

Os tímidos confessam certamente que “a aplicação do discurso experimental aos fatos, a teoria, constitui a ciência; que a teoria não é mais do que a ideia científica comprovada pela experiência; que o raciocínio não serve senão para dar uma forma às nossas ideias, de modo que tudo se reduz primitiva e finalmente à ideia; que a ideia é que constitui o ponto de partida, ou o primum movens, de todo o raciocínio científico; que ela é igualmente o ideal das aspirações para o desconhecido”.  Desejaríamos, porém, que se explicassem melhores e mais claramente sobre a natureza, origem, sede e alcance desta ideia a pripri. É certo que se inclinam respeitosamente diante da filosofia desligada da experiência. “A Filosofia, dizem, representa a aspiração eterna da razão humana para o desconhecido; comunica ao pensamento humano um movimento que o vivifica e enobrece, incitando-o constantemente à solução inesgotável de grandes problemas; entretém aquele fogo sagrado da investigação que no sábio nunca se deve apagar”.  Tudo isto está bem; mas é ainda pouco esta homenagem. Quereríamos uma confissão mais franca das realidades que chamam indeterminadas: Deus, a providência, a espiritualidade da alma, as funções vitais; quereríamos uma confissão explícita da possibilidade de unir estes dois mundo que não podem ser estranhos um ao outro: o mundo físico e o mundo metafísico; uma homenagem prestada à grande e verdadeira ciência, à ciência que reduz a princípios mais elevados e mais universais o conjunto dos conhecimentos humanos. Finalmente, é certo que os tímidos, no estudo dos fenômenos da vida, na biologia, confessam que o como do organismo não se pode explicar senão pela palavra criação, que “a ideia criadora é, para falar com propriedade, a que regula a evolução vital”, mas, por que não saúdam abertamente o criador da vida, como Newton saudara o motor do universo?

É funesta e, direi mesmo, culpável toda a hesitação nesta matéria, numa corrente que arrasta os espíritos a não verem nada acima das grosseiras realidades da matéria. Arquivemos, entretanto, as confissões e as concessões do determinismo, e pois que ele deixa à nossa disposição o mundo filosófico, aproveitemo-nos dele.

Os solapados não são tão condescendentes, chamam-se positivistas. O positivismo é empírico no mais elevado ponto. Nunca o levareis a admitir que o espírito humano possui uma força íntima e original que, pelas suas intuições e raciocínios, governa, dirige e regula a experiência. “Fatos, e nada mais do que fatos, analisados e coordenados, eis o que basta. O resto nada vale”. Do mesmo modo suprime autoritariamente toda a ordem de ideias que não assente sobre a experimentação dos fenômenos. As causas e os fins são contrassensos para o positivismo. Se algum espírito delicado e escrupuloso tenta escapar aos rigores positivistas saudando de longe a metafísica como ciência estranha que não deve ser desprezada, e Deus como inteligência suprema e reguladora no qual se pode crer sem prejuízo da causa diretamente determinativa de cada fenômeno , o positivismo exclama: “Não se julgue que, tratando-se de causas segundas, seja livre a cada um pensar sobre as causas primeiras que lhe aprouver. Não. Sobre este ponto não há liberdade: a minha determinação é precisa e categórica: declaro que as causas primeiras são desconhecidas” . Tudo que não entra na esfera dos fatos é inacessível à razão. Não trateis já a psicologia como se fora uma ciência especial , porque sereis censurados e pronunciarão contra vós esta sentença: “Assim como o físico reconhece que a matéria pesa, assim também o psicologista afirma que a substância nervosa pensa sem que nem um nem outro pretendam explicar por que é que aquela pesa e este pensa” . “É evidente, diz um professor distinto, que a neutralidade diplomática dos positivistas oculta um tratado secreto de aliança contra o inimigo comum, o espiritualismo; e talvez que não lhes falte certa ingenuidade imaginando que, na grande confusão de doutrinas, os seus desejos sejam duvidosos.

Razão tinha eu, senhores; os positivistas são operários solapados. Não podem, por mais que se esforcem, ocultar-nos as suas manobras, descobertas, demais, pelos seus companheiros de oficina. “Note-se bem, diz um deles, se os serviços do positivismo nos obrigam a fechar os olhos às suas debilidades, não podemos ignorá-las apesar das suas reticências. As suas afirmações e as suas negações não nos iludem, nem a respeito do seu valor próprio, nem a respeito da sua extensão. A escola positivista é uma seita, oriunda do materialismo; não vale mais e não tem mais alcance do que o materialismo”

Eis o que é claro, senhores: o positivismo presta serviços. Prepara sorrateiramente a obra dos operários francos e resolvidos que se chamam sem vergonha materialistas. Vede como se agitam em roda da imensa fornalha onde se derrete o bronze do grande ídolo, com que atividade preparam o molde que deve lhe dar as suas formas definitivas e para sempre adoradas. Quereis saber que processos empregam na realização da obra? Ei-los: importarem-se pouco com as contradições, afirmar com audácia, vangloriarem-se impudentemente.

A primeira contradição dos positivistas, a mais palpável e característica, é a que eu chamarei contradição de método. Consiste em estabelecer como princípio, por uma parte, que o empirismo é norma soberana de toda a afirmação científica, que nada se deve admitir que não seja demonstrado pela experiência, e, por outra parte, estabelecer e seguir um dogmatismo desenfreado, cujas proposições escapam toda a disciplina e toda a verificação experimental.

A nossa vista, auxiliada de instrumentos aperfeiçoadíssimos, não atua senão sobre um espaço limitado. Não podendo abarcar a imensidade da extensão, parece que, pelo menos, deveríamos guardar silêncio sobre um tão elevado mistério, desde o momento em que a metafísica não no-lo pode explicar. Mas não é assim. O materialismo pronuncia-se e declara que a matéria é infinita. A experiência só nos subministra fatos. Analisem-se, coordenem-se, interpretem-se, é o que desejo; mas respeite-se a sua essência, pois que ninguém a pode observar. Mas, não, o materialismo entra violentamente neste arcano, e proclama que o movimento é essencial à matéria. Nunca se demonstrou que a matéria mudasse as espécies ou as produzisse; e, apesar disto, o materialismo ousa afirmar que a matéria tem produzido sempre o que nunca produziu, e que é onipotente. Tudo começa, tudo se sucede, tudo acaba: seres, formas, movimentos, revoluções. Nós não logramos, no curto espaço de tempo que se chama vida, mais que possíveis e contingentes; e não obstante isto, o materialismo afirma que a matéria é necessária e eterna. Da mesma confissão da sua ignorância acerca das causas, deduz bruscamente monstruosas conclusões nas quais manifesta sem pudor o seu desprezo de toda a lógica. Convém-lhe ignorar a causa que produz as operações intelectuais, as ideias, os juízos, os raciocínios, os sentimentos, as volições, as determinações; e conclui imediatamente: todos estes fenômenos são movimentos da matéria”. A que vêm os elogios dos materialistas a um método que a todos os momentos atraiçoam? Não é evidente que os fatos de que o materialismo se aproveita com tanta avidez só o interessam, como alguém observou com razão, “na hipótese de uma total conformidade, esperada ou pressentida, entre aqueles fatos e uma doutrina previamente estabelecida” ? Não é manifesto que esta doutrina intenta um fim ao qual deseja chegar por faz ou por nefas, e não uma conclusão legítima da ciência experimental?

Para evitar o opróbrio das suas contradições, o materialismo procura um subterfúgio. Pretende que “os materiais da experiência, se não podem resolver de um modo positivo certas questões, são suficientes para resolver de um modo negativo” . Isto é demasiado ingênuo, senhores; uma criança por certo que não se deixaria colher no laço. Há, bem o sabeis, negações que equivalem a uma afirmação. Quando alguém me diz: “eu não sou um homem de mau procedimento”, entendo por isto que esse alguém é um homem probo. Do mesmo modo, quando me dizem que a matéria não tem limite, entendo por isto que é infinita; quando me dizem “não se podem conceber outras causas além da matéria”, entendo, por isto, que a matéria é onipotente; quando, enfim, me dizem que a matéria não foi criada, entendo que existe de si, que é eterna. Apesar dos protestos do materialismo, é forçoso que renuncie ou ao seu método, ou ao seu dogmatismo.

A contradição fundamental de método, senhores, leva-nos necessariamente a admitir, acerca da causa, natureza e finalidade das coisas, muitas proposições inconciliáveis e contraditórias num mesmo sistema. Seja exemplo: o materialismo, depois de ter estabelecido que não existe outro princípio além da matéria, não julgou inconveniente opor-lhe a força sob uma forma simples que a exclui . Afirma que o homem não é de natureza diferente do mais vil átomo, e todavia gloria-se de se elevar cada vez mais sobre a matéria, dominada pela ciência e pelo trabalho de cada dia . A vida ora procede do acaso, ora se forma como os cristais sob a ação do sol, e, por isso, sob a influência de leis matemáticas, ora procede de um ser vivente .

Umas vezes a matéria é inconsciente e cega , outras vezes é um artista criador . Umas vezes opera sem intenção, sem plano na sua organização; outras vezes manifesta vestígios evidentes de apropriação a certos fins . Todas estas contradições se agrupam, avolumam, e misturam e confundem, mas nem por isso o materialismo deixa de apresentar-se cada vez mais arrogante.

Vede, senhores, a audácia admirável com que dogmatiza. Para ele a metafísica não é ciência. Em vez de procurar conciliar as intuições e as induções transcendentes do espírito humano com os dados da experiência, afirma que há antinomia entre os princípios da física e os da metafísica. Tem a audácia de afirmar que Deus e a alma são hipóteses absurdas, mas não se dá ao incômodo de nos provar que estas hipóteses envolvem contradição. Acusa-nos de falarmos da criação, como se houvéramos sido testemunhas dela , e atreve-se a falar do infinito, da eternidade, da onipotência da matéria como se tivera visto sair das suas retortas o infinito, o eterno, a onipotência. Incapaz de esmagar os espiritualistas sob o peso de sólidos argumentos, apela para a injúria: chama-lhes sonhadores ignorantes, pensadores invencioneiros e hipócritas. O materialismo apresenta-nos este argumento triunfante: tudo o que é possível realiza-se; mas o universo é possível e isto pasta para que exista. Para não admitir conclusões inevitáveis, eleva-se este cavalheiro do positivismo e da experiência até um misticismo transcendental, cuja fórmula eu vos suplico que noteis atentamente. “É verdade que não sabemos como as coisas se passaram no princípio; seja, porém, qual for a nossa ignorância, devemos dizer com certeza, que a criação orgânica pôde e deveu realizar-se sem a intervenção de uma força externa”. Eis o mais maravilhoso ainda: “Nós temos a certeza subjetiva do nascimento espontâneo dos seres orgânicos” . Senhores, se o ridículo poderá ter os foros do sublime, estaríamos, certamente, em pleno sublime.

Todavia as afirmações da escola materialista parecem-me menos repugnantes do que a audácia das suas pretensões. Esquecida do passado, ousa impudentemente chamar-se a ideia nova. A ideia nova! Mas pondo de parte as falsas interpretações de certos fatos, apoiados em recentes descobrimentos, não há uma só, dentre as proposições materialistas, que não fosse há muito proclamada. Poderíamos formar, com paciência, um quadro sinótico das afirmações contemporâneas e das do século passado, para nos convencermos de que os materialistas do século XVIII pensaram exatamente como os do século XIV. A mesma exageração e o mesmo abuso do método experimental, a mesma tendência para divinizar a natureza, as mesmas propriedades atribuídas à matéria, a mesma repulsão de toda a substância simples, a mesma doutrina acerca da geração espontânea, da circulação da vida, das transformações sucessivas e da identidade dos seres, o mesmo horror às causas finais, a mesma adoração da lei e da fatalidade; há apenas diferença no estilo, os antigos empregavam uma linguagem mais castigada.  Um apologista que os refutou, não admite neles boa-fé ; mas prova o seu parentesco com Lucrécio, Epicuro, Demócrito, que tiveram por ascendentes aqueles materialistas que, segundo o livro da Sabedoria, falam assim: “Nascemos do nada e ao nada voltaremos... o nosso corpo converter-se-á em pó, o nosso espírito dissipar-se-á como ligeiro fumo... tudo acaba com a vida... eia, gozemos os bens presentes; depressa, que a juventude passa rápida; embriaguemo-nos com o vinho e com os perfumes. Aproveitemo-nos na flor do tempo, coroemo-nos de rosas antes que murchem, que não haja campo em que não pasce a nossa voluptuosidade” . Eis aqui, senhores, as velhas ideias perfeitamente concordes com as do nosso tempo.

O materialismo não é a ideia nova, não é a ciência. Glorie-se muito embora e diga solenemente: “A ciência despediu-se de Deus acompanhando-o até às suas fronteiras para lhe agradecer os seus serviços provisórios; presentemente não precisa d’Ele para nada. A ciência afirma isto, a ciência nega aquilo, a ciência pronuncia, a ciência decreta, a ciência ordena”. Isto não vos deve desconcertar, nem ao menos comover, porque ainda que carecêsseis de toda a ciência, podíeis invocar com nobre orgulho os nomes respeitáveis duma falange de homens ilustres que diziam: parece-me, submeto ao vosso juízo estas reflexões, e que, sob esta forma simples e reservada, pronunciaram oráculos que ainda não foram reformados; os nomes dos Kepler, dos Copérnico que agradeciam a Deus com ternura as luzes que se dignou derramar sobre o mundo; os nomes dos Newton e os Lineu que seguiam os vestígios de um poder e de uma sabedoria infinita, através dos espaços e do firmamento e dos reinos da natureza ; e, entre nós, os nomes sábios e distintos, cuja modéstia não quero ferir, mas a quem publicamente agradeço o seu zelo e perseverança em contradizer com a indiscutível autoridade dos seus trabalhos, a obra dos fabricadores do ídolo-matéria. Sábios por sábios, prefiro os modestos aos imprudentes; os que procuram persuadir-me para me elevar, aos que se me impõe para me aviltar.

Já sabeis, senhores, quais são os processos da escola materialista. Pelo simples exame destes processos é fácil determinar o resultado dos seus trabalhos; mas eu prometi-vos uma vistoria a fim de que ficassem patentes os defeitos de fabricação do ídolo com que pretendem substituir o verdadeiro Deus. Vou cumprir a promessa.

Continua...