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Veja aqui a primeira parte.
A persistência de uma heresia tampouco era algo novo. Os cátaros, patarinos e outros grupos que restaram dos séculos medievais não tinham sido totalmente extintos. Não havia mais fanáticos jejuando até a morte, pois haviam se tornado "perfeitos" demais, mas ao longo dos séculos XIV e XV houve pessoas que persistiram em algumas das ideias desses hereges medievais.
Os "homens pobres" do século XII, na área da França ao redor de Lyon, que seguiam certo Valdo, mais tarde conhecido como Pedro Valdo, era um desses grupos. Valdo se converteu à vida espiritual e decidiu livrar-se da sua considerável riqueza para viver na pobreza de acordo com os ensinamentos dos Evangelhos. Outros que buscavam a perfeição se juntaram a ele e começaram a pregar. Logo tomaram o caminho errado, em razão da sua falta de instrução; eles interpretaram mal certas passagens das Escrituras e acabaram por negar ensinamentos relacionados à existência do Purgatório e orações aos mortos, entre outras questões.
Buscando legitimidade de maneira astuciosa,, esses "valdenses" diziam fazer parte de uma genealogia que ia até o começo da Igreja, apesar de não existir nenhum indício de tal linhagem. Eles proibiram os juramentos - o que pode indicar influência cátara - e recusavam-se a parar as pregações, quando recebiam ordens para fazê-lo.
O relato to inquisidor Bernard Gui, ao interrogar um membro dessa seita, mostra o quão irritantes e sutis eles podiam ser: "Questionado sobre quem ele [o valdense] considerava um bom cristão, respondeu, 'aquele que acredita no que a Santa Igreja o ensina a acreditar'. Quando perguntado sobre o que entendia por 'Santa Igreja', ele respondeu, 'Meu Senhor, aquilo que vós dizeis e acreditais ser a Santa Igreja'. Caso fosse perguntado se acreditava que a 'Santa Igreja é a Igreja Romana sobre a qual governa o papa, e depois dele, os prelados', ele responderia, 'acredito', querendo dizer que acreditava no que o questionador acreditava". Se fossem obrigados a declarar as verdades d fé sob juramento, os valdenses utilizavam vários estratagemas, tais como gaguejar no juramento ou inserir e omitir palavras, para que no final não tivessem feito juramento algum. Um valdense admitiu francamente que iria jurar para escapar de um processo e, depois, faria penitência.
Excomungados, os valdenses continuaram suas atividades fora da Igreja e apoiaram os esforços protestantes do século XVI, enquanto se espalhavam pela maioria dos países da Europa Ocidental e Oriental. As ideias valdenses sobre pobreza extrema, traduções da Bíblia em vernáculo e pregações de leigos, apareceram na Inglaterra, no final do século XIV, po pensamento de John Wycliffe e seus discípulos, Quando Wycliffe (ou Wyclif), um professor da Universidade de Oxford, começou a negar a transubstanciação, ele alienou alguns de seus seguidores (chamados de lollardos), assim como autoridades da Igreja, mas escapou da excomunhão. O Lollardismo, que mais tarde se ligou a movimentos políticos agressivos, parece ter sobrevivido até o século XVI, mas não foi um fator decisivo na continuação da heresia de Wycliffe. A heresia seria, surpreendentemente, propagada no outro extremo da Europa, na Boêmia; um casamento real foi o veículo pelo qual ela viajara até lá.
Ana da Boêmia era esposa do rei ingês Ricardo II. Após a morte dela, em 1394, os seus súditos retornaram a sua terra natal, trazendo com eles as novas ideias de John Wycliffe, que haviam absorvido durante sua permanência na Inglaterra. Aparentemente, foi com base nelas, ou nos estudantes boêmios que haviam estudado na Inglaterra, que um jovem clérigo bocêmio chamado João Huss se familiarizou - e ficou muito intrigado - com as ideias de Wycliffe. Ordenado padre em 1400, com 31 anos, e defensor de uma reforma na Igreja, Huss provavelmente sabia que muitas das proposições de Wycliffe haviam sido condenadas. Ele, porém, traduziu algumas de suas obras para o tcheco e propagou-as, embora tenha depois as submetido à avaliação de autoridades da Igreja. situação foi agravada pelo Cisma do Ocidente e pelas tentativas de terminá-lo por meio de um concílio. No fim, Huss foi excomungado por heresia.
As condições da Boêmia eram politica e religiosamente complexas, e os seguidores de João Huss, como os lollardos da Inglaterra, por vezes recorriam à violência. O próprio Huss era famoso em seu país por seu patriotismo - ele apoiou o nacionalismo boêmio contra a influência alemã -, e por seu ardor pela reforma e pela fé (como ele a entendia). Finalmente, seguindo o conselho de Sigismundo, o Sacro Imperador Romano-Germânico, Huss decidiu colocar seu caso perante o Concílio de Constança, em 1415. No concílio, o papa João XXIII retirou sua excomunhão, mas o proibiu de celebrar missa até que seu caso fosse resolvido. Huss declarou que estava pronto para retratar cada um de seus erros, mas, inacreditavelmente, continuou celebrando a missa e pregando - uma provocação deliberada ao papa. A despeito do salvo-conduto emitido pelo Imperador, Huss foi capturado, preso e julgado. Os boêmios e os poloneses protestaram contra as irregularidades do aprisionamento e da violação do salvo-conduto, mas o julgamento prosseguiu. Huss negou ter escrito algumas das afirmações das quais era acusado e defendeu outras - incluindo proposições que Wycliffe também havia apoiado. Tendo recusado a retratação, foi condenado e queimado na fogueira. Opiniões sobre a legitmidade do julgamento e da execução são divididas. Alguns argumentam que o salvo-conduto não visava proteger Huss contra a perseguição legal e a punição. De qualquer modo, as consequências do caso seriam graves.
Podemos ver aqui o surgimento de uma das características d Reforma, que não foi um movimento estritamente religioso: é o nacionalismo, que desempenharia papel importante no crescimento da maior parte das novas religiões protestantes. Huss imediatamente se tornou um herói boêmio, frequentemente invocado nas Guerras Hussitas, dos hereges (e patriotas) boêmios contra os imperadores católicos que tentavam controlar o país e a heresia.
Em 1512, o papa Julio II convocou o Quinto Concílio Geral de Latrão, em grande parte para lidar com várias disputas políticas dentro e fora da Igreja. Ele morreu em 1513, e seu sucessor, Leão X (Medici), continuou o concílio, a fim de realizar objetivos pessoais. O concílio se reuniu somente 12 vezes. Embora tenha feito alguns bons regulamentos e apontado a necessidade de reformas, não foi de modo algum a ponta de lança que poderia ter sido. Por uma coincidência misteriosa, as sessões terminaram em 1517, apenas alguns meses antes de Lutero aparecer na cena religiosa. Levaria trinta anos até que outro concílio - o grande Concílio de Trento - fosse tratar do desafio do protestantismo e estimular o movimento por uma verdadeira reforma católica.
Havia, portanto, um consenso na Igreja antes da Reforma Protestante - como provavelmente houve ao longo de muitas épocas na história da Igreja -, de que algumas coisas deveriam ser corrigidas porque estavam em mau estado. Entretanto, não existia um consenso entre os católicos, no período anterior à Reforma, sobre a desmontagem da Igreja e a criação de uma nova.
[Continua...]
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