quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Revolução protestante e a suposta corrupção da Igreja Católica

Conheça o Projeto Anscar Vonier e ajude curtindo e divulgando: https://www.facebook.com/projetoanscarvonier

https://anscarvonier.wordpress.com/

***

Segue em sequência os artigos de Diane Moczar sobre a revolução protestante e a suposta corrupção da Igreja Católica na Idade Média como motivo para isso. Em seguida, para quem se interessar, coloco alguns outros textos sobre o assunto:

- Uma Igreja corrompida até o topo?
- Heresias no período pré-Reforma
- Condições na Inglaterra antes da Reforma
- A devastação protestante na Inglaterra
- A devastação protestante no continente
- Outras consequências da Reforma

Outros textos sobre o tema:

- Lutero, "católico"? Nem sonhando!
- "Reforma" protestante e o papa Lutero

Uma Igreja corrompida até o topo [Final - Outras consequências da Reforma] - Diane Moczar

Conheça o Projeto Anscar Vonier e ajude curtindo e divulgando: https://www.facebook.com/projetoanscarvonier

https://anscarvonier.wordpress.com/

***



As explicações para o surgimento e a sobrevivência das novas religiões são, geralmente, políticas. Na Inglaterra, Henrique VIII e, em grande parte, Elisabete I, uniram seu poder político, sua riquesa e influência internacional ao controle da religião. Isso também aconteceu no continente europeu, onde muitos príncipes alemães ligaram-se ao movimento da Reforma para beneficiarem politicamente a si e ao território que representavam. A nova religião protestante dos holandeses seria um dos movimentos da rebelião contra os seus governantes católicos espanhóis. "No século XVI", escreve Cameron, "religião se tornou política de massa".

As consequências culturais e psicológicas de longo prazo causadas pela Reforma na Europa e Inglaterra não são nosso tópico aqui, mas vale a pena lembrar que elas foram tão devastadoras que até alguns protestantes modernos lamentaram a atitude de seus antepassados. Walsh, em The Thirteenth, Greatest of Centuries, cita um dramaturgo alemão discutindo a ruptura cultural causada pela Reforma:
Eu, como protestante, muitas vezes lamentei o fato de termos adquirido nossa liberdade de consciência, nossa liberdade individual, a custos tão altos. A fim de dar espaço a uma vil e pequena planta de vida pessoal, destruímos todo um jardim ornamental e derrubamos uma floresta virgem de ideias estéticas. Jogamos fora o jardim de nossas almas o solo fértil que vinha sendo cultivado por milhares de anos, e então passamos a arar sobre terrá estéril.
A referência à "vida pessoal" aqui apresenta outra característica da Reforma e a razão por que teve êxito: é o subjetivismo essencial do protestantismo, exemplificado no seu princípio de julgamento privado. Cameron observa que os reformistas triunfaram em "sujeitar a doutrina ao debate público; as pessoas eram, de fato, convidadas a escolher as ideias religiosas que as agradavam". Eis o nosso subjetivismo moderno: apoio a minha religião não porque reconheço que é a única fundada por Cristo, mas porque me agrada.

Essa mudança brusca de perspectiva espiritual teve um preço. O pastor protestante David Hartman, no The New Oxford Review, de 28 de setembro de 1989, escreve:
Até mesmo para um pastor protestante como eu é difícil levantar a hipótese objetiva de que o estado dos afazeres humanos no seu todo tenha sido melhorado pela Reforma. 'Uma das maiores tragédias da História', observa o historiador Paul Johnson, 'e a tragédia central do cristianismo - foi a ruptura da harmoniosa ordenação de mundo que havia se desenvolvido na Idade Média sobre uma base cristã'.
Felizmente, do outro lado da revolta protestante viria a verdadeira reforma, inadequadamente conhecida por "Contra-Reforma". Pierre Janelle observa que a Contra-Reforma "dificilmente poderia ter triunfado, caso a cristandade estivesse realmente corrompida na sua alma; mas não estava (...) A Europa cristã era rica em fé, caridade e devoção" - e daria à luz outra grande era da Igreja.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Uma Igreja corrompida até o topo [Parte 5 - A devastação protestante no continente] - Diane Moczar

Conheça o Projeto Anscar Vonier e ajude curtindo e divulgando: https://www.facebook.com/projetoanscarvonier

https://anscarvonier.wordpress.com/

***

Primeira Parte / Segunda Parte / Terceira Parte / Quarta Parte

Em outros lugares da Europa, novas áreas protestantes sofreram rupturas similares. A qualidade das instituições públicas regrediu em relação aos níveis medievais. O médico e autor americano James J. Walsh observa que os escritores modernos são tentados a admitir, com base nos deploráveis hospitais e asilos do seu tempo (começo de 1800 a 1900), que os hospitais medievais devem ter sido muito piores. A suposição é a de que quanto mais se volta no tempo, mais ignorantes e bárbaras tendem a ser as condições.

A pesquisa de Walsh revela, no entanto, que isso não é verdade. Ao analisar a medicina da Idade Média, ele encontrou grandes avanços na educação médica, nos estudos clínicos, na farmacologia e nos regulamentos de saúde baseados nos novos conhecimentos da época. Ele recorda avanços e experimentos em diversos tipos de cirurgias: óssea, plástica, obstétrica, cardíaca e intestinal, assim como o tratamento de ferimentos à bala (um novo problema, causado pela invenção da pólvora). Há até menção ao uso de anestesia, sobre o qual havia alguma controvérsia: alguns cirurgiões utilizavam-na e outros não a aprovavam. (A prática acabou sendo de lado e a técnica se perdeu até ser retomada nos tempos modernos).

Quanto aos hospitais, Walsh afirma que os piores da História - muito inferiores aos medievais - foram aqueles construídos no século XIX. Esses prédios, sujos, escuros e superlotados eram locais deprimentes para uma pessoa doente. Os hospitais medievais, por outro lado, abertos a pacientes pobres ou ricos, eram construções atrativas, espaçosas, com largas janelas; geralmente construídas em jardins e próximos a uma fonte de água para saneamento. Os pacientes eram tratados por religiosos dedicados, instruídos em medicina; os ricos pagavam por seus remédios e traziam a sua própria comida e vinho, mas os pobres não pagavam por nada. As paredes dos compartimentos ou quartos eram cobertas com pinturas ou outras decorações para que os pacientes tivessem algo atrativo para olhar. Instituições para doentes mentais eram também muito avançadas; elas não eram, de modo algum, os "ninho de cobra" retratados nas histórias de horror do começo da modernidade. Na Europa do Norte, os loucos eram geralmente alojados em hospitais ligados aos mosteiros em áreas rurais. Os pacientes recebiam quartos espaçosos e tratamento amável. A Espanha era considerada particularmente avançada no tratamento dos loucos, e os pacientes frequentemente melhoravam, a ponto de poder retornar à sociedade.

A Reforma causou um efeito devastador nos hospitais e em todas as outras formas de serviço social, como vimos nos casos dos mosteiros e das guildas. Um autor de história da enfermagem observa que o conhecimento e a técnica desta profissão haviam sobrevivido somente nas ordens religiosas. Consequentemente, coube ao Estado protestante sustentar os pobres, doentes, órfãos e loucos dentro de suas fronteiras, mas isso levou tempo, e as instituições públicas resultantes deixaram muito a desejar, quando comparadas ao que a Igreja havia oferecido por séculos, por amor a Deus.

Quanto à educação, o teólogo Erasmo de Roterdã, que originalmente era simpático a alguns dos objetivos "reformistas", escreveu: "onde reina o luteranismo, há o fim das letras". Ele referia-se ao fechamento de escolas e universidades, quando os professores perseguidos foram obrigados a fugir. O desaparecimento de todas essas instituições, quando as ordens religiosas que as comandavam foram reprimidas, causou grandes dificuldades. Por fim, elas também foram restabelecidas como instituições estatais. Um estudante alemão ou inglês subitamente impossibilitado de conseguir seu diploma ou uma pessoa doente expulsa de um hospital da Igreja teriam dito que as condições eram muito melhores antes da Reforma que depois.

Havia também os tesouros monásticos de arte e arquitetura, cujo valor é incalculável. Um hospital seria com o tempo substituído, apesar de não ter a mesma qualidade do seu predecessor, mas as impagáveis janelas de vidro e as preciosas relíquias (para não dizer nada do seu ainda mais precioso conteúdo) quebradas pelas multidões protestantes não poderiam mais ser reproduzidas. As tumbas de reis católicos também pereceram. Quando os mosteiros foram atacados na Inglaterra, multidões estavam prontas para saqueá-los e há relatos desses vândalos usando manuscritos das bibliotecas destruídas para limpar suas botas - manuscritos que um monge pode ter levado a vida inteira para copiar e ilustrar. Artisticamente, então, as áreas protestantes da Europa eram também muito piores depois da Reforma do que antes.

[Continua...]

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Uma Igreja corrompida até o topo [Parte 4 - A devastação protestante na Inglaterra] - Diane Moczar

Conheça o Projeto Anscar Vonier e ajude curtindo e divulgando: https://www.facebook.com/projetoanscarvonier

https://anscarvonier.wordpress.com/

***

Primeira Parte / Segunda Parte / Terceira Parte

Como a devoção a Nossa Senhora era muito forte na Inglaterra, o Rosário certamente teria de ser reprimido. Há a história da polícia litúrgica de Elisabete que, ao visitar a igreja de uma vila, deparou-se com uma senhora rezando o Rosário. Um dos caçadores de "superstição" agarrou o rosário e o quebrou, empurrando para fora a senhora, que reclamava. Os moradores reuniram-se em volta do agressor, o atacaram e, possivelmente, o mataram. Incidentes como esses ocorreram esporadicamente por toda a Inglaterra, mas o povo católico não conseguiu conter as autoridades por muito tempo.

A Reforma inglesa arruinou as guildas. Henrique VIII confiscou seus fundos e Elisabete decretou estatutos com o intuito de prejudicá-las. Em 1547, durante o reinado de Eduardo VI, filho de Henrique, que subira ao trono com 9 anos, Thomas Cranmer, o arcebispo apóstata, e seus associados protestantes tomaram medidas para estabelecer o protestantismo na Inglaterra com mais firmeza do que Henrique havia permitido, e um dos seus alvos era as guildas.

Estima-se que, entre 1530 e 1540, milhares de guildas foram reprimidas e tiveram seus recursos, incluindo a terra (caso a tivessem), confiscados. O efeito desmoralizante da perda das suas irmandades queridas e organizações profissionais foi devastador para os associados da época.

A longo prazo, o desaparecimento dessas associações resultou na inexistência de organizações que atendessem aos pedidos dos trabalhadores explorados e atenuassem o sofrimento de suas vidas miseráveis, no início da Revolução Industrial do século XVIII.

As guildas não foram os únicos alvos escolhidos para arrecadar os fundos que Henrique VIII necessitava - em parte para subornar apoiadores para sua nova igreja. Os mosteiros deviam ser "visitados" para se ter certeza de que não eram corruptos. Caso o fossem, deveriam ser reprimidos, a fim de manter a pureza da vida religiosa, é claro. O cardeal Wolsey já havia "dissolvido" por volta de 29 estabelecimentos religiosos em 1520. Em 1535, foi Thomas Cromwell, vigário de Henrique, que intensificou e completou o roubo e a destruição da vida monástica inglesa.

Os mosteiros estavam corrompidos? Certamente havia alguma corrupção moral em alguns deles, como houve em todas as épocas da História, mas se poderia lidar com isso facilmente por meio de uma análise caso a caso. Outras visitas durante o mesmo período, por autoridades locais, também foram muito destrutivas. Contudo, o objetivo de Henrique e de seus súditos não era acabar com a verdadeira corrupção; se assim fosse, eles esperariam encontrá-la nas casas religiosas maiores e mais ricas, em vez das menores e mais pobres. As maiores, no entanto, gozavam de maior influência política e Cromwell estava relutante em atacá-las primeiro. Os "visitantes" enviados por Henrique e Cromwell, em 1535, se dirigiram para as cerca de quatrocentas pequenas casas religiosas conhecidas como "mosteiros lesser". Esses visitantes faziam um escândalo ao procurar por corrupção moral (encontrando poucas confissões; as quais eram obtidas, em grande parte, sob pressão) e tentavam persuadir os jovens religiosos a abandonar suas vocações. Ao mesmo tempo, pregadores eram enviados, em uma campanha de propaganda, para atacar e depreciar a vida monástica.

Em fevereiro de 1535, o parlamento dissolveu os mosteiros restantes. A poucos foi permitida a sobrevivência e, surpreendentemente, os internos - os mesmos monges e freiras cujas reputações haviam sido difamadas - eram, agora, declarados religiosos exemplares. (O ato do parlamento também especificou que os habitantes dos mosteiros maiores estavam imunes à repressão. O falso objetivo de combater a corrupção moral logo desapareceu). As casas menores foram saqueadas e seus fundos e terras tomados para a coroa; Henrique ficou contente, mas não estava satisfeito. Ainda restavam os mosteiros maiores e mais ricos. A revolta no norte da Inglaterra na peregrinação da Graça, em outubro de 1536, motivada parcialmente pelo desejo de salvar os mosteiros restantes e também preservar a fé na Inglaterra, adiou os planos de Henrique, mas não por muito tempo. Logo, os bens e as terras de todos os mosteiros estavam em suas mãos; e ele usava a terra como suborno para sua corte, comerciantes, advogados e outros.

Além da perda espiritual da Inglaterra - em pregação, ensino e oração (sem mencionar a heresia, a supressão do Santo Sacrifício e a perda das almas) -, o que dizer das escolas, dos hospitais, dos orfanatos, das hospedarias, das casas para as viúvas e de outros serviços que os mosteiros prestavam? O escritor protestante William Cobbett, no século XIX, declarou que a dissolução dos mosteiros teve o efeito de causar não apenas a pobreza, mas fazer da "miséria" uma condição permanente das classes baixas inglesas. A educação universitária também sofreu, já que os estudantes pobres não mais recebiam o apoio oferecido pelos monges. A distância entre as classes alta e baixa aumentou. Os camponeses foram levados à miséria pela perda das terras dos mosteiros, onde tinham permissão para cultivar e pastar os animais.

Nas cidades, o clero secular também se envolveu no ensino e em outros serviços para os pobres, serviços estes pagos pelo dízimo que recolhiam - aquele dízimo que foi tão criticado pelos pretensos "reformistas". Como observa Euan Cameron, um estudioso e professor protestante, em seu excelente livro de 1991, The European Reformation:
Se o clero secular de Londres tivesse desistido do seu dízimo e vivido de caridade (como encorajavam alguns freis carmelitas em 1460), muitas atividades valiosas, incluindo a educação e assistência aos pobres, seriam prejudicadas.
O resultado foi o triunfo do protestantismo na Inglaterra e a aceitação da sua propaganda no lugar da ultrapassada fé católica e seus costumes. Para citar Duffy uma vez mais,
No final de 1570, seja qual fosse a tendência natural e nostalgia dos idosos, uma geração crescia educada com a ideia de que o papa era o anticristo e a missa era uma palhaçada. Uma geração que não valorizava o passado católico como seu próprio passado, mas valorizava outro país, outro mundo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Uma Igreja corrompida até o topo [Parte 3 - As condições da Inglaterra antes da Reforma] - Diane Moczar

Conheça o Projeto Anscar Vonier e ajude curtindo e divulgando: https://www.facebook.com/projetoanscarvonier

https://anscarvonier.wordpress.com/

***

Veja aqui a Primeira Parte e a Segunda Parte.

Com sabe-se, o desenvolvimento das guildas na Idade Média e o importante papel econômico, social e político que tiveram nas novas cidades, fator decisivo para a renovação da Europa após a Idade das Trevas. O tema é investigado em profundidade pelo historiador católico Eamon Duffy em The Stripping of the Altars: Traditional Religion in England 1400-1580. Uma crítica ao livro feita pelo professor Christopher Harper-Boll, em Theology, enaltece esse estudo brilhante:

É uma leitura essencial para todos aqueles que desejam entender a religião no final da Idade Média e os meios pelos quais ela foi solapada contra os desejos da vasta maioria de seus praticantes.
 Esse é um ponto essencial: a religião católica das massas foi destruída contra sua vontade. A Reforma Protestante foi uma revolução, e como observa outro historiador, as revoluções nunca são feitas pelo "povo". Na Inglaterra, as mudanças trazidas pela revolução religiosa, longe de serem desejadas pelo povo inglês, foram amargamente ressentidas.

Foi o rei Henrique VIII quem primeiro rompeu com a Igreja Católica - porque esta não queria declarar a invalidade de seu casamento, o que permitiria que ele se casasse com Ana Bolena. Assim começou a "Igreja da Inglaterra" e o anglicanismo.

A necessidade de dinheiro e apoio levou Henrique a tomar medidas contra as guildas e os mosteiros. Sob o reinado de seu filho Eduardo, menor de idade, conselheiros protestantes proliferaram no governo e medidas ainda mais anticatólicas foram introduzidas. Após o breve reinado de Maria, a filha católica de Henrique, que suspendeu temporariamente a perseguição aos católicos mas foi incapaz de restaurar o país, veio a temível rainha Elisabete I. Apoiada por seu ministro ainda mais temível, William Cecil, e o seu sinistro "interrogador" e torturador Topcliffe, ela instituiu a perseguição em larga escala à Igreja e o confisco dos bens das famílias católicas desobedientes. Essa intensificação da violência da realeza contra tudo que era católico teve origem nos ataques de Henrique às guildas e aos mosteiros.

Além das funções econômicas, as guildas inglesas também tinham importantes funções espirituais e religioses, e todas as suas características estavam harmoniosamente incorporadas à vida de seus membros. No final da Idade Média, as guildas ainda operavam nas cidades e vilas da Inglaterra; no campo, havia numerosas "guildas" de caráter devocional. Essas irmandades preservavam práticas piedosas como, manter, na igreja da paróquia, a luz ante a imagem do santo padroeiro da guilda e rezar pelas almas dos associados falecidos. Membros contribuíam com quantias para os funerais e as missas para os mortos e também pagavam pelos funerais dos membros pobres. Também ajudavam com as despesas dos membros que estavam doentes ou que necessitavam de ajuda  financeira (provando que não fosse por culpa própria) e, às vezes, sustentavam as igrejas das paróquias.

Esses costumes e essas práticas religiosas estavam tão entrelaçados com a vida das pessoas comuns que, ao longo dos séculos, tinham se tornado parte delas. Em particular, as cerimônias e orações pelos mortos, as procissões - que assumiam caráter cívico para a cidade que as hospedava -, os costumes do Advento e as cerimônias da Semana Santa marcavam as estações do ano e davam a elas um caráter sagrado e uma importância que nenhum calendário secular poderia oferecer. Todos esses hábitos, e qualquer outro repleto de caridade católica, tornaram-se alvos da polícia litúrgica anglicana.

[Continua...]

domingo, 23 de setembro de 2012

Uma Igreja corrompida até o topo [Parte 2 - Heresias no período pré-Reforma] - Diane Moczar

Conheça o Projeto Anscar Vonier e ajude curtindo e divulgando: https://www.facebook.com/projetoanscarvonier

https://anscarvonier.wordpress.com/

***

Veja aqui a primeira parte.

A persistência de uma heresia tampouco era algo novo. Os cátaros, patarinos e outros grupos que restaram dos séculos medievais não tinham sido totalmente extintos. Não havia mais fanáticos jejuando até a morte, pois haviam se tornado "perfeitos" demais, mas ao longo dos séculos XIV e XV houve pessoas que persistiram em algumas das ideias desses hereges medievais.

Os "homens pobres" do século XII, na área da França ao redor de Lyon, que seguiam certo Valdo, mais tarde conhecido como Pedro Valdo, era um desses grupos. Valdo se converteu à vida espiritual e decidiu livrar-se da sua considerável riqueza para viver na pobreza de acordo com os ensinamentos dos Evangelhos. Outros que buscavam a perfeição se juntaram a ele e começaram a pregar. Logo tomaram o caminho errado, em razão da sua falta de instrução; eles interpretaram mal certas passagens das Escrituras e acabaram por negar ensinamentos relacionados à existência do Purgatório e orações aos mortos, entre outras questões.

Buscando legitimidade de maneira astuciosa,, esses "valdenses" diziam fazer parte de uma genealogia que ia até o começo da Igreja, apesar de não existir nenhum indício de tal linhagem. Eles proibiram os juramentos - o que pode indicar influência cátara - e recusavam-se a parar as pregações, quando recebiam ordens para fazê-lo.

O relato to inquisidor Bernard Gui, ao interrogar um membro dessa seita, mostra o quão irritantes e sutis eles podiam ser: "Questionado sobre quem ele [o valdense] considerava um bom cristão, respondeu, 'aquele que acredita no que a Santa Igreja o ensina a acreditar'. Quando perguntado sobre o que entendia por 'Santa Igreja', ele respondeu, 'Meu Senhor, aquilo que vós dizeis e acreditais ser a Santa Igreja'. Caso fosse perguntado se acreditava que a 'Santa Igreja é a Igreja Romana sobre a qual governa o papa, e depois dele, os prelados', ele responderia, 'acredito', querendo dizer que acreditava no que o questionador acreditava". Se fossem obrigados a declarar as verdades d fé sob juramento, os valdenses utilizavam vários estratagemas, tais como gaguejar no juramento ou inserir e omitir palavras, para que no final não tivessem feito juramento algum. Um valdense admitiu francamente que iria jurar para escapar de um processo e, depois, faria penitência.

Excomungados, os valdenses continuaram suas atividades fora da Igreja e apoiaram os esforços protestantes do século XVI, enquanto se espalhavam pela maioria dos países da Europa Ocidental e Oriental. As ideias valdenses sobre pobreza extrema, traduções da Bíblia em vernáculo e pregações de leigos, apareceram na Inglaterra, no final do século XIV, po pensamento de John Wycliffe e seus discípulos, Quando Wycliffe (ou Wyclif), um professor da Universidade de Oxford, começou a negar a transubstanciação, ele alienou alguns de seus seguidores (chamados de lollardos), assim como autoridades da Igreja, mas escapou da excomunhão. O Lollardismo, que mais tarde se ligou a movimentos políticos agressivos, parece ter sobrevivido até o século XVI, mas não foi um fator decisivo na continuação da heresia de Wycliffe. A heresia seria, surpreendentemente, propagada no outro extremo da Europa, na Boêmia; um casamento real foi o veículo pelo qual ela viajara até lá.

Ana da Boêmia era esposa do rei ingês Ricardo II. Após a morte dela, em 1394, os seus súditos retornaram a sua terra natal, trazendo com eles as novas ideias de John Wycliffe, que haviam absorvido durante sua permanência na Inglaterra. Aparentemente, foi com base nelas, ou nos estudantes boêmios que haviam estudado na Inglaterra, que um jovem clérigo bocêmio chamado João Huss se familiarizou - e ficou muito intrigado - com as ideias de Wycliffe. Ordenado padre em 1400, com 31 anos, e defensor de uma reforma na Igreja, Huss provavelmente sabia que muitas das proposições de Wycliffe haviam sido condenadas. Ele, porém, traduziu algumas de suas obras para o tcheco e propagou-as, embora tenha depois as submetido à avaliação de autoridades da Igreja.  situação foi agravada pelo Cisma do Ocidente e pelas tentativas de terminá-lo por meio de um concílio. No fim, Huss foi excomungado por heresia.

As condições da Boêmia eram politica e religiosamente complexas, e os seguidores de João Huss, como os lollardos da Inglaterra, por vezes recorriam à violência. O próprio Huss era famoso em seu país por seu patriotismo - ele apoiou o nacionalismo boêmio contra a influência alemã -, e por seu ardor pela reforma e pela fé (como ele a entendia). Finalmente, seguindo o conselho de Sigismundo, o Sacro Imperador Romano-Germânico, Huss decidiu colocar seu caso perante o Concílio de Constança, em 1415. No concílio, o papa João XXIII retirou sua excomunhão, mas o proibiu de celebrar missa até que seu caso fosse resolvido. Huss declarou que estava pronto para retratar cada um de seus erros, mas, inacreditavelmente, continuou celebrando a missa e pregando - uma provocação deliberada ao papa. A despeito do salvo-conduto emitido pelo Imperador, Huss foi capturado, preso e julgado. Os boêmios e os poloneses protestaram contra as irregularidades do aprisionamento e da violação do salvo-conduto, mas o julgamento prosseguiu. Huss negou ter escrito algumas das afirmações das quais era acusado e defendeu outras - incluindo proposições que Wycliffe também havia apoiado. Tendo recusado a retratação, foi condenado e queimado na fogueira. Opiniões sobre a legitmidade do julgamento e da execução são divididas. Alguns argumentam que o salvo-conduto não visava proteger Huss contra a perseguição legal e a punição. De qualquer modo, as consequências do caso seriam graves.

Podemos ver aqui o surgimento de uma das características d Reforma, que não foi um movimento estritamente religioso: é o nacionalismo, que desempenharia papel importante no crescimento da maior parte das novas religiões protestantes. Huss imediatamente se tornou um herói boêmio, frequentemente invocado nas Guerras Hussitas, dos hereges (e patriotas) boêmios contra os imperadores católicos que tentavam controlar o país e a heresia.

Em 1512, o papa Julio II convocou o Quinto Concílio Geral de Latrão, em grande parte para lidar com várias disputas políticas dentro e fora da Igreja. Ele morreu em 1513, e seu sucessor, Leão X (Medici), continuou o concílio, a fim de realizar objetivos pessoais. O concílio se reuniu somente 12 vezes. Embora tenha feito alguns bons regulamentos e apontado a necessidade de reformas, não foi de modo algum a ponta de lança que poderia ter sido. Por uma coincidência misteriosa, as sessões terminaram em 1517, apenas alguns meses antes de Lutero aparecer na cena religiosa. Levaria trinta anos até que outro concílio - o grande Concílio de Trento - fosse tratar do desafio do protestantismo e estimular o movimento por uma verdadeira reforma católica.

Havia, portanto, um consenso na Igreja antes da Reforma Protestante - como provavelmente houve ao longo de muitas épocas na história da Igreja -, de que algumas coisas deveriam ser corrigidas porque estavam em mau estado. Entretanto, não existia um consenso entre os católicos, no período anterior à Reforma, sobre a desmontagem da Igreja e a criação de uma nova.

[Continua...]

sábado, 22 de setembro de 2012

Uma Igreja corrompida até o topo [Parte 1] - Diane Moczar

Conheça o Projeto Anscar Vonier e ajude curtindo e divulgando: https://www.facebook.com/projetoanscarvonier

https://anscarvonier.wordpress.com/

***
Sobre a autora: Diane Moczar, ph.D, ensina História na Nothern Virginia Community College. Entre as suas obras, destacam-se: Islam at the Gates, sobre a guerra da Europa contra os turco-otomanos, e Ten Dates Every Catholic Should Know.





A mentira: a Reforma Protestante foi necessária, pois a Igreja Católica estava inteiramente corrompida por imoralidade e falsa doutrina.


A mentira apresentada neste capítulo, assim como outras mentiras históricas, já foi refutada por pesquisas de estudiosos católicos e não católicos. O problema é que a pesquisa erudita, cuidadosamente conduzida e amparada por numerosas notas de rodapé não é muito atrativa ao leitor comum. Há, no entanto, algumas obras sobre o assunto – de protestantes e católicos, - que são de leitura mais fácil e expõem o tema de modo imparcial. Algumas serão mencionadas neste capítulo, outras estão incluídas na bibliografia indicada no Apêndice 2.

Para resumir, a versão popular desta mentira é a seguinte: A reforma era inevitável. (Até mesmo o historiador de arte Sir Kenneth Clark, em sua série de filmes Civilisation, diz, “ela tinha que vir”). No século XVI, a situação na Igreja Católica era intolerável e alguém tinha de fazer alguma coisa. Felizmente, apareceram benfeitores da humanidade como Martinho Lutero, João Calvino e Henrique XVIII, dispostos a cumprir a tarefa de purificar o cristianismo que, há séculos, vinha sendo corrompido pela ganância e superstição dos católicos.

O clero católico era ignorante e moralmente corrupto; vivia em concubinato ou até mesmo em libertinagem e vendia indulgências pelos pecados (ver as cartas dessas indulgências em Contos de Cantuária [ Lisboa, Publicações Europa-América, 1992], de Geoffrey Chaucer). Os mosteiros eram fossas de iniqüidades. Nos níveis mais altos, os clérigos compravam e vendiam seus cargos e influências políticas e eclesiástica. Os papas levavam vidas imorais, em grande luxo, preocupados principalmente com questões políticas. Viviam como príncipes mundanos. Os leigos eram miseráveis ignorantes, prejudicados pelos dízimos e tributos infligidos pelo clero e devotos de superstições que lhes eram ensinadas sobre o pretexto de doutrina. Dificilmente poderiam viver como seres humanos racionais, em razão da sua preocupação com relíquias e com pós-morte e de práticas arcaicas como a Missa.

Entretanto, a corrupção da Igreja era mais evidente na sua doutrina. A vida dos sacerdotes não apenas não se assemelhava em nada à vida dos apóstolos, mas o que eles ensinavam não se baseava nas Escrituras. Indulgências, por exemplo, certamente não estão na Bíblia; todavia, foram uma grande fonte de lucro para o clero corrupto. A Igreja Católica como um todo, com sua misteriosa liturgia, sacramentos mágicos e doutrinas incompreensíveis, não tinha semelhança alguma com aquelas simples comunidades cristãs sobre as quais lemos na Bíblia. Já que, então, a Igreja Católica era incapaz de reformar a si mesma – o concílio chamado de reformista, realizado no século XVI (Quinto Concílio de Latrão) não realizou absolutamente nada -, era o momento de os cristãos devotos, que sabiam o que significava o verdadeiro cristianismo, iniciarem uma mudança radical e uma limpeza completa.

Essa é a história da grande Reforma contada pelos protestantes. Como escreveu um historiador protestante francês, E. G. Leonard, em The Reformation: Revival or Revolution, editado por W. Stanford Reid:
“(...) os protestantes afirmaram por muito tempo, e ainda o fazem ocasionalmente, que a Reforma foi uma reação contra a falta de moral dos padres e os abusos do papado; essa visão baseia-se em um escrito tardio de Lutero, no qual ele afirma que sua revolta começara a partir do momento em que, durante sua visita a Itália, descobriu o horror das práticas vergonhosas de Roma.”
Will Durant, no volume sobre a Reforma da sua obra História da Civilização, aproveita a oportunidade para pintar uma imagem sensacionalista de corrupção generalizada dentro do clero e ainda acrescenta, de maneira maliciosa e astuta,
“precisamos ser justos com aqueles padres luxuriosos e levar em conta que o concubinato sacerdotal não era devassidão, mas sim uma rebelião quase geral contra a regra do celibato, imposta pelo papa Gregório VII a um clero que não a queria.”
Ele chama o celibato de “uma regra arbitrária desconhecida dos apóstolos e do cristianismo oriental”.

Jack L. Arnold, do Third Millenium Ministers, resume de forma sucinta em seu website[1] a descrição convencional do protestantismo evangélico sobre a Era da Reforma:
“A Igreja Católica Romana estava teologicamente doente e sua teologia havia gerado uma corrupção atroz. Estava espiritualmente exausta, debilitada e quase sem vida. Roma se afastara dos ensinamentos da Bíblia e estava mergulhada em heresia.”
Em outro site, www.justforcatholics.org, lemos sobre aquela época: “a Igreja Católica desceu ao fundo dos infernos em matéria de corrupção, ganância, superstição, arrogância e imoralidade”.

Essa visão parece estar consolidada de tal modo na psique moderna que se torna imune a qualquer relato diferente. E não são apenas os interessados em perpetuar as 33 mil ou mais seitas que foram criadas desde a Reforma, todas trazendo o selo “cristão”, que continuam a papaguear a coleção de mentiras listadas anteriormente. Até mesmo trabalos acadêmicos são frequentemente contaminados. Isso levou um crítico literário, ao analisar os melhores estudos recentes sobre a Reforma (The European Reformation, do professor Euan Cameron), a observar que: “é revigorante encontrar uma obra que não comesse com a premissa de que o protestantismo era inevitável ou até mesmo desejado pelos leigos.”

Quanto aos pastores e fiéis das seitas protestantes, eles estão naturalmente predispostos a aceitar a versão da História que lhes é ensinada por seus livros e semináros e, depois, transmitirem-nas ao seu rebanho. Anos atrás, perguntei a uma aluna minha onde ela havia aprendido uma determinada mentira sobre a Igreja, que escrevera em um trabalho, e ela respondeu que fora na escola dominical. Expliquei-lhe pacientemente os fatos, mas foi em vão. Da mesma maneira que muitos protestantes, ela simplesmente “sabia” que a Igreja Católica estava corrompida antes de Lutero e companhia, e as provas em contrário simplesmente entravam por um ouvido e saíam pelo outro.

Suponho que muitos protestantes se prendem a essa idéia porque ela justifica a sua existência. Se a Igreja Católica não fosse (e continua sendo, é claro) tão corrupta e maléfica, qual seria a razão para se criar novas igrejas? Os secularistas, naturalmente, alegram-se em comprar qualquer versão da História que denigra a Igreja. Em razão do estreitamento mental dessas pessoas, o estudo imparcial da Igreja Católica pré-Reforma é muito raro.

E quanto aos católicos? Aqui, a situação é também muito ruim. Os mitos reformistas são parte da cultura americana, e apenas uma minoria de católicos não foi afetada por eles. A má formação também tem culpa: vinte anos atrás, quando eu havia começado a dar aulas, alguns de meus alunos católicos diziam ter aprendido mais sobre religião comigo que nas escolas católicas ou em aulas de educação religiosa. E eu acredito neles; a qualidade da catequese e educação histórica nas escolas católicas e outras instituições passaram por um declínio abissal nos anos 1960 e ainda apresenta um nível muito irregular. Os católicos de hoje estão dispostos a acreditar em qualquer bobagem sobre a Igreja que encontrem em livros didáticos, na mídia ou no ar que respiram.

Se, portanto, protestantes e católicos compram as mesmas mentiras sobre a Reforma, o que podemos fazer? Primeiramente, devemos ter certeza de que conhecemos os fatos. Em seguida, precisamos entender a razão pela qual poucos avanços são feitos na luta contra as mentiras da História – não somente nessa questão – e tentar lidar de maneira caridosa com os obstáculos que encontramos.

O fenômeno complexo conhecido por Reforma não veio do nada. Foi precedido por mil e quinhentos anos de civilização cristã, desde as primeiras comunidades de fiéis dentro do Império Romano, passando pela lenta conversão da Europa bárbara, até chegar à desenvolvida civilização da Idade Média. Como discutimos anteriormente, o período medieval viu o esplêndido desenvolvimento da cultura, da educação, dos serviços sociais, das instituições políticas e econômicas, e contou com grande número de santos que atuaram em diversos âmbitos da vida. *

Os conturbados séculos que precederam a Reforma

Os dois séculos anteriores ao século XVI, o século da Reforma, foram pontuados por desastres de vários tipos. A Guerra dos Cem Anos havia minado a energia de duas grandes potências, Inglaterra e França. Havia devastado particularmente a França, outrora o centro do pensamento e cultura europeus. Mudanças climáticas no começo do século XIV trouxeram penúrias deliberantes, e a estas se seguiu a grande pandemia famosa até os tempos modernos: a Peste Negra, que trouxe consigo discórdia social e declínio moral. De acordo com um cronista da época, após a praga seguiu-se uma baixa na qualidade (assim como na quantidade, em muitos locais) do clero e os religiosos. Conforme a doença se espalhava, os padres e os religiosos, bondosos e dedicados, cuidavam dos doentes e enterravam os mortos – contraindo assim a doença e morrendo logo depois. Os não tão dedicados, no entanto, fugiram para áreas isoladas, onde conseguiam sobreviver. Eles retornaram quando a praga havia acabado para ocupar a vaga deixada pelos padres heróicos que haviam morrido.

O papado também passou por crises sucessivas durante aquele período negro. Primeiro foi a amarga disputa entre o papa Bonifácio VIII – que não foi um exemplo brilhante de pontífice – e a coroa francesa, sobre a tributação do clero, o que levou a um confronto entre o papa, uma delegação francesa e um grupo de inimigos políticos italianos do papa. Qual deles (provavelmente os italianos) realmente colocou as mãos no velho pontífice e o agrediu no escritório de sua casa de férias? Não se sabe, mas ele retornou a Roma muito abalado e morreu pouco tempo depois do incidente. O papa seguinte, um francês, nunca saiu da França e estabeleceu a corte papal em Avignon, onde ela permaneceu por quase setenta anos. A mudança fazia sentido por certos ângulos, mas não havia como fugir do fato de que esse sucessor de Pedro havia deixado Roma; a cristandade estava escandalizada. (Lembre-se de que a guerra, a praga e a desagradável mudança climática ocorriam na mesma época).

Em Avignon, o governo da Igreja foi muitas vezes dirigido com eficiência, mas a situação anômala impediu a realização de grandes planos como a convocação de um concílio para lidar com os formidáveis problemas da época. Como observa o historiador Christopher Dawson, em The Dividing of Christendom, a eficiência do sistema de tributação implantado pelo papado de Avignon andou de mãos dadas com o declínio de seu prestígio e poder dentro da cristandade, pois o papado aumentava escandalosamente sua riqueza e crescia em secularismo. Por fim, em grande parte por causa do “puxão de orelhas” (palavras do papa) de Santa Catarina de Sena, o papa Gregório XI retornou a Roma, em 1337. Agora a vida e a atividade da Igreja poderiam voltar ao normal – exceto pelo fato de que a guerra ainda estava em curso, os turcos invadiam as regiões costeiras e o deslocamento do papado continuava a afetar muitas áreas da vida européia.

A volta à normalidade não ocorreu. O papa morreu logo após o retorno a Roma, e o papa eleito em seguida foi rapidamente rejeitado por um grupo de cardeais – que tinha segundas intenções -, após terem visto o tipo de reformista rígido que ele seria. Eles decidiram que não o queriam e elegeram outro papa. Assim, começou o Grande Cisma do Ocidente, que continuou até o século seguinte, produzindo dois e, por vezes, três demandantes do trono papal, cada um com suas próprias cortes e grupos de cardeais. Poucos na Europa sabiam quem era o verdadeiro papa e havia santos em lados opostos da disputa. Além do mais, como observa Dawson, o escândalo do papado de Avignon não fora eliminado; pelo contrário, era duplicado ou até triplicado, dependendo do número de cortes “papais” que existissem ao mesmo tempo.

No início do século XV, a situação deu sinais de melhora. A Guerra dos Cem Anos terminou com Joana d’Arc ajudando a expulsar os ingleses e com a vitória dos franceses após a morte dela (os ingleses voltaram para casa, a fim de iniciar a Guerra das Rosas), e o Concílio de Basiléia finalmente acabou com o Cisma do Ocidente. Alguns membros do concílio, no entanto, começaram a argumentar que, por terem resolvido o problema dos reis papas (ao escolher um deles), o concílio era agora a autoridade última da Igreja: essa foi a heresia do conciliarismo. Demorou para que fosse eliminada. O Concílio de Basiléia também teve de lidar com o movimento herético que estava em curso na Boêmia, resultado das pregações do reformador João Huss, que, por sua vez, fora influenciado pela heresia do teólogo inglês John Wycliffe.

Não surpreende o fato de os papas seguintes, novamente em Roma e tentando retornar à normalidade, terem preferido lidar, em especial, com questões locais, particularmente a tentativa de recuperar e governar os territórios da Santa Sé, o que fazia parte da sua tarefa de líderes italianos. Seduzidos pelas glórias da Alta Renascença e sua cultura mundana, eles queimaram críticos severos como Girolamo Savonarola, e mesmo com seus expendidos corpos diplomáticos não estavam tão conscientes quanto seus predecessores medievais a respeito do que estava sendo fermentado na Alemanha, Boêmia, Inglaterra e na própria Itália.

E quanto as condições dos leigos católicos na maioria da Europa, durante os anos anteriores à reforma? Não é claro como a vida dos católicos foi afetada pelo Cisma do Oriente. Certamente, a liderança e os serviços sociais fornecidos pelas dioceses locais sofreram com o fato de que, durante muitas décadas, ninguém sabia com certeza quem era o verdadeiro papa. Instituições paralelas eram por vezes montadas por requerentes rivais ao trono papal, mas a falta de unidade deve ter comprometido a operação eficiente de todas essas instituições de educação e bem-estar, que estavam entre as grandes conquistas estabelecidas pela Igreja. Tal como no período negro do século X, os católicos na Europa pré-Reforma reclamavam da ignorância e imoralidade de muitos padres, da influência demasiada de autoridades políticas em assuntos da Igreja, da mundanidade de boa parte do alto clero (que estava apenas imitando alguns papas) e da falta de continuidade da reforma. Para a maioria, as coisas não haviam chegado ao ponto em que estavam no século X, mas a crescente alfabetização e a invenção da máquina de impressão, na metade do século XIV, permitiram que a discórdia se espalhasse mais amplamente. Enquanto isso, havia hereges individuais propagando seu próprio tipo de “reforma”, líderes políticos locais que desejavam controlar as finanças eclesiásticas e a tendência dos monarcas a se libertarem das restrições impostas pela Igreja (por vezes, de maneira abusiva, deve-se admitir) sobre suas ações.

Essas eram queixas constantes, como também as reclamações sobre os pesados dízimos e outras taxas que várias instituições da Igreja arrecadavam dos fiéis. É possível que circunstâncias como a Peste Negra e as revoltas subseqüentes tenham, de fato, aumentado a necessidade da Igreja por dinheiro, a fim de atender à crescente demanda de serviços de bem-estar, mas isso não foi culpa da Igreja ou dos leigos.

A despeito de todos esses problemas, no período pré-Reforma ainda haviam santos, incluindo Santa Catarina de Sena, Santa Brigite da Suécia e o grande pregador São Vicente Ferrer. Se houve um santo para a época, foi Vicente. Durante mais de vinte anos ele cruzou toda a Europa, pregando e lutando por almas. Chama a si mesmo de “o Anjo do Julgamento” e advertia que o fim do mundo viria caso as pessoas não se arrependessem de seus pecados. Muitos se converteram durante as suas pregações. Nesse período, instituições da Igreja ainda cuidavam dos pobres e doentes e educavam os mais jovens nas escolas. Os sacramentos ainda eram ministrados por padres que, no geral, faziam seu trabalho adequadamente, mesmo que não fossem tão letrados quanto deveriam. Pregadores de ordens monásticas ainda atuavam e, se trapaceiros eclesiásticos, como o Pardoner de Geoffrey Chaucer, tentavam vender indulgências e outros favores espirituais aos ingênuos, isso não era algo novo na História.

[Continua...]

-------

* Em breve postarei uma lista sobre esse desenvolvimento.

Texto retirado do livro "Sete mentiras sobre a Igreja Católica" da historiadora Diane Moczar, editora Castela.