segunda-feira, 29 de abril de 2013

O Milagre da Igreja: As primeiras conquistas - A. D. Sertillanges


As primeiras conquistas da Igreja coincidem com o seu nascimento. Todo nascimento é uma conquista da ideia vital sobre um meio sempre resistente por um lado, passivo por outro, socorredor também, mas com a condição de que esse socorro seja socorrido, de que o germe ativo ajude a natureza a ajudá-lo, visto que toda vida é uma permuta e gira em círculo.

Mais tarde, como o nascimento terá sido um crescimento começado, o crescimento não passará de um nascimento continuado; as condições dele serão as mesmas.

Todavia, há diferenças acidentais que são interessantes de considerar. O estado nascente tem graças particulares tanto em história religiosa como em química.

A primeira graça é uma atividade devoradora que se parece com a febre, e que é saúde ao máximo, de vez que a nova vida corre para a existência plena como o nada correria para o ser, se soubesse a sua miséria infinita e a divindade daquilo que é.

A criança cresce num mês mais do que crescerá depois em dez anos. A sua vida está toda tendida para aquisições sem as quais ela mesma nunca existiria. É bem o nada que corre para o ser. Assim a Igreja tende para a sua própria constituição por conquistas iniciais que em verdade são uma criação, tão relativos são esses termos nascimento, começo ou crescimento, de que somos obrigados a servir-nos.

A Igreja, divina, começou em Deus desde a eternidade. Humana, começou desde sempre também, mas desta vez o sempre do tempo, nisto que suas preparações remontam ao início da história do mundo.

Por ocasião do êxodo de Abraão, a Igreja começou de novo pela separação do seu germe hebraico.

Em Belém, começou na Pessoa por assim dizer única, que é corpo humano-divino.

A Paixão levou ao máximo a significação e a eficácia do fato, e nela a Igreja se renovou como o meio-dia renova o dia. Por isto dizemos, na linguagem mística, que Cristo esposou a humanidade na cruz, dando assim nascimento à Igreja.

Em Cesareia de Filipe, no momento da entrega dos poderes, mesmo antes, no dia da vocação dos Doze, e mais tarde à beira do Lago, após a Ressurreição, no momento da Missão dos Apóstolos, a Igreja começou como realidade social inserida na história.

No Cenáculo, ela foi confirmada nesse inicio pela descida do Espírito Santo e pelas graças de difusão universal que a acompanham.

No concílio de Jerusalém, ela começou em razão de se haver distinguido nitidamente do judaísmo, o que pudemos comparar à ruptura do cordão vital.

Em certo sentido, pode-se dizer que ela começa sempre, visto como é nova toda vida que acaba de sofrer uma mudança, e visto como, humanamente, a Igreja muda sem cessar, sempre obrigada e intimada a retomar seus destinos.

No ponto em que estamos, falando das primeiras conquistas, devemos dizer: a Igreja começa, nisto que assimila elementos que contribuirão para estabelecer seus quadros completos, para formar seus órgãos. A este respeito, o nosso estudo atual coincide com o precedente. Não pudemos falar de desenvolvimento sem subentender o crescimento, e, falando de crescimento, veremos aí um desenvolvimento. Todavia, isto é outro estudo.


A primeira propaganda em favor da Igreja foi feita na Galiléia, pelo próprio Salvador. Poder-se-ia dizer que ela redunda num fracasso, se fracasso foi haver colhido os Doze Apóstolos. Quando, no fim do ano, o lavrador colhe apenas com que semear o seu campo para o ano seguinte, está triste; mas não perdeu seu tempo. O Salvador terá assim enceleirado a sua semente, embora, mesmo mais tarde, depois do esforço dos obreiros evangélicos, o “Ai de ti, Corozaim, ai de ti, Betsaida” e a sentença “Ninguém é profeta em sua terra” devam conservar seus efeitos. Haverá cristãos da Samaria, cristãos da Judéia; não haverá comunidade galiléia, salvo os doze.

E é sempre o mesmo pensamento. Jesus não procurou ser bem sucedido por si mesmo. A sua ação pessoal não parece ter para ele interesse especial, a não ser para preparar o futuro. O que os outros fizerem, será ele ainda quem o fará; a sua ação histórica é mero germe.

Em Jerusalém, a situação é inteiramente outra. Após a hostilidade que os eventos da Paixão tragicamente revelam, produz-se uma reviravolta popular que os relatos da Ressurreição explicam sem dificuldade. O fato anunciado tivera lugar. O grande argumento que será o fundo da pregação apostólica sustenta-a desde o inicio. Tornado a subir ao céu pelo seu poder, Jesus prova que de lá descera, e que portanto é ele quem tem as palavras de vida eterna (Jô VI, 69).

Não que as oposições não se façam logo sentir; teremos de narrá-las; mas uma certa reserva das autoridades poupa entretanto o jovem rebento evangélico, ainda fraco demais para a tempestade. Gamaliel dizia ao Sinédrio: “Se essa obra vem dos homens, perecerá por si mesma; mas, se vem de Deus, não a podereis destruir” (At V, 39). Não se podia raciocinar melhor, e o cristianismo aceitava-lhe o augúrio.



A difusão do Evangelho tem lugar primeiro “in loco”, como as semeaduras que se produzem pela queda do grão no solo. É um dos processos da natureza. Os insetos acrescentam a isso o seu papel de carregadores, e o vento, por seu turno, dissemina. O vento, aqui, seria a perseguição, e as colaborações viajoras seriam as excursões apostólicas.

“In loco”, os meios de conquista ampla não faltavam. Jerusalém prestava-se muito a isso. Cidade de pouca importância no mundo, de modo algum comparável a Éfeso, a Antioquia, e a fortiori a Roma, era admirável como foco de propaganda judeu-cristã. Para poupar a transição e passar harmoniosamente da Judéia ao universo, como do antigo ao novo Testamento, não havia nada melhor do que essa cidade a um tempo cosmopolita e judia.

Estamos lembrados de que a inscrição da cruz, documento administrativo, era redigida em três línguas, e que isso significava, como hoje na Bélgica ou na Suíça, a divisão da população em vários grupos étnicos. A versão hebraica dirigia-se à gente da terra que falava o hebraico ou o aramaico. O latim visava a guarnição romana, e a colônia assaz numerosa que não podia deixar de cercá-la. O grego convinha aos que chamamos de Helenistas, isto é, os judeus de origem que habitavam as colônias gregas do Oriente: Síria, Egito, Acaia, Mesopotâmia, Capadócia, Ásia, Chipre, etc., onde quer que a dispersão lançara os filhos de Israel.

Jerusalém era, com isso, uma cidade universitária e sacerdotal, toda de escolas e sinagogas, tendo por potentados doutores e sacerdotes, por população principal devotos e peregrinos. A população fixa era de cerca de setenta mil almas; mas, por ocasião das grandes festas, mais de um milhão de peregrinos acampavam na cidade ou nos arredores, e depois, tornando a partir, difundiam ao longe, por toda parte, as idéias da cidade doutoral e o perfume da cidade santa.

Essas condições eram excelentes. O Evangelho aproveitá-las-á largamente. Desde a sua primeira pregação, Pedro conquista três mil almas. Após a cura do paralítico na porta Bela, os Atos computam cinco mil. O Salvador tivera razão de dizer: “Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e as fará maiores” (Jô XIV, 12). Os lances de rede do nosso pescador de homens são verdadeiramente milagrosos.

É verdade que, em geral, é essa uma gente sem importância social, daqueles de quem os Sinedritas diziam: “Quanto a este povo, que não conhece a lei, não passam de uns malditos”. Mas esses amaldiçoados pelo formalismo estagnado, pelo orgulho e pela presunção sabichona, é que serão os primeiros benditos do Evangelho eterno.

Eu já disse que não há nisso nenhum exclusivismo. Vê-lo-emos amplamente. Mas estréia-se, e, como o dirá S. Paulo com um orgulho às avessas que reserva ciosamente tudo ao céu, “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios. Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir os fortes. E Deus escolheu as coisas vis do mundo, aquelas que se desprezam, aquelas que não são nada, para reduzir a nada aquelas que são, a fim de que nenhuma carne se glorifique diante de Deus”i (I Co I, 27).

Desde esse momento, e em razão do que eu disse do caráter cosmopolita de Jerusalém, em razão da perseguição de Estevão, que dispersa e que semeia ao longe os fiéis da Cidade Santa, em razão também do zelo ardente que se manifesta por toda parte, nessa primavera espiritual da Igreja todas as regiões próximas, as províncias da Arábia, da Síria, da Cilícia, da Galácia, da Capadócia, da Bitínia e do Ponto, da Ilíria e da Dalmácia, têm em breve suas comunidades florescentes. Antioquia, em particular, torna-se como que uma nova metrópole, como que uma Roma provisória.

Não está longe a Roma verdadeira. Quanto o cristianismo houver plantado nela a sua tenda, o seu proveito novo e decisivo, será achar-se por esse fato no coração do mundo; ele terá apenas que seguir as pulsações deste, terá, como ele, de lançar por todos os canais geográficos e administrativos secularmente preparados o seu sangue e a sua alma. O Império está tão fortemente centralizado, estende-se a tão longe, que uma religião romana é facilmente universal. Seja-o! dir-se-á, e a história, sem se perturbar, completando esse vago esquema, salientando todas as circunstâncias de fatos, de pessoas, de meios, explique-o, sem ir julgar-se obrigada a apelar para o “milagre”.

Com efeito! Tomadas de um certo prisma, as nossas próprias observações precedentes e as que lhes vamos aditar podem servir de argumento em favor do caráter natural, naturalíssimo em aparência, da difusão evangélica.

Onde quer que filhos de Israel vivessem longe da sua terra e longe do Templo, constituíam uma sinagoga. Reuniam-se nela para o sábado; liam nela a Bíblia, que um dos assistentes comentava. Se algum estrangeiro notável lá se achava, convidavam-no a dizer o seu pensamento a propósito do texto, diríamos hoje a fazer uma homilia ou a pregar. Orava-se em comum, e em seguida as pessoas ocupavam-se dos negócios da comunidade local, dos negócios espirituais primeiros, e depois dos outros.

Os apóstolos cristãos aproveitam-se mui simplesmente dessa organização. Sabem que a salvação vem dos Judeus, como disse o Salvador, mas que sai deles. Chegando a uma terra nova, atacam-na pela sinagoga. Dirigem-se à cerimônia do sábado; falam; começam por Moisés e terminam por Jesus, servindo-se, como degraus, das profecias cada vez mais explícitas. O plano religioso do mundo faz o plano da sua pregação.

Achando a sua obra preparada pelo conhecimento do verdadeiro Deus, pelos símbolos da lei judaica e pelas esperanças messiânicas, eles se apóiam nisso. Quando tornam a partir, infalivelmente uma pequena comunidade é estabelecida, separada da judiaria local, tendo à sua frente, sob o governo longínquo deles, os presbíteros que eles lhe colocaram à frente.

Os Helenistas assim convertidos dirigir-se-ão doravante não já somente aos seus iguais, mas aos pagãos, e o método do Mestre terá sido obedecido: primeiro as ovelhas da casa de Israel, depois as ovelhas que não são deste redil, mas que importa que sejam reconduzidas, a fim de que haja um só rebanho e um só pastor (MT X, 6; Jo X, 16)

Muitíssimas vezes, consideráveis são os grupos assim formados; por vezes também são exíguos: que importa!. “Onde quer que haja trÊs, aí há uma Igreja”, Dirá Tertuliano; ubi três, ibi Ecclesia. A grande idéia da unidade em Cristo, da fraternidade que não teme as distâncias  porque se coloca fora do espaço e do tempo, embora prontinha a agir no espaço e no tempo, essa idéia solda uma cadeia que nada mais quebra. Os apóstolos entretém nela o fluido por contatos tão freqüentes quanto possível. Quando preciso, suprem-nos as suas cartas; elas são atos apostólicos e atos de governo.

Deste último ponto de vista, Jerusalém conserva a sua preeminência. A conquista não se torna anarquia. O mais ardente dos missionários, Paulo, volta lá como que para se retemperar na fonte. Diz que quer estar seguro de não haver pregado no ar, in vanum. E não é para os Doze coletivamente que ele se dirige, é para Pedro (Gl I, 18). Especifica que só viu o próprio Tiago ocasionalmente; não viu nenhum outro; mas passou quinze dias com Pedro, porque tem o sentimento de que lá é o centro da tradição, e de que já ele escreveria a fórmula lapidar: Ubi Petrus, ibi Ecclesia; onde está Pedro, aí está a Igreja.


Assim iniciada, a conquista cristã não tem mais razão de parar até a conversão do mundo, suposto que esse mundo de livres humanos consinta nisso. Não sucede com o fermento evangélico como sucede com um desses poderes limitados, qual a alma humana, que organizam sua matéria própria e deixam a outros princípios o cuidado de organizar alhures. A alma cristã é o Espírito de Cristo, Espírito universal, alma de toda alma, destinada a renovar, a criar de novo toda criatura pensante que o quer realmente. “Envia o teu Espírito, dissera o profeta, e eles serão criados, e renovarás a face da terra” (Sl CIII, 30).

Os primeiros apologistas tiveram a percepção desse esforço criador desde que, decorridos dois ou três séculos, puderam olhar de longe e do alto a corrente de vida que se derramara sobre o mundo. E não era uma imaginação. O crítico dos tempos modernos não pode senão entrar-lhes no sentimento. “A impressão que tiveram os Padres do século IV, um Arnóbio, um Eusébio, um Agostinho, de que a fé se propagara de geração em geração com incompreensível rapidez, essa impressão, escreve Harnack, ainda subsiste com justa razão. Setenta anos após a formação em Antioquia da primeira comunidade de pagãos convertidos, Plínio descreve com as expressões mais fortes a expansão do cristianismo na longínqua província de Bitínia, e já vê ameaçada, nessa região, a existência dos outros cultos. Setenta anos mais tarde, a questão pascoal mostra-nos uma confederação das Igrejas cristãs que se estende desde Lião até Edessa, e que tem seu centro em Roma. Setenta anos mais, e o imperador Diocleciano declara preferir suportar um rival em Roma a suportar um bispo cristão. Apenas setenta anos se passam, e a cruz é fixada nos estandartes romanos”6

Estas palavras do grande crítico não significam que, no seu pensamento, a propagação da Igreja seja propriamente milagrosa. O que realmente pretende é que, no final das contas, as coisas se passaram como deveriam passar-se. Mas há aí um equivoco que talvez venhamos a dissipar dentro em pouco. Quando se fala em difusão milagrosa do Evangelho, nem sempre se sabe bem exatamente o que se diz, e, quando ela é contestada em nome da natureza das coisas, nem sempre fica sabendo isso melhor.

Por enquanto, consigno o fato. Desde o fim do primeiro século, o cristianismo está difundido por toda parte no Oriente. Pelo fim do reinado de Marco Aurélio, aos cento e cinqüenta anos de idade aproximadamente, ele está difundido em todo o Império: Gália, Espanha, Germânia, África, Egito, Eufrates, e além. “Somos apenas de ontem, exclama Tertuliano, e já enchemos todo o vosso Império: as cidades, as ilhas, as praças fortes, os municípios, as assembléias, os próprios acampamentos, as decúrias, o palácio, o senado, o fórum. Só vos deixamos os templos”. Este último dito não é sem ironia!

Pelo ano 170, um apologista pode afirmar que os cristãos são mais numerosos do que os Judeus. Cristo saiu do seu presépio, e a sua Igreja sobrepuja a sinagoga. Enxertada numa minúscula história, a sua obra desde esse momento fez ligação com a história universal.

O caráter dessa conquista, do ponto de vista social, é importante de notar. Logo no início, a conquista é popular. Mui depressa torna-se uma conquista do escol, e, daí, parte um novo movimento de conquista popular, para uma penetração mais completa da multidão, onde o paganismo local e doméstico resiste longo tempo.

Pode-se dizer que o escol do mundo civilizado se aliou ao cristianismo desde que o cristianismo foi verdadeiramente conhecido, isto é, no início do século III. Até aí, ele permanecia enterrado sob os preconceitos; não o olhavam, e nem ele mesmo nem seu Deus tinham feito coisa alguma para que o olhassem.

Cem anos após esse período, todos os grandes nomes da civilização eram cristãos. Eram nomes de bispos. Chamavam-se Basílio, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Jerônimo, Ambrósio, Agostinho. Era o triunfo intelectual, na persistência do triunfo popular.

Porém, é mais fácil reconduzir um gênio ou um coração simples, quando escutam, do que um inconsciente entregue a rotinas e a superstições seculares. A massa propriamente dita está entregue À inconsciência. A sua conquista lentamente obtida será, pois, a última obra; fechará o círculo de expansão. Religião dos simples; religião do escol social; religião de todos: tais serão as etapas.

E o dilema subsiste: fatalidade histórica ou vontade providencial? Deus ou natureza?

Deus ou natureza, digo eu! Deus e natureza, talvez? Deus na natureza; Deus fazendo uma síntese do que ele é e do que nós somos, para formar o que ele quer que sejamos?

Se tal fosse a solução, haveria aí ao mesmo tempo milagre e realíssima evolução histórica.

É o que vamos ver.


II


No momento em que o Evangelho se propunha ao mundo civilizado, o meio greco-romano tinha saído da crise de livre pensamento que sofrera havia dois séculos. Augusto acreditara concorrer para isso poderosamente; mas a sua ação oficial quase não havia provocado – diretamente pelo menos – senão hipocrisias e literatura banal. Esnobismo religioso e culto político ou administrativo, era tudo o que podia sair de uma iniciativa demasiado interesseira para ter uma ação profunda.

Entretanto, enquanto Jesus pregava nas margens do Lago, enquanto S. Paulo vinha perorar no Areópago, produzia-se uma imensa efervescência religiosa. Aquilo a que se chamou o sincretismo, amálgama de doutrinas em que se uniam o Oriente e o Ocidente, atingia seu auge7. Havendo a filosofia provado o seu vazio, e ainda não estando proclamada a grande plenitude, o homem enganava a sua fome com os cultos de Ísis, de Baco-Dionísios, ou da Grande Mãe, com os passes de Simão o Mago,ou de Apolônio de Tiana, e com as adivinhações caldaicas ou as feitiçarias tessalonicenses.

Valia isso mais do que o livre pensamento? Sim e não. Isso se passava mais em baixo, e a este título valia menos. Mas isso também era mais humilde e valia mais porque fechava menos os caminhos do que o orgulho suficiente do racionalista. “É bom ser cansado e fatigado pela inútil procura do verdadeiro bem, escreveu Pascal, a fim de estender os braços ao libertador”.

O gênero humano fatigava-se assim em vãs procuras que tinham ao menos a vantagem de deixar o problema formulado, em vez de supô-lo resolvido pela negativa. Nessa efervescência, os ritos sublimes e as práticas obscenas misturavam-se; a exploração impudente e o devotamento profundo, o misticismo contemplativo e o charlatanismo caricato vizinhavam: “Quem quer morrer a si a fim de renascer?”, dizia o sacerdote de Ísis. “Quem quer saber o dia da morte do seu proprietário?” clamava aos escravos descontentes o astrólogo caldeu.

Morta a religião oficial, morto o diletantismo cicerônico, morto o epicurismo, procurava-se outra coisa. Os homens apaixonavam-se e extraviavam-se. Lançavam-se a fundo, com o inconveniente apenas de soçobrarem na alucinação, no ridículo ou no vício “soi-disant” religioso.

A razão desse movimento parece dupla. Razão negativa: a usura “sur place” do livre pensamento, que nunca vai longe. Razão positiva: a chegada profusa de todos os cultos do universo ao ponto em que a civilização greco-romana se ostenta. O Império fortemente centralizador, auxiliado por meios de comunicação até então desconhecidos, faz do meio mediterrâneo uma cuba onde tudo se precipita para fermentar.

Os cultos de outrora eram estritamente locais; a pátria e a religião confundiam-se: volta-se atrás dessa estreiteza, e consente-se em alargar paralelamente as concepções temporais e os pensamentos religiosos. Ao mesmo tempo que Roma deixa de ser propriedade exclusiva dos Romanos, com maioria de razão deixa Júpter Optimus Maximus; com maior razão ainda, segundo as idéias do tempo, Zeus para os Helenos ou os Baals para os Sírios. A religião universal vai aproveitar esse espírito acolhedor.

O mesmo sucederá com a religião íntima constituída igualmente pelo Reino de Deus, ou religião do coração. A política dos Imperadores desgostou da vida pública dos cidadãos. Quase já não há, para se envolverem nela, senão os arrivistas e os criados rasteiros. As almas nobres procuram onde refugiar-se; mas que outro refúgio têm elas probabilidade de encontrar senão elas mesmas, único asilo, numa sociedade fora dos eixos, para quem deveras deseja viver?

Mas aí, no seu coração que ele escuta bater, o homem desanimado do exterior arrisca-se a só ouvir soar o vácuo. Se o divertimento, no sentido de Pascal, lhe é vedado por um meio hostil ou nulo, que poderá realmente achar na vida interior uma alma profunda, na ausência de alimento que a possa sustentar?

O pessimismo lá está pertinho. O taedium vitae, o tédio de viver, é a doença desse tempo. Os próprios moralistas incitam a ela pelas suas declamações desiludidas e pela ostentação do seu pesar. Os suicídios multiplicam-se. Tal é o termo das soberbas doutrinas que haviam ensinado a contentar-se consigo e achar a felicidade nos bens que nascem de si. “Ut sis contentus temetipso et ex te nascentibus bonis”, escrevia Sêneca antes de abrir as veias. Sobre o que, Pascal, verificando que esses pensadores acabam por aconselhar, em palavras ou em fato, àqueles a quem este mundo não contenta, deixarem-no sem trombeta.8, escreve com a sua ironia cruel: “Oh! Que vida feliz, de que a gente se livra como da peste!”.


Procura-se, pois. O “si forte attrectent eum,, se se pudesse atingir a Deus!” assume em muitos uma significação trágica, e na massa um sentido que raramente tivera no curso da história, se jamais o tivera. Na paz e na prosperidade romanas germina o sentimento de que nada basta, e procura-se levantar o tampo azul sob o qual a frágil humanidade se consome de insuficiência, desde que as necessidades da vida e a febre de agir já não a angustiam mais.

“Oh! Se os céus pudessem abrir-se!” exclamara Platão. O mundo grita também. Grita como um surdo, e é bem o caso de dizê-lo; porque mesmo o que de Deus se ouve só na consciência, ele o ouve mal; S. Paulo censurar-lho-á com dureza. Mas o que o ouvido do homem não ouviu(I Co II, 9), isto é, o dom de Deus secreto e livre, se ele podia ainda menos ouvi-lo, não deixava de esperá-lo sem o saber.

Quando ele se elevava a meia altura para o Olimpo, não achava aí senão divindades decorativas, ou vícios personificados, ou então Imperadores, dos quais alguns se chamavam Calígula ou Nero. Havia razão de fugir para longe dessa região pretensamente etérea, porém na realidade mais baixa o que a outra. Quem abriria o largo do céu para a descida de Deus e para a subida das almas?


Compreende-se o efeito que numa sociedade assim feita devia produzir o Padre Nosso que estais no Céu, e também a pregação de um Deus humano ao mesmo tempo que transcendente, como Cristo, de uma doutrina de pureza, de generosidade e de amor com o Evangelho. Uma terra que tinha tamanha sede devia beber avidamente o orvalho divino da cruz. Os largos gritos que dela desciam achariam um eco bastante largo também para abalar poderosamente todas as almas. Não se haveria de rir disso como se ria de Juno confusa ou de Baco ébrio.

O fracasso do sincretismo redundou duplamente no triunfo do cristianismo: pelas suas insuficiências morais ou racionais, e pelos seus bons lados, que eram uma preparação. O lado mau foi perder-se na heresia e desvaneceu-se por si mesmo.

Em suma, tal como era, esse meio compósito foi para o desenvolvimento do cristianismo nascente o que foi o meio úmido e quente da época carbonífera, pai das gramíneas gigantescas.

Ao que, de novo nos dizem: Pois bem! Então está tudo explicado, e não há aí milagre.

Mas a tal observação muito há que dizer.

Mostrei o cristianismo abrindo a sua carreira à maneira da criança, que cresce em algumas semanas, dizia eu, como mais tarde não o saberá fazer em dez anos. Mas, se a criança assim cresce, é porque há nela alguma coisa; há esse não sei quê que uma palavra vazia recobre: a vida! Que é então a vida? Não sei, mas o que bem sei é que, para explicar o crescimento da criança, não basta me dizerem que há à volta dela tudo o que é preciso para crescer, que a temperatura é boa, o meio é são; que ao lado há uma ama, há leite, pão, um assoalho livre para ela ensaiar os primeiros passos, e em seguida todas as estradas abertas para ela correr. A vida é uma assimilação a partir de um germe, e o germe, o germe caracterizado, definido, ativo numa linha dada, evolutivo segundo uma certa fórmula, e já contendo na sua definição o essencial daquilo que ele deve vir a ser, isto é que é a explicação verdadeira.

Se o cristianismo não tivesse achado todas as condições necessárias ao seu desenvolvimento, não se teria desenvolvido, e é por isso, aliás, que Deus lhe prepara essas condições; provê a elas pelo curso ordinário dos fatos, sem que haja ainda aí que falar de milagre. É uma providência, eis tudo. Mas, houvesse Deus assim disposto tudo, ou, para falar uma linguagem profana, houvesse a história fornecido o meio ideal de um tal desabrochar, restaria ainda achar e definir o germe de vida.

Que é essa força invisível que une o grupo de barqueiros, que lhes anima a palavra e dá a esta uma eficácia sobre-humana? Que é essa chama que corre no colmo, consoante a comparação do Salmista, e que provoca um incêndio maravilhoso? A humanidade era uma lenha seca? Bem! Mas, se sobre a lenha seca lançais apenas outra lenha seca, isso se amontoa; se lhe lançais água, ela apodrece. Onde está aqui o fogo?

“Forçoso era que algo se houvesse passado”, diz Claudel. Forçoso é também que algo se passe ainda, que alguma coisa de efetivo subsista, uma sobrevivência real, coisa diversa de um passado extinto, que, por mais formidável que fosse, apesar de tudo interessaria apenas a memória, e por si só não explicaria aquilo que, pense-se o que se pensar, se deve realmente chamar um soerguimento do gênero humano.

Concedemos tudo quanto a Igreja achava de socorros no seu meio de desabrochamento; mas esses socorros eram passivos, se assim posso dizer, e bem longe, ainda, que ela só achasse socorros.

O cristianismo tinha contra si uma multidão de obstáculos: suas humildes origens humanas; suas ligações com o judaísmo, facilmente desprezado pelos pagãos; a sua pregação da cruz, que era ridícula a um ponto impossível de nos representarmos hoje. O patíbulo divino está, para nós, cercado de uma auréola; então ele era o vil pelourinho, reservado aos malfeitores de baixa extração e aos escravos.

O exclusivismo insolente de que a nova religião dava prova amotinava contra ela não somente as religiões oficiais ou públicas, mas também, o que era muito mais grave do ponto de vista da sua penetração das massas, as pequenas religiões locais e os cultos íntimos cuja ação tenaz da vida privada daquela época as lousas funerárias e os papiros mágicos nos revelam.

Questões econômicas juntavam-se aqui ao obstáculo religioso. Os cleros de toda natureza, os estatuários, os ourives, que formavam uma corporação poderosa, tal como S. Paulo perceberá em Éfeso, todos os comerciantes e artífices que viviam do paganismo deviam resistir com a cólera do interesse ameaçado ou com a aspereza da fome. Sabemos até onde vão semelhante resistências.

Não faltarão as perseguições, que no fundo serão úteis, porque suscitarão os altos entusiasmos de que falei; mas, quando os entusiasmos são a tal preço e tão numerosos, seria fácil demais considerá-los como simplíssimos. Vemos nisso um milagre de graça, e o objetante sincero não dirá facilmente o que nisso vê. É certo, em todo caso, que as perseguições deterão no limiar muitos hesitantes. Os heróis não são multidão. E, acima de tudo, a perseguição interior que a verdade move contra os instintos desviados, contra as tendências desenfreadas por um longo relaxamento moral, tem o perigo de afugentar aqueles que mais necessário é atrair, de fazer fracassar aquilo que é mais capaz de ter êxito.

É esse sempre o grande obstáculo. Será esse o obstáculo eterno. A Igreja tem vivido em todos os tempos no meio das contradições, e, no fundo, não é outra coisa; e por essa razão, as contradições dos seus primórdios devem ter sido tanto maiores quanto ela como nunca ameaçava e ainda não adquirira com que se defender.

O cristianismo, poder-se-ia dizer, tinha contra si aquilo mesmo que tinha a seu favor, porquanto o seu valor sem par não podia utilizar-se senão à custa de sacrifícios, de renúncias que o estado geral da natureza humana, e mais ainda as circunstâncias do seu próprio inicio, queriam heróicas.

A Igreja conseguiu tudo isso, por quê? Porque, se os seus destinos pareciam assim circunvalados numa contradição inelutável, exigindo a sua grandeza o impossível, e anulando-lhe esta impossibilidade praticamente a grandeza, havia no circulo fatal um corte; o elo tinha um engaste. O divino inseria-se nas aparências humanas contraditórias, e Deus sabe conciliar tudo, tornando possível, pela sua presença nas almas, o que impossível seria em razão da sua presença demasiado exigente nos fatos.

A transcendência do objeto é aqui vencida pela transcendência do sujeito embebido de Deus. E dupla será a efusão do Espírito anunciado por Cristo: na Igreja, para torná-la divina e por conseguinte humanamente inacessível tanto quanto útil, tanto quanto atraente; fora da Igreja, para vencer amorosamente o coração dos predestinados, homens ou povos, e pô-los ao nível daquilo que salva.

Sem a sua graça imanente, a Igreja não seria o que é, inaceitável humanamente tanto quanto indispensável. Sem a graça imanente às almas sobre as quais ela age a Igreja debalde seria o que é, visto que não aceitariam.

De sorte que o milagre aqui – pois em verdade há milagre – é aquele que Santo Agostinho fala quando diz: A conversão de um pecador é coisa mais difícil do que a ressurreição de um morto. E esse milagre é duplo na sua unidade, interior e exterior à Igreja. Do milagre exterior à Igreja, interior às almas e que as dispõe para o Evangelho, dissemos o que dele pode exprimir-se, e é no fundo o segredo de cada consciência. Do milagre interior da Igreja, que faz da Igreja um objeto divino, há sinais que não escaparam aos homens daquele tempo. Eles valem sempre; mas nós estamos acostumados com eles e temos outros obstáculos; eles, os homens daquele tempo, tinham o olhar novo, e, em vez de obstáculos, tinham atrações. Por isso foram impressionados até se renderem.

Primeiramente a doutrina, a que poderíamos chamar um milagre de luz, tanto a sua coerência e a sua adaptação a todos os casos humanos bastam para lhe fazer a prova. Admiravelmente rica, ela pode resumir-se em algumas palavras quanto ao essencial; a salvação em Deus Pai, por Cristo mediador, conjunta e eternamente. Misturada ao humano, ela é capaz de renová-lo a fundo, confirmando-o com a sua autoridade e engrandecendo-o infinitamente com o seu contributo. Ela está ao alcance de todos; os pardais podem beber nela e os elefantes banhar-se, dirá Gregório Magno. Síntese de vida, ela entra em relação fecundante com tudo. Atrai e retém por toda sorte de razões. O sábio vem a ela por causa dos seus arcanos, o simples por causa da sua lucidez; o autoritário por causa das leis que ela dita, e a alma mística porque ela excede toda a lei. Como quer que a loucura da pregação, como diz Paulo (I Co I, 21), e a sabedoria de Deus  que a ela se mistura, abordem a alma por diferentes lados, em ambos os casos Deus se fará reconhecer a ela.

O universalismo que atribuímos ao Evangelho e que faz dele uma religião primitiva restaurada, um judaísmo aperfeiçoado e uma religião inteiramente nova, dará a impressão de que ele julga a história universal, a contém e a explica, o que é a verdade. Os grandes espíritos acharão nessa consciência universal, tornada consciência cristã, uma suma atração.

Aliás, por si mesmo se concebe que, se a doutrina atrai, é sobretudo na medida em que se encarna nos fatos. Filosofias, têm-se visto tantas! Bem se querem ver outras ainda; mas depois de examiná-las curiosamente, torna-se a colocar o “bibelot” na sua vitrine.

A vida! A vida! Eis o que converte. É a força interior do Espírito; é a corrente divina, que, passando, arrasta o que lhe é semelhante. Aquele que pode dizer: “Para mim, viver é Cristo” (Fp I, 21), esse conduz os homens a Cristo. A verdade irradia na virtude. Ora, a Igreja, nesse momento, mostra bastante virtude para deslumbrar as consciências mais exigentes.

Notável é que os próprios apologistas não sejam convertidos pelas apologias dos seus antecessores, mas pela vida cristã que se lhes impõe à consciência. Uma vez cristãos, eles fazem o que sabem fazer e explicam o porquê daquilo que os conquistou; mas o fervor que eles põem nisso e a sua própria participação na vida religiosa que pregam têm mais influência do que os seus dizeres. Há nisto uma lição para os modernos apologistas.


A constância dos mártires parece ter sido o argumento mais empolgante dessa graça imanente da Igreja. A serenidade deles diante da dor, por causa do que eles tinham sob o olhar interior e do que diziam ter no coração, impressionava infinitamente as almas religiosas. A vida com Deus era, pois, uma realidade? Podia fazer superabundar de alegria no meio das tribulações (2Co VII, 4)? Eternizando o mesquinho ser humano, dava ela então razão àquele que dizia: “A nossa vida é no céu, conversatio nostra in coelis” (Fp III, 20)? E, nessas condições, a própria morte podia ser então um ganho: “e mori lucrum” (Fp I 21)? Marco Aurélio, o filósofo, não compreendeu nada disso; talvez o trono o afastasse demais da humilde vida nova; porém os que viam de perto, ou que não tinham os olhos vendados por um sistema, compreenderam.


A vida com Deus tinha, nos primeiros cristãos, um reflexo que não podia deixar de ferir os olhares. Viver com Deus era para eles viver juntos em Deus. Ora, num mundo em que mais do que nunca se podia dizer: o homem é um lobo para o homem, homo homini lúpus, esta vida em comum na caridade não demonstrava uma irrupção do céu na terra? “Eles se amam quase antes de se conhecerem”, dizia o pagão Cecílio. Sem dúvida! As pessoas se conhecem antecipadamente quando habitam em Deus por Cristo. “O fundador deles, escrevia Luciano, meteu-lhes na cabeça que eles são todos irmãos”9. Zombava disso, e de que era que ele não zombava? Mas outros sentiam essa imantação e agregavam-se à vida divina.

Tanto mais quanto essa caridade cristã não era puramente sentimental; era organizada; era uma vida em comum que criava todas as virtudes sociais, e antes de tudo a virtude social por excelência: a justiça. A justiça das palavras, justiça dos contratos, justiça das relações domésticas, políticas ou econômicas, era esse o tronco no qual florescia isso que correntemente chamamos caridade. Sustento das viúvas e dos órfãos, cuidado dos doentes, socorro aos indigentes, visita dos prisioneiros, hospitalização dos viajantes, sepultura dos mortos, vinham em supererrogação e constituíam uma espécie de culto estreitamente entremeado ao culto. “Os doentes são o tesouro da Igreja”, dizia S. Lourenço. Os pagãos desviados não eram desta opinião; mas “a alma naturalmente cristã” era, e reconhecia sua pátria naquela reunião de irmãos.

Quanto aos políticos clarividentes, estes também poderiam ter visto, naquele grupinho nascente, o início evidentíssimo de uma ordem social nova. Por pouco que irradiasse nas instituições do futuro, a justiça fraterna não podia deixar de fazer fundir, no fogo da caridade, assim os grilhões dos oprimidos como os cetros brutais dos sátrapas.

A nova religião limitava os poderes do Estado erguendo diante dele a consciência, isto é, o indivíduo, isto é, o Direito do homem. Atacava a escravidão: coisa impressionante entre todas, impressionante sobretudo ao olhar do homem moral, porque procedia moralmente, abordando o social pela raiz, sem nenhuma revolução destrutiva, sem sequer formular a questão teoricamente, contente de inserir nos corações o princípio da sua solução. Era o Febo divino que triunfaria de Bóreas, o vento das palavras ou o furação das violências.

Pode-se fazer notar que a atração exercida pela nova doutrina, em razão da sua beneficência, sobre as mulheres e os escravos, ajudou muito a sua propagação. A influência moral da mulher é imensa, uma vez assegurado o seu devotamento efetivo, e os escravos preceptores muito podiam para cristianizar as novas gerações.

Da ordem social nova assim engrenada, as comunidades cristãs, onde o espiritual se misturava ao temporal ainda não diferenciado, já ofereciam um esboço. As cristandades funcionavam como pequenos Estados, ao mesmo tempo que como famílias, como tribunais, como agências de colocação, sindicatos, caixas de socorros. Permutavam, de uma religião a outra, as notícias e os bons ofícios, os conselhos fraternais e, se preciso, as admoestações. Nelas a autoridade não passava de um serviço, as classes de um sistema de degraus para derramar sem abalo aos bens comuns, que só eram propriedade do céu.

Em suma, tanto quanto o permite a fragilidade humana – pois havia aí misérias – realizava-se essa divinização da vida que é a essência do Evangelho. E os pagãos, acostumados às belas máximas abandonadas (Probitas laudatur et alget, dizia Juvenal, a virtude é louvada e enregela-se) estavam estupefatos. E os que, dentre eles, aguardavam o reino de Deus, como o velho Simeão, acorriam.

Lacordaire escreveu: “A humanidade crê em Deus porque o vê agir”. Tal é a explicação literal da conquista religiosa de nossos pais. Acrescentando, entretanto, que eles não teriam crido em Deus a agir fora, se, com o seu consentimento, Deus não houvesse agido neles. Mas Deus agia em toda parte. Decidira renovar a face da terra. E nesse milagre de Deus difundido absolutamente não se opõe ao caráter humano, e à continuidade histórica da sua obra.

Esses bons críticos que, no intuito de afastarem aqui o milagre, procuram razões humanas, e as acham, não desconfiam até que ponto são pouco filósofos. É certo que, pesado tudo, a Igreja devia desenvolver-se como fez, e isso por motivos observáveis. Porém o observável às vezes tem fontes que não o são, e que, não fazendo parte do complexo das causas naturais, invocam uma causa sobrenatural.

Se se dissesse: um homem desarmado, em face de um leão, deve ser devorado pelo leão, exprimir-se-ia uma coisa simplíssima. Mas isso não serviria para provar que o leão é miraculosamente forte em relação ao homem? Ora, esse miraculosamente, que aqui não passa de uma metáfora, para o cristianismo era uma realidade. O mundo greco-romano, em face da Igreja, devia ser conquistado pela Igreja; era fatal; mas por quê? Porque a Igreja, em relação a ele, era uma força irresistível. É nessa força que, aos nossos olhos, reside o milagre, porque, conhecendo pela experiência de todos os tempos a força do homem, nós nos dizemos: é uma força de Deus.

O milagre não consiste em não sei que manejo dos acontecimentos por alguma mão exterior. Aqui não há nada de exterior, mesmo que fosse Deus; porquanto o próprio Deus está dentro. O seu Espírito é que é a alma da Igreja, e esse Espírito é bastante poderoso para vencer o mundo, que ele penetra igualmente, e que livremente aciona. “Tende confiança, dissera o Salvador, eu venci o mundo” (Jô XVI, 33). Mas esse poder, como todo poder anímico, exerce-se por dentro; dentro da Igreja, dentro das almas, e utilizando, não fazendo senão orientar, o que as almas e o mundo apresentam de recursos.

Há nisso o mesmo qüiproquó que na oposição do vitalismo e da interpretação físico-quimica dos elementos vitais. O vitalismo diz: “Há uma força vital que dirige, contém e, se preciso, combate as forças físico-quimicas”. E o sábio responde: Não conheço essa força; toda ação ou reação orgânica é mensurável, e depende da observação físico-quimica. Um filósofo intervém e diz: É verdade; no corpo há física e química, a título executivo; mas a finalidade orgânica vem-lhe da alma.

O milagre do  organismo animado é que ele utiliza tudo, até mesmo o que parece estranho ou hostil, para realizar a sua idéia diretora. Mister se faz apenas que ele seja bastante forte, do contrário aquilo que poderia nutri-lo o mata. Ora, nada matou a Igreja; tudo lhe serviu. Mas, se nada a matou, a razão disso não está numa proteção exterior – salvo os milagres particulares, que não se trata de negar; mas falamos do conjunto. – E o que lhe serviu não sérvio em razão de piparotes exteriores. A verdade é que o Espírito de Cristo, vivendo nela, imprimia aos seus elementos humanos uma direção e uma impulsão vital capazes de vencer as hostilidades do meio, de captar as forças úteis, de animar os elementos neutros, e dessarte, de incorporar a si o mundo. É um milagre isso; é o milagre da vida, e, na espécie, o milagre de uma vida divina.

A Encarnação, que criou o gênero humano-divino; o Espírito de Deus, que penetra o Cristo homem, e por ele o núcleo primitivo da Igreja; esse mesmo Espírito que pela graça trabalha a matéria exterior a assimilar, e que, circulando do sujeito ao objeto, do objeto ao sujeito, dá testemunho a si próprio e serve a si mesmo: tal é o milagre.

Para assimilar o mundo e a vida, ao menos tanto quanto eles a isso queriam prestar-se, era preciso um germe igual ao mundo e à vida; era preciso o Homem universal: Cristo; e o Homem universal só é universal pelo Espírito que o penetra e que é o Espírito universal: o Espírito Santo.

As profundezas do homem e da vida do homem, assim como a amplitude do espaço e do tempo que os mede, não podiam ser envolvidas e conquistadas pela Igreja senão com a cumplicidade, digamos melhor, pelo trabalho do eterno, universal e supremo vivente: Deus.


6 – Harnack, Die Mission und Ausbreitung dês Christentums in den ersten drei Jahrhunderten, Leipzig, 1906.
7 – Para a análise desse movimento, neste capítulo e no seguinte, fomos buscar uma quantidade de aspectos ao belo trabalho de nosso confrade o R. P. Allo: L’Évangile em face Du Syncrètisme paien. Paris, Bloud, 1910.
8 – Cf. Sêneca, Ep LXX; Epicteto, IV, 10.
9 – Luciano, A Morte de Peregrinus, 13.

sábado, 27 de abril de 2013

Os primeiros desenvolvimentos da Igreja - A. D. Sertillanges


Quando se aborda a delicada questão do desenvolvimento religioso, tal como ele deve revelar-se e efetivamente se revela na Igreja, fica-se em presença de três tendências intelectuais – para não dizer três sistemas – dos quais dois representam extremos, deixando lugar, como sempre à via média, por onde atenta e tranquilamente se comprar em caminhar a sabedoria.

A primeira concepção: a Igreja, nos seus primórdios, era ou devia ser o que é hoje, salvo a amplitude.

Segunda concepção, situada no outro extremo: nos seus primórdios a Igreja não era e não devia ser nada do que é hoje; veio a sê-lo por força dos homens e das circunstâncias, por acidente, diria um filósofo, semelhante à bola de neve que engrossa rolando, corre para a direita e para a esquerda, e agrega a si os calhaus da estrada.

Terceira concepção, que se vai reconhecer, pois não podíamos deixar de explorá-la antes de defini-la – e sem ela tudo não teria passado de dispersão e acaso nos pensamentos que, pelo contrário, nos pareceram ligar tão fortemente os fatos da história; - a Igreja, nos seus primórdios, era um germe definido, e a este título, sob este aspecto, perfeitamente idêntica ao que é hoje. Como se eu dissesse: o frango é o ovo; o carvalho é a glande; porquanto, do ponto de vista da espécie, de um ou de outro só sai aquilo que deve sair, aquilo que portanto nele se achava contido de antemão. De que maneira ou de que outra? Decidi-lo-emos dentro em pouco; mas isso aí se acha em todo caso, certa e mui determinadamente; as circunstâncias exteriores não farão senão dar à ideia vital ensejo de se revelar o que é; as direções particulares, assim tomadas, darão ao produto último uma fisionomia em relação às circunstâncias atravessadas e as influências que elas comportam, mas sempre sob o governo da ideia vital, que detém todo o essencial.

Por aí se pode ver que, quanto à opção há pouco proposta, procedemos à maneira de Platão, que dizia com boa graça: “Quando me pedem optar entre duas coisas, faço como as crianças, tomo-as ambas”. Tomamos, com efeito, as duas opiniões precipitadas, completando-as e corrigindo-as uma pela outra.

Nos seus primórdios, a Igreja era o que é hoje? Exatamente, mas no estado envolvido, como que um germe. Nos seus primórdios, a Igreja não era nada, ou quase nada, do que ela  é hoje? Realmente! Absolutamente não o era no estado desenvolvido, no estado de fenômeno histórico manifestado, evoluído; era-o, todavia, da outra maneira.

Esta decisão, ousarei dizer, aclara o debate tanto quanto ele pode aclarar-se, o que não significa completamente. Porquanto restaria definir o que é essa existência em germe com que queremos mimosear a Igreja. Confessarei, mesmo, que este o fundo do debate; porque ninguém estaria disposto a negar, em princípio, que, em relação à nossa, a Igreja de S. Paulo seja uma espécie de germe. Somente quando se quer precisar, diverge-se e, ao olhar bem a coisa, a divergência parece porvir de uma diferente concepção filosófica daquilo que se entende por germe.

Há quem imagine que um germe é propriamente a coisa a obter, salvo a estatura. Era a ideia de Anaxágoras, com suas partes similares, ou mínimas, pretenso ponto de partida das gerações. É o que a imaginação popular concebe, quando de bom grado imagina, num ovo um franguinho invisível, numa bolota num carvalho minúsculo com galhos dobrados, como um guarda-chuva em repouso na sua capa.

Mas isso é uma ideia de criança. Não é de admirar que, aplicada à Igreja por um subentendido inconsciente, ela pareça colocar-nos em má postura para com a história. Com efeito, ela nos obriga a achar na Igreja primitiva o que nela não se acha: um organismo diferenciado, munido de tudo o que hoje chamamos essencial, senão mesmo do acessório a que estamos acostumados. Como se devêssemos achar nessa igreja inicial, desempenhando o papel das partes mínimas de Anaxágoras, um pequeno cardinalato ou uma pequena congregação do Índex.

Felizmente, esta concepção a ninguém se impõe. Não é assim que Deus cria. Na natureza, ele nos mostra como procede isso. Analisai um grão, mesmo que seja ao microscópio, e nele não achareis uma arvorezinha. Não há nele nem galhos, nem folhas nem flores, nem, com maioria de razão, frutos; se os houvesse, sendo esses próprios frutos embriões de árvores, forçoso seria contivessem outros frutos, que por sua vez conteriam outros, e assim sem fim.

Mas num germe não há nada de tudo isso. O que há, mormente logo no início, é uma virtude preformativa, que se apoia em condições materiais definidas, mas definidas sobretudo como poder*, e não como realização obtida. Um ímpeto orgânico não é um desdobramento.

E que é então, com precisão? Grato ficaríamos a quem o dissesse. A esse pensador, a ciência poderia votar uma coroa mural: ele teria sido o primeiro a escalar a fortaleza de um grande mistério. Toda a natureza repousa nesse poder de desabrochamento, que se revela ocultando-se, como a própria Divindade.

Resignemo-nos. Mas é bastante dizer: a Igreja desenvolve-se através dos tempos como esses objetos de natureza que conhecemos, aos quais não opomos objeções, dos quais somos – entendo: os viventes.

E isso significa duas coisas que, dizia eu, corrigem uma pela outra as opiniões extremas. Isso significa que a Igreja é caracterizada, desde o início, segundo todos os caracteres íntimos que nela se revelarão mais tarde na forma histórica: assim o ovo ou o grão de uma certa espécie contém em si as características completas dessa espécie. E, por outra parte, isso significa que a Igreja, no início, não possui, nem precisa possuir, as formas históricas com que a agraciará o futuro: assim o ovo não contém nem bico, nem patas, nem penas.

Mister se fará, pois, que no curso da sua longa vida, se introduza constantemente na igreja o novo. Mister nunca se fará, porém, que nela se introduzam novidades. Esta distinção absolutamente não é verbal. É capital em toda a medida do possível. A nossa Igreja sempre viu um abismo entre essas duas coisas.

A novidade é o elemento estranho que permanece estranho, que se justapõe e não se assimila, porque é incapaz disto, ou porque a questão nem sequer se apresenta, de vez que o todo não passa de um magma sem ideia vital. Se a Igreja crescesse assim, seria a bola de neve de inda há pouco, a qual na partida quase nada absolutamente tem daquilo que terá mais tarde.

O novo é o elemento estranho que se assimila, porque é assimilável, porque era chamado ou aceito antecipadamente por propriedades concordantes com as suas, e porque lá estava, pois, contido em oco, se assim posso dizer, antes de fornecer o cheio. Assim os elementos cedidos à planta pelo ar, pela água e pela terra a ela se incorporam, e entram sob a sua lei de vida, deixando-a, pois, à sua essência.


A esta luz, abordaremos o exame dos fatos.

Eis os Doze agrupados em torno de Pedro, que, como a crítica cada vez mais reconhece, é mui verdadeiramente o personagem principal (princeps) da primitiva Igreja.

Como consequência da sua designação e como inicio da sua missão, Pedro foi o primeiro a ver Jesus ressuscitado, o primeiro a crer e a comunicar a sua fé aos outros. É por proposta dele que Judas é substituído, para que o número das testemunhas esteja completo, em acordo com o simbolismo universalista observado quando falávamos do estabelecimento da Igreja (At I, 13). Ele é que será o porta-voz de todos perante o Grande Conselho (At IV, 8). Relatando este último episódio (V, 29), dizem os Atos: “Pedro e os apóstolos”, fórmula evidentemente intencional. Até o fim continuar-se-á a dizer: Pedro, o Rochedo, nome simbólico, como se sabe, ao passo que os outros sobrenomes dados pelo próprio Jesus não sobrevivem, e embora esse nome absolutamente não esteja em uso nos meios hebraicos ou helênicos.

O grupo apostólico, com o das mulheres galileias, de que Maria, mãe de Jesus, é o vínculo, reuni-se num hyperôon, câmara alta que dá para um terraço, à moda oriental.

Em volta desse primeiro círculo, um segundo se estabelece, composto dos convertidos de Jerusalém: cerca de cento e vinte pessoas, no momento da morte de Jesus. Pela sua primeira pregação, Pedro agrega três mil (At II, 41). E em volta deles um terceiro grupo vai logo constituir-se: os Helenistas, cujo caráter particular muito contribuirá para o desenvolvimento ulterior da Igreja, ao mesmo tempo que para o seu êxito exterior. Estes dois efeitos condicionam-se um ao outro. Conquistando o que lhe é assimilável, o cristianismo toma consciência de si, como o vivente se desperta a si mesmo reagindo sobre o que seu meio lhe traz. A vida é um círculo.

O grupo de que eu falo difere muito, pelo espírito, dos Judeus de Jerusalém. Os Helenistas são Judeus, porém Judeus transplantados, que vivem ou viveram em terras de civilização greco-romana. A sua língua é o grego, em vez do aramaico ou do hebraico. A sua cultura e costumes são hauridos na gentilidade, em vez de terem permanecido locais. Eles são fiéis ao judaísmo, porém o encaram mais largamente. Donde, entre os Judeus formalistas de Jerusalém, a tendência para considerá-los como conformistas um pouco suspeitos, às vezes mesmo como traidores. E, inversamente, como sempre, tendência da parte dos Helenistas a olharem os Hebreus intransigentes como espíritos estreitos e casmurros.

Quando o Evangelho se apresenta a uns e  outros, aceito com um mesmo coração – pois aqui falamos dos convertidos -, nem por isto é julgado com um mesmo espírito. Os Hebreus veem nele sobretudo uma reforma judia, e a ele se agregam como outros se agregam aos Essênios ou aos Fariseus. Os Helenistas saboreiam-lhe melhor a novidade, e puxarão no sentido de S. Paulo, quando vier a grande crise.

Um incidente de vida diária serve de ocasião à ampliação do quadro religioso constituído pelos Doze, e essa ampliação produz-se no sentido universalista, porque assim o quer o ímpeto evangélico.

Havendo-se elevado no grupo dos Helenistas uma queixa porque, dizem eles, suas viúvas são desprezadas nas distribuições cotidianas – e sem dúvida eles viam nisso uma parcialidade que lhes chocava o senso católico tanto e mais do que os seus interesses -,  os Doze lhes fizeram justiça sob forma a mais elevada e significativa. Estabelecem diáconos, para presidirem às particularidades da vida comum, e escolhem estes indiferentemente dos grupos. É marcar uma etapa na constituição da hierarquia. É, ao mesmo tempo, afastar-se do princípio de uma religião nacional.

Na pessoa de Estevão – e o caso de Estevão será em breve legião – o papel de diácono vai forrar-se do de teólogo e apologista. Assim, insensivelmente, por meios de vida, opera-se uma diferenciação; a árvore cresce.

Os Doze, muito explicitamente, reservam-se o testemunho; Estevão e seus semelhantes encarregar-se-ão de sistematizar e de concluir. Estes dois papéis subsistirão. Enquanto o Apóstolo ou o sucessor de Apóstolo – bispo, papa, representante da tradição apostólica tomada como tal – testemunha e diz: este é  o ensino de Cristo, o teólogo acrescenta: eis aqui, a meu juízo, o que dele se pode concluir, como se pode compreendê-lo, em que sistema de ideias se pode fazê-lo entrar; e o apologista diz: eis como se pode defendê-lo. É coisa inteiramente diversa. Dogma e teologia, dogma e apologia não se confundem.

Na época de que falamos, o dogma é chamado atestação. “Atestar”, ou “falar a palavra do Senhor”, é até então o papel dos Doze. Um pouco mais tarde, estabelecer-se-á entre os diáconos e os apóstolos uma dignidade intermediária: os Anciãos, ou Presbíteros, que terão voz deliberativa com os Doe e os ajudarão a reger o rebanho.

Nesse termo Presbítero, ou Ancião, de onde virá o termo sacerdote, acha-se inclusa uma filosofia. O sacerdote, na Igreja Católica, historicamente é o representante do passado; e é um ancião, ainda quando seja jovem, sendo, como é, o representante dos apóstolos e do Cristo histórico, cuja ação ele prossegue através do tempo. E, misticamente, é o representante não já somente da antiguidade cristã unida ao seu Cristo, mas do céu, quer dizer, da antiguidade absoluta, ou eternidade. Dessarte, ele é o ancião por excelência, o mais velho de todos.


Como se vê, a ampliação faz-se, mas a partir do centro, e sem nada tirar à ação do centro. É uma lei da vida que, quanto mais a diferenciação orgânica se amplia, tanto mais as funções centrais, em vez de cederem, assumem importância e mostram a sua necessidade. Pio XI* necessita de autoridade muito mais do que S. Pedro.

Aquilo que não vive esfarela-se ampliando-se; aquilo que vive concentra-se, porque então a diferenciação é obra de um princípio que procura revelar-se mais completamente, e não dissolver-se. Se a dissolução ameaçasse, logo um movimento de concentração enérgico, excessivo se preciso fosse – o excesso é melhor do que muito pouco quando se trata de viver – restabeleceria a unidade comprometida.

Em todas as épocas da história este duplo caráter aparece na vida da Igreja: larga expansão em todos os sentidos, e, de repente, horror quase medroso, ou cólera, ante toda novidade. Foi este o último caso que observamos sobre Pio X, por ocasião da crise modernista. Queriam ampliar a vida e o pensamento católicos num sentido de dissolução assinaladíssimo, hoje evidente aos olhos de toda crítica sincera. A autoridade central reagiu. É possível que a vaga em retorno tenha ido, em alguns, mas longe do que fora mister; mas agora o equilíbrio está reestabelecido, até nova crise.

No início em que estamos, o perigo é antes no outro sentido, e um modernista no sentido católico do termo, Paulo, é quem, sem se separar da autoridade dos Doze, pelo contrário, apoiando-se nela de maneira mais explícita, mas tirando-lhe o sentido humano, para além daquilo que ela até então compreendera da sua missão, imprime à nossa Igreja o surto mais decisivo que ela tenha recebido e seguido não somente nos primeiros tempos, mas, pode-se dizer, em todos os séculos.

Seja qual for a diligência que um humano possa fazer no curso de sua existência longa e acidentada, ele nunca fará uma semelhante à do dia do seu nascimento, quando, abandonando dolorosamente o meio interior em que vivia, corta as suas amarras e confia-se a uma natureza que ele ainda não sabe materna.

Muito tempo será ainda preciso para que a criança cesse de se volver para sua mãe em atitudes de naufrago, com gestos quase brutais, como se quisesse retornar às suas antigas condições de vida e fugir deste mundo, que a espanta, enquanto não a apaixona.

Esses gestos reencontram-se no nascimento da nossa Igreja. Paulo é o parteiro enérgico que clama o ar livre para a criança. Pedro é o pai que não somente consente, mas que quer e tem realissimamente a iniciativa, visto ser ele quem fala com autoridade. Tiago de Jerusalém, o “irmão do Senhor”, será o tio virtuoso, que por certo é benevolente para com a vida nova e para com os jovens doutores do progresso, mas cujo olhar é entretanto para o passado, como também as complacências. Quando Paulo vem a Jerusalém contar, com alegria, a difusão do Evangelho entre os Gentios, Tiago escuta e aplaude; mas, virando-se para o seu caro grupo de Judeus, acrescenta: “Bem vês, irmão, quantos milhares de judeus creram, e todos são zeladores da lei” (At XXI, 17-21).

O centurião Cornélio foi o primeiro Gentio a tornar-se cristão sem incorporação ao judaísmo. O relato dos Atos que narra a sua conversão e batismo é uma das pátinas mais tocantes e mais elevadas que se possam ler (At X). Ora, é Pedro quem o admite, tanto é verdade que na Igreja nada se faz sem a autoridade. Torna-se, porém, necessária uma visão para decidi-lo. Ele consente, com um espanto que só a sua admirável caridade consegue vencer: “Agora, diz ele, reconheço que Deus não faz acepção de pessoas; mas que em toda nação lhe é agradável aquele que o teme e pratica a justiça”. Era uma descoberta!

Por trás do centurião, via acaso Pedro a humanidade que corria para Cristo? E porventura o “duc in allum”, ao largo! Ao largo! Que Jesus um dia lhe diria, estaria alerta no seu coração? Sim, mas a sua vista fraca só captava desse futuro aquilo que dele era preciso para a ação imediata. Paulo, este, verá imediatamente largos horizontes; lançar-se-á a eles com uma paixão que fará dele o general do Verbo, “dux verbi” (At XIV, 11). A sua cultura, a um tempo judaica e um tanto helênica, as suas aptidões filosóficas, a sua experiência, o caráter impressionante da sua conversão, o fato de haver ele sido, no inicio, um perseguidor violento, dão-lhe uma grande força. Sua alma de fogo e suas graças eminentes farão o resto.

Em face das conversões pagãs, ele não dirá como que em tom de escusa o que Pedro disse à assembleia dos irmãos, ao voltar de Cesareia onde batizou Cornélio: “Podia eu opor-me a Deus?”. Mas sim, num entusiasmo cuja expressão perde aos nossos olhos a sua tonalidade brilhante, precisamente porque somos nós os beneficiários dela, exclamará: Eis que segundo Cristo não há mais nem Judeu nem Gentio, nem Grego nem bárbaro, nem mulher nem homem, nem escravo nem livre, porque não sois mais do que uma só pessoa em Cristo (Gl III, 28; Cl III, 11).

A gente não imagina quantas noções tais palavras subvertiam nos homens daquele tempo. Na cabeça deles, era todo mundo antigo que ruía. Isso se parece com o discurso daquele que viesse um dia dizer, talvez: Não há mais nem Franceses nem Alemães, nem Ingleses nem Russos, nem Japoneses nem Americanos, nem Italianos nem Tchecoslovacos; não sois mais do que uma só pessoa em humanidade.


A assembleia, de Jerusalém, onde sob a presidência de Pedro, por iniciativa de Paulo e com a alta autoridade moral de Tiago, se reúne o primeiro dos nossos concílios, consagra esta situação. Aí fica combinado que não se imporá aos cristãos o fardo da lei judaica, nem muito menos a circuncisão, sinal de incorporação política. Fato duplamente decisivo. Ressalta dele que o judaísmo é reconhecido forma transitória do movimento religioso autêntico, forma doravante ultrapassada: êxodo moral que lembra o de Abraão deixando o seu território caldeu. E, em segundo lugar, proclama-se que a religião definitiva, a de Jesus, é transcendente às organizações temporais, alheia às questões de raça, de nacionalidade, de sexo ou de condição, católica em suma.

A catolicidade de direito datava de Cristo, homem universal; datava dos profetas messiânicos; datava do berço da humanidade; mas a catolicidade oficialmente reconhecida data do concílio de Jerusalém. A partir desse dia, é operado o corte com o passado. Nascida da sinagoga, e parecendo fazer corpo com ela como a árvore com o rochedo cuja silhueta ela continua sobre o céu, a Igreja manifesta a sua autonomia; a árvore estende os galhos para que as aves do céu possam vir.

Vê-las-emos acorrerem em multidão. Mas, para que elas achem a sua vida e o seu abrigo debaixo da sombra, cumpre que os botões ainda fechados desabrochem em palmas verdes. Contemplemos um pouco essa primavera da nossa Igreja. Tudo nela é modesto como na humilde e potente alquimia do vergel; mas o ouro dos frutos está contido no chumbo resistente da terra; vê-lo-emos revelar-se em riquezas novas enquanto o sol do Espírito brilhar no nosso céu.

I

A decisão do concílio de Jerusalém parecia clara; era o realmente, porém os espíritos são sempre mais complicados do que as fórmulas. Expulsai o natural, e ele volta a galope. Expulsai um preconceito pela porta, e ele se introduz pela janela. O episódio moral que motivara a reunião e que parecia regulado completamente, reproduz-se pouco depois sob forma nova, sofrivelmente insidiosa.

Admitir-se-ão os pagãos à vida cristã sem se lhe imporem as observâncias judaicas: eis o que está convencionado. Vai-se, porém, colocá-los no mesmo pé que os outros? Em Jerusalém, o povo está habituado às categorias. Há os prosélitos da Porta que só transpõem o primeiro recinto do Átrio; os prosélitos da Justiça, naturalizados e incorporados; e, nos dois extremos, os Judeus autênticos e os Goim ou impuros estrangeiros. Não se poderiam fazer duas categorias de cristãos, os verdadeiros, os puros, isto é, os Judeus ou judaizantes circuncidados, e os outros, isto é, os Gentios convertidos mas não incorporados ao judaísmo?

A comunidade de Jerusalém não se presta muito a essa divisão, porque nela os Gentios são uma minoria inteiramente insignificante, pouco em condições de reclamar o seu direito, e sem dúvida não se capacitando da significação geral do seu caso. Mas a comunidade de Jerusalém enxameou depressa; os seus primeiros pregadores fizeram maravilha, e especialmente em Antioquia Paulo e Barnabé estabeleceram uma comunidade florescente, composta em grande parte de pagãos convertidos. Lá, o problema apresenta-se com toda clareza, como um problema social.

Ora, mui naturalmente os partidários da distinção em duas categorias propuseram que o seu sistema tivesse aplicação à refeição dos ágapes. O banquete fraternal comportará dois serviços: os dos Judeus ou cristãos de primeira linha; e o dos Gentios, cristãos de segunda zona.

Tendo vindo visitar a comunidade de Antioquia, Pedro deve tomar partido e figurar numa das mesas. Opta primeiro sabiamente, em conformidade com as suas próprias palavras no concílio. Mas, ante as reclamações dos seus compatriotas, cede. Paulo é forçado a intervir para obrigá-lo a pôr suas ações em harmonia com a sua doutrina. A ordem não deixa por isso de triunfar. A direção do futuro está tomada. Não se deixará dividir-se o corpo de Cristo. O símbolo da unidade, a Eucaristia, não se prestará a uma interpretação particularista. A senda judaica é decididamente abandonada, e, enveredando positivamente pela grande estrada humana, vai a Igreja poder organizar-se deveras, desenvolvendo aos poucos o que nela está latente.

Três direções paralelas impõem-se a esse desenvolvimento. A crença, o governo, o culto exigem uma expansão progressiva conforme às exigências aumentadas da vida nova. O tempo provê a isso com uma regularidade que trás constantemente ao espírito a mesma imagem: o ímpeto natural dos seres.

As crenças do inicio eram substancialmente o que são hoje. A nossa teoria do germe que contém na partida, tudo o que dele sairá – sem o conter, mas contendo-o entretanto, a saber, em potência de futuro, e não em ato explícito, - aplica-se a cada aspecto da vida católica tanto quanto ao conjunto.

O Símbolo dos Apóstolos, que não data dos apóstolos, mas que lhes exprime a crença tal como ressalta dos primeiros documentos, faz-nos ver que é que se vive então. Não insisto nisto. Porém muitas precisões sobre a natureza do Deus-Trino, sobre a pessoa e o papel de Cristo, sobre o plano religioso do mundo, sobre a própria Igreja, ainda estão por precisar.

A autoridade, que decide à medida que os casos se apresentam, como se vê nos Atos e nas Epístolas, como se verá mais tarde nos concílios, tão laboriosamente preparados, a autoridade, digo, instrui-se nas suas próprias decisões, como um grão inteligente se instruirá em se olhar crescer, só imperfeitamente sabendo o que ele traz em si mesmo. Por isso, mesmo ao olhar da autoridade, que é a cabeça mas que não é o corpo todo, há um desenvolvimento, uma instrução dogmática da Igreja.

Ademais, a superedificação, como se exprime S. Paulo (epoikodomé), isto é, a teologia, de que já falei, elabora suas teses, e algumas iluminam largamente os horizontes da fé. O próprio S. Paulo contribui para isso com um poder construtivo e uma penetração de que não há muitos exemplos.

Não posso entrar na minúcia das doutrinas, a qual nos arrastaria a longe demais. A história dos dogmas é um assunto denso, que aliás não é o nosso, visto estar entendido que nós salientamos o milagre, não narramos.

O que nos interessa é notar até que ponto, em semelhante matéria, eram fáceis os desvios. As heresias, isto é, as escolhas arbitrárias nas doutrinas correntes, ao invés da aceitação exclusiva daquilo que pode quadrar com o depósito revelado, seja por modo de identidade, seja como desenvolvimento natural ou legítima interpretação: tal é o perigo. Desde o início mostra-se ele temível. Muitos lhe sucumbem. Paulo repreende-os com sua virulência maternal, Pedro com gravidade, e João, acostumado às grandes imagens, fala das profundezas de Satanás, prestes a tragar os que não sabem manter-se nas alturas de Jesus Cristo.

Nem por isso deixam eles de dizer, uns e outros: “Convém que haja heresias” (I Co XI, 19). E, sem dúvida, na boca deles isso é a expressão de uma fatalidade; mas essa fatalidade é também uma providência. Reagindo contra a introdução de um corpo estranho, o organismo religioso toma consciência de si mesmo; reconhece os seus verdadeiros elementos, pessoas e coisas, e assim se afirma. Ademais, nunca sendo o erro mais do que uma verdade desviada rejeitando o agente que o utiliza, provando assim a um só tempo a universalidade de uma doutrina que não exclui senão o mal, e a sua unidade sob a forma de uma ideia vital.

Resta o perigo de intoxicação pela admissão irrefletida de germes mórbidos. Esse perigo é tanto maior quanto é rudimentar a organização da Igreja, e quanto uma grande liberdade individual se desenvolve nela. Os oradores, os inventores de noções têm nela uma influência fácil, e os abusos da inspiração pessoal correm o risco de pôr a conta do Espírito Santo as piores divagações.

Para remediar essa situação, mister se faz necessariamente reforçar a autoridade central. Por isso, são os mesmos os documentos que denunciam heresias e que nos mostram em flagrante os primeiros desenvolvimentos da hierarquia católica.

A hierarquia inicial,  já lhe enumeramos os elementos; encarnam-na os Doze com Pedro à frente; os diáconos prolongam-na; entre os dois, os Anciãos, ou Presbíteros, partilham-lhe as atribuições sob controle.

É para notar que essa organização, todavia tão rudimentar, nem sempre tem todos os seus efeitos. Pedro está longe de representar o papel disso a que chamamos o Papa; confunde-se as mais das vezes com os Doze, e nós salientamos esta expressão: Pedro e os Apóstolos, que frisa a um tempo o primado e a pouca diferenciação que ele adquiriu.

Mais tarde, o bispo de Roma não será também imediatamente o Primaz universal de hoje. Quase que é só no século III ou no IV que o primado papal é nitidamente diferenciado, e ainda aí se está muito longe da manifesta supremacia atual. “Quando o homem está numa idade muito tenra, diz graciosamente o P. Clérissae5, a voz é indistinta; porém, quanto mais o organismo se desenvolve e se robustece, tanto mais a voz se torna expressiva e assume o tom pessoal. É essa toda a razão e toda a história do exercício, progressivo mas, desde o início, formal e contínuo, da autoridade papal na Igreja”.

Da mesma maneira, no grupo primitivo os Doze não têm a situação disso a que hoje chamamos bispos. São ao mesmo tempo mais e menos do que bispos. Mais, porque o contato direto com o Senhor, cuja virtude eles conservam, lhes dá autoridade aos olhos de todos, e portanto estende o poder de cada um deles a todas as comunidades, em vez de ficar localizado, como hoje, numa Igreja particular. Menos, porque, sendo intensa a vida comum e pouco numerosos os problemas práticos, não se sente a necessidade de uma administração regular. A autoridade é discreta e as iniciativas muito grandes.

Num organismo social, quando a ideia vital em toda parte é ativa, realizando espontaneamente as finalidades que são a razão de ser dos órgãos diretivos, esses já não têm motivo para impor a sua especialidade. A autoridade perde por outro tanto a sua razão de ser, e isso vige na medida daquilo que o bem social exige ou ainda não exige. Numa aldeia em que toda a gente varre a frente da casa, não há necessidade de limpeza pública; mas esta é necessária numa grande cidade, porque os serviços de uma cidade excedem a competência e o poder dos particulares, ainda quando estes forem atentos como os outros ao bem comum. Assim, na Igreja, o desenvolvimento da autoridade segue o desenvolvimento do grupo e das crescentes necessidades do grupo.

Os bispos por excelência, os Doze, foram instruídos por Cristo; mas, uma vez ampliado o rebanho, mister se lhes torna um prolongamento de presença e de ação; vinda a morte, mister se lhes torna uma sucessão. O episcopado corresponde a essa necessidade. Episcopoi, isto é vigias a respeito da doutrina e da vida católica, os bispos, cuja instituição remonta à primeiríssima geração, são pois as testemunhas da dupla expansão da Igreja segundo o espaço e segundo o tempo.

Muito tempo será necessário para que as sés episcopais sejam estabelecidas na sua forma atual. Em certos lugares, o episcopado é exercido por vário, como por uma espécie de capítulo. Em muitos documentos, bispos, sacerdotes, apóstolos são termos que parecem confundidos. E sem dúvida é preciso discernir o que corre por conta da linguagem figurada, e também do que corre por conta dos termos coletivos, como quando dizemos os padres, para designar todo o clero de uma diocese, com o bispo à frente. Mas parece, mesmo, que  flutuação nas expressões corresponde a uma certa flutuação das realidades. Digo isto sob o ponto de vista administrativo.

Ademais, vestígios de episcopado unitário fazem-se reconhecer em toda parte, ainda quando fosse só sob a forma de uma presidência mais ou menos importante, esboço do claro primado espiritual que será mais tarde o nosso episcopado.

Naturalmente, os primeiros de todos os bispos são estabelecidos diretamente pelos Apóstolos. Na segunda fase, são estabelecidos pelos discípulos imediatos dos Apóstolos, como Tito e Timóteo. É sempre a lembrança do Senhor que reina; sente-se o contato dela por meio desses primeiríssimos elos da cadeia das graças.

Na geração seguinte, enfraquecendo-se as recordações pessoais, a coletividade entra em jogo. As nomeações são feitas pelos bispos da província que se acham mais próximos, geralmente três, “com o sufrágio do povo”, diz S. Clemente, quer dizer, sem dúvida, um voto consultivo. Todavia, quando o povo inspira pouca confiança e se trata justamente de reconduzi-lo por uma boa escolha, prescinde-se dele: a prova de que a constituição da Igreja nos seus primórdios não é democrática, como por vezes se tem pretendido.

Desde o primeiro concílio geral (Niceia, 325), a eleição do bispo deve ser confirmada pelo metropolita; isto é, por uma autoridade central tornada nitidamente preponderante em seu domínio. Muito mais tarde, enfim, estando a centralização concluída e todos os órgãos da Igreja diferenciados, o poder de confirmação passará à Santa Sé, e o povo será excluído da eleição, por causa do caráter político que o seu voto assume, quando o sopro religioso dos primeiros tempos está acalmado.


Tal é o ponto de partida da hierarquia, tal o da doutrina. Quanto ao culto, vemo-lo começar e orientar-se segundo as mesmas leis. Nos primeiros dias, copia-se a sinagoga. Jesus praticara-lhe os ritos. Instituiu outros; mas do passado ao futuro, a transição deve ser natural, isto é, insensível.

As pessoas reúnem-se, pois, à maneira judia, particularmente no dia de sábado. Reza-se em comum; lê-se a Sagrada Escritura; participa-se dos ágapes, refeição frugal que tem lugar à noite, como na véspera da morte do Senhor, e que termina também pela eucaristia. Enfim, eles vivem juntos uma vida mística capaz de nos parecer hoje muito extraordinária, mas que o fervor do estado nascente faz então achar mui natural. Isso a que chamamos os carismas, ou dons do Espírito Santo, como o dom de profecia, de cura, o discurso de sabedoria ou de interpretação, etc., são manifestações correntes.

Insinuam-se nisso muitos abusos, como se pode ver pelas admoestações dos Apóstolos e pelas precauções com que eles cercam essas escapulas do sentimento religioso interior. Porém as almas haurem aí grandes recursos: alimentam a sua fé e inflamam o seu entusiasmo, efeitos bem necessários para resistir à invasão do mundo pagão e à ameaça permanente do martírio.

Quando a Igreja cresce, essas maneiras de viver, essencialmente intimas, dissipam-se pouco a pouco. No século II, elas ainda são correntes, como o testemunha Irineu o filósofo. No século III, rareiam; no IV, já não passam de uma reminiscência; declara-o Eusébio. A regularidade social sucede às espontaneidades transbordantes, e, se o Espírito não se revela menos, fá-lo de maneira menos exterior. Os dons cedem um pouco às virtudes, e os carismas à caridade.

Mesmo quanto à Eucaristia, os abusos e as dificuldades práticas levarão a reduzir, e depois a suprimir, os ágapes preparatórios. Se conservará somente o essencial: a consagração do pão e do vinho e o seu uso sacramental, até que mais tarde as mesmas considerações induzam a suprimir a participação no cálice.

As reuniões fazem-se primeiro em casas particulares, especialmente em câmaras altas, grandes peças do andar superior de que já falei. Só mais tarde haverá igrejas, e este termo, aliás, só a partir do século III será empregado para designar edifícios do culto.

No início, havia interesse religioso em que o culto não tivesse local oficial, a fim de bem lhe assinalar a interioridade, por oposição ao culto judeu que não podia passar sem o Templo. Nossos templos, os nossos, são símbolos e servos, dissemos; nós não somos escravos deles.

O pequeno rebanho constituído por cada grupo de fiéis mantém-se, pois, unido em torno do báculo apostólico. Eles se reúnem à noite, em lembrança da Ceia do Cenáculo, mas sem dúvida também em razão das ocupações do dia. Ademais, a noite é favorável aos surtos místicos, e as nossas primeiras comunidades são costumeiras neles.

A sua reunião prolonga-se, não raro, pela noite. A do sábado, ou “sabbat”, é seguida de uma liturgia que tem lugar pela manhã. É assim que se estabelece a passagem do sábado para o domingo, que muito cedo se torna o dia do Senhor.

Do mesmo modo, a Páscoa judia transforma-se em comemoração da Paixão e da Ressurreição de Jesus, com o simples inconveniente de acarretar discussões, por causa da divergência das datas.

Finalmente, o centro de atração religiosa dos cristãos, como dos Judeus, é primeiramente Jerusalém. Mas já que diferença! Para os Judeus, Jerusalém era o Templo; para os cristãos, é sobretudo o Calvário e a Câmara alta. Os Judeus sentiam-se ligados ao Sinédrio; os cristãos à comunidade dos Apóstolos, onde Pedro exerce o primado, onde as inspirações místicas parecem vir sobretudo de Tiago, o Irmão do Senhor.

Esse centro cedo se deslocará. A mãe não retém sempre o filho. Tendo conquistado a sua autonomia, a Igreja assinalará essa autonomia por um estabelecimento que deixará a Jerusalém o simples papel de antepassado. Roma propõe-se para recolher a sucessão do Oriente, como o zênite o sol liberto das brumas matinais.

E, para provar que aqui é realmente uma Providência que vela, a ruína de Jerusalém e a dispersão da sua comunidade ocorrem justamente no momento em que Roma tem tudo o que é de mister para lhe recorrer a herança, tudo, inclusive uma auréola de mártir em torno de uma tiara sangrenta. É em 66 que principia a crise de Jerusalém; é em 64 que a cabeça, virada para baixo, do apóstolo Pedro deixa cair a tríplice coroa que deve brilhar na fronte dos seus sucessores.


***


Tal é, largamente indicada, a curva que toma a sua partida a evolução secular da Igreja.  A continuação não fará senão revelar o melhor a direção imposta por um Pensamento senhor dos acontecimentos e dos homens, mas que dispõe deles suavemente, como diz a Escritura, posto que se estenda fortemente de uma extremidade à outra (Sabedoria VIII, 1).

Vida da Igreja, precisamente por ser uma vida, não procede de fora, mas de dentro. O Espírito de a dirige não lhe é exterior; vive nela, e é o mesmo que é imanente à história universal e à natureza total. Nada de admirar que tudo isso se encontre em sínteses harmoniosas e progressivas.

O vivente “Igreja” cresce sozinho. Cresce lentamente, com a colaboração de todo o seu meio, como o dizíamos do germe, ao qual o próprio Evangelho o compara (Mc IV, 31).

Não se lhe pode fazer disso uma objeção, como se a Igreja fosse uma obra de acaso. Este ponto de vista racionalista é tão estreito quanto o ponto de vista materialista, que só quer ver no nascimento de um animal um mero encontro de átomos, sob pretexto de que isso se faz sozinho, sem que ninguém vá dispor os membros no seio da mãe.

O próprio fato de realizar-se isso sozinho, deve-se concluir que há aí um princípio interno. Assim também, a fabricação da Igreja por si mesma com a colaboração do meio, é a prova de que a Igreja tem por princípio interno o Espírito de seu Cristo permanecido ativo nela. E é este o milagre.

O princípio vital chamado alma só pode revelar-se por tal organismo possuidor de tais caracteres: é por isso que ele se dá esses caracteres. Assim também, o Espírito divino comunicado aos homens por Jesus só pode manifestar-se na e pela Igreja tal como ela é, e ele o prova dando-a a si próprio, fabricando-a para si peça por peça, com movimento contínuo, sem nenhum plano definido antecipadamente em qualquer dos humanos que dela participam, e, no entanto, de tal sorte que no fim o resultado se mostre adequado à intenção inicial, o corpo adequado à alma, o meio ao fim, a rede universal à pesca universal que o Salvador propõe.

Para exprimir o caráter vivo, auto-evolutivo, e no entanto transcendente da nossa Igreja, reconhecendo que ela pode formar-se sozinha, após assente que ela traz a Deus em si, poder-se-ia utilizar com o esplendor a palavra familiar de La Fontaine:

Petit Poisson deviendra grand,
Pourvu que Dieu lui prête vie.
(O peixinho virá a ser grande
Desde que Deus lhe empreste a vida)

* Referência à época do aparecimento do livro.
5 – Le Mystere de L’Église, p. 73, Pierre Téqui editor.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

O nascimento da Igreja - A. D. Sertillanges

A Igreja, em Deus, é eterna – primeiro pensamento incluso no Verbo que será um dia o seu chefe, primeiro amor no Espírito que um dia lhe será a alma.

Em Cristo, o homem universal, a Igreja é também universal e, por conseguinte, onitemporal. Mas essa existência que atravessa todos os tempos não se manifesta nelas sempre da mesma maneira. Há um centro de atração que faz convergir os seus diversos estados para isso a que, com S. Paulo, chamamos de plenitude dos tempos, a saber, a vida histórica de Cristo, distinta da sua vida intemporal ou de influência.

Antes do seu nascimento, preparava-se e esperava-se o Cristo; depois, a humanidade vive dEle e desenvolve-lhe a obra. Assim com a vida religiosa, hoje em dia, não seria o que é se Cristo não tivesse vindo, assim também a vida religiosa dos séculos antecristãos não teria sido o que foi se Cristo não devesse ter vindo. E, enfim, já que tudo se subordina a essa obra, pode-se dizer que Cristo criou a história tanto para o passado como para o futuro. Sucede como se “no oceano das idades” – como teria dito o nosso Lamartine, - houvesse caído um imenso rochedo. A ondulação prossegue nos dois sentidos, e todo o mar vibra, sob a luz repercutida pelos milhões de espelhos que são as consciências dos homens.

Tal é o ponto de vista que desenvolvíamos no capítulo precedente, e que nunca se deve esquecer quando se trata da Igreja. O cristão individual tem toda razão de se lembrar disso, pois também é homem de todos os tempos, enraizado no Antigo Testamento, desabrochado no Novo, homem de hoje, de ontem e de amanhã, pelo simples fato de ser da Igreja.

Deixando agora de lado os efeitos retroativos da vinda de Cristo, temos de lhe estudar os efeitos imediatos, enquanto aguardamos os seus efeitos ulteriores.

Esta maneira de exprimir-nos mostra em que sentido se deve tomar o nosso título “O nascimento da Igreja”. Não se trata de um começo absoluto, como se, antes, a Igreja absolutamente não houvesse existido. De certa maneira, ela existia em alma e em corpo. Em alma, visto como o Espírito, que lhe faz todo o valor, trabalhava; em corpo, visto como o embrião judaico, concedido ao banho nutritivo das civilizações religiosas ou seculares do mundo antigo, era bem autenticamente o seu corpo antecipado.

Não era isso uma razão para que a Igreja não tivesse de nascer. Nós também nascemos depois de termos vivido no seio de nossas mães e fincado as nossas origens no coração das gerações.

Cristo, dado ao homem por uma vontade eterna, vontade que tivera consequências espirituais desde sempre, e mesmo, não me posso cansar de repeti-lo, consequências históricas, o próprio Cristo, digo, desta vez ia revestir a existência histórica, surgir das suas preparações e encetar o futuro.


Foi em Belém, numa manjedoura de ruminantes, sob um abrigo de natureza em pleno céu, em face de uma planície constelada de humildes fogos, porém dominada por aqueles outros fogos que Abraão contemplava como símbolos de sua raça, foi aí que, premido pelo amor, propondo-o Deus e aceitando- o homem na pessoa de uma pureza e de uma humanidade todo-poderosas, foi aí que o fruto maduro da história aí irrompeu. O grão do futuro, a esperança alimentada pelos séculos lá estava, sob a forma de uma criança que uma mãe, fecunda por obra do Espírito universal, amamentava.

Esse seio de virgem não era porventura a figura da humanidade em trabalho, elaborando uma comida que o Cristo coletivo, a Igreja, absorveria em breve, para crescer? Enquanto isso, o minúsculo Filho do Homem vivia dessa comida, ele primeiro de seus irmãos, diz o Apóstolo, primeiro a ser nutrido da medula do passado, humanidade nova e antiga por ele só, a título de Filho do Homem, a título de segundo Adão, mas trazendo em si o que podia renovar, já que criara, trazendo em si a plenitude da própria divindade.

Por toda parte a humanidade procurava outrora o seu Deus: nesse dia, se seus olhos pudessem ter-se aberto, ela o teria contemplado em si mesma. Esse Deus, que a envolvia desde sempre de uma influência ativa, mas parcial ainda e pouquíssimo reconhecida, furara um ponto “a parede” (Ezequiel, VIII, 8); irrompera a massa humana e, pela deificação pessoal de um de nós, começava a operar a deificação coletiva.

Os potentados da antiguidade, quer se chamassem Ptolomeu, Antíoco, Augusto ou mesmo Nero, viam anunciar e saudar o nascimento deles como o inicio de uma idade áurea, como o penhor de uma felicidade a vir sobre a terra. Aqui, a verdade substitui-se às ficções, e a idade de ouro eterna, definida pela síntese de Deus e do homem na religião autêntica, acaba de achar o seu instrumento substancial. Jesus será o ponto de ligação, o elo intermediário, semi-humano, semi-divino, que unirá o que se trata de unir. Como repreender-se-á que ele diga em seguida: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João, XIV, 6), e reciprocamente: “Ninguém pode vir a mim se meu Pai não o atrair” (João VI, 44).

O nascimento da Igreja será, pois, de certo modo, o nascimento de Cristo, visto haver identidade solidária entre o grupo organizado e Aquele que é estabelecido espiritualmente chefe de raça. “O Estado sou eu”, dizia Luiz XIV; com mais verdade poderá Cristo dizer: a Igreja sou eu; não entendendo isto da sua humanidade individual, mas de todo o corpo de que a sua humanidade é a cabeça.

Mister se fará apenas que esse corpo de Cristo, como efetivamente lhe chama São Paulo, esse Cristo desabrochado em grupo, socializado, ache suas condições definitivas. Até então ele vivia em estado difuso no paganismo e em estado embrionário no judaísmo: tratar-se-á, como dirá mais tarde S. João, de congregar em um os filhos  de Deus dispersos (João, XI, 52).

Repito, havia filhos de Deus em toda parte. As Igrejas nacionais ou domésticas ofereciam-lhes abrigos provisórios; a sinagoga fornecia-lhes uma representação e um ponto de concentração, oficial desta vez, mas insuficiente, porque unia mal; unia só pouca gente e em condições que não eram exclusivamente religiosas, já que era preciso filiar-se ao povo, por uma espécie de naturalização, para se filiar ao culto. Derrubar esse templo para substituí-lo pelos domínios do Espírito de que o templo cristão será o servo e o símbolo, eis a obra.

“Vem a hora, diz o Salvador à Samaritana, em que não será nem sobre esta montanha nem em Jerusalém que adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos Judeus. Mas vem a hora, já veio, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (João, IV, 21-25). Achamos aí, em três tintas justapostas, todo o mapa religioso do mundo: a religião dos pagãos, em que se erguem templos de ocasião, adoradores daquilo que ignoram (o Deus ignoto de S. Paulo); a região judaica, onde o edifício salomônico abre suas portas ao verdadeiro Deus, mas fecha seus muros ao mundo; finalmente a região cristã, onde o templo aberto ao espiritual, às dimensões do universo, já não passará, materialmente, de um símbolo e de um auxílio.

Compreende-o a arte cristã quando, na medida do possível, sintetiza no templo cristão ideal, que é a Catedral, a criação em todos os seus domínios. O templo eucarístico é tanto mais templo quando melhor se parece com esse cosmos divino em que toda criatura unida a Cristo adora em espírito e em verdade.

Vem a hora, diz o nosso texto e já veio. Que quer isso dizer? Quer dizer que, estando lá Cristo, já veio, nele, a hora de tudo o que deve ser. Essa hora veio desde Belém. Vem, entretanto, porque essa existência de Cristo, que inclui em si a obra universal, ainda não se tornou uma ação e não está coroada pelo dom supremo.

Eis, porém, que Belém restitui a Nazaré o seu tesouro. Tendo-o visto crescer em sabedoria e em idade diante de Deus e diante dos homens (Lucas, II, 52), Nazaré passá-lo-á a Cafarnaum, a Betsaida, a Tiberíades e às outras cidades galileias. A Galileia, infiel, cedê-lo-á a Jerusalém, que o crucificará fora dos muros, como que para simbolizar a universalidade do seu sacrifício. Enquanto isso, a vida oculta desenrola-se, porque convém que a obra individual de Cristo se prepare no silêncio e na obscura meditação, como a obra coletiva que ele enceta na noite dos séculos.

Daí, tal como das profundezas do silêncio noturno se lança pela manhã o sol, o “noivo eterno” da humanidade deixará a sombra nupcial para correr a sua carreira.

Como sempre, ele começa pela provação. Hércules entre o vício e a virtude é símbolo universal. Isento de toda tendência para o mal, Jesus nem por isso deixa de ser sujeito, como todos, aos assaltos do mal. O mal, para ele Cristo, seria esquecer-se de que é Cristo, isto é, homem de todos, e trabalhar para si mesmo. “Faze que estas pedras virem pães”: atira-te do alto do templo, e apare-te o teu Deus; conquista, visando uma realeza pessoal: tal é a tentação de Cristo.

Mas não! O homem do Reino de Deus, que é universal, deve guardar para obra universal o poder que dispõe. O homem do Reino de Deus, que consiste em se unir a Deus, deve consultar a Providência, em vez de lhe impor seus caprichos. O homem do Reino de Deus, que é interior, não deve comportar-se como conquistador, como se o Reino fosse deste mundo. O Reino é neste mundo que lhe impõe as suas condições; é neste mundo como no outro, na terra como no céu, visto que orienta o destino total; mas não é deste mundo, não detendo suas ambições sobre os objetos das nossas preocupações temporais e excluindo o mal.

Após essa tríplice prova simbólica, o tentador é enxotado com a tentação, e a natureza do reino de Deus na terra, tal como deverá realizá-lo a Igreja, é fixada. Jesus vai pregá-lo. O seu batismo à beira do Jordão é que lhe dá a sua consagração de pregador.

Escutai-o, diz a Voz, e sinais visíveis oferecem como que o aparato de uma sagração. Ele foi sagrado pelo Espírito Santo e pela virtude de Deus diz São Pedro (Atos, X, 38). Essa virtude revela-se nas pregações de dois anos e meio, mal três, num minúsculo teatro, ao qual se têm emprestado encantos assaz incertos.

Tem-se sonhado muito sobre essa Galileia que não ousa mais viver, que se consola de haver perdido o seu Deus rolando sobre as rochas onde ele pregava ondas de verdura, e retraçando com loureiro em flor o sulco da sua barca que ia de margem em margem. Mui diversa foi, porém, a realidade no tempo de Jesus. A pregação do “rabi nazareno” não é a pastoral que Renan descreveu; é um labor áspero, numa áspera terra, no meio de campônios secos, supersticiosos, violentos, que após um momento de entusiasmo querem precipitar o seu profeta do alto de um rochedo, depois fazê-lo rei, depois fazê-lo seu provedor, depois, que sei? E que acabam por obrigá-lo a ir-se embora com um adeus de maldição.

Não importa. Sabemos que a literalidade dos acontecimentos tem na vida de Jesus uma importância imensa, mas no final das contas secundária. Essa vida é um símbolo, símbolo real e ativo, sacramento cujo alcance excede infinitamente o alcance dos fatos materiais em que se apoia. O Sermão da Montanha sem dúvida é pronunciado perante algumas centenas de pessoas: nem por isso deixa de se dirigir ao universo, e é por este ouvido. A semente lançada sobre os rochedos acha logo de início algumas fendas onde germinar, e o resto ressalta para ir fecundar a terra.

É notável que Jesus não tenha procurado sair de seu pequeno país. Confinou-se num espaço que se atravessa em dois dias de marcha. Seus primos lhe diziam: Se fazes tais coisas, mostra-te ao mundo! (João, VII, 4). Era o clamor da evidência. Mas ele não escutava nada dessa pretensa sabedoria. Abordava o universo por um ponto, sabendo que o fluido divino saberia passar desse ponto a todos os outros.

O mundo não é assim tão grande. O verdadeiro obstáculo à ação moral não são as distâncias. Um mínimo de tempo e de espaço basta ao Salvador para conquistar o tempo e o espaço em toda a sua amplitude. Um ponto que se move com velocidade infinita ocupa a imensidade, observa Pascal: é o caso de Cristo exercendo a sua atividade celeste. Um ponto segundo a extensão, a imensidade como zona de influência.

Os homens tratam de durar e estendem-se o mais possível, porque têm apenas os seus dias medidos e a sua estatura para se igualarem à sua obra: Cristo dispõe da estatura de Deus e da duração de Deus: não necessita estender-se. Ele é, e isto basta; ele diz, e sua palavra acha o seu caminho por si mesma. A sua vida histórica está para com a sua vida segundo o espírito em mera proporção infinitesimal. Galileu e pregador de três anos, é o bastante; todo o plano religioso universal tem aí suas ligações.

O Mestre prega pois, e o que ele diz é a Boa Nova, assinalando a ideia central da sua obra.

A essência do cristianismo, sobre ela muito se há dissertado; não é sem razão, conquanto seja às vezes de maneira a mais desarrazoada. Está aí, com efeito, o tudo da Igreja, visto ser a sua ideia vital. A ideia vital é o tudo de um vivente; é a lei de toda a sua atividade; a não ser o caso de desvio acidental, ela torna a achar-se em tudo o que ele faz como em tudo o que ele é; é a sua “alma”. Isso a que chamamos alma, esse princípio interior da nossa unidade e da nossa orientação ativa, outra coisa não é senão uma ideia, real e substancial, ideia, dirá Claude Bernard, diretiva de todas as manifestações da vida.

Na Igreja, segundo a teologia católica, alma é o Espírito Santo. Mas ainda assim cumpre saber sob que forma o Espírito Santo entende de se dar a nós na Igreja. Não sucede com essa alma, alma universal e transcendente a todas as coisas, como sucede com uma alma individual, que se proporciona exatamente àquilo que ela move. O Espírito Santo nos excede e acha em nós um mero domínio parcial. Demais, se ele nos penetra, é sem nos absorver, ao passo que a alma individual absorve na unidade de uma substância indivisa aquilo que ela anima. Resta, pois, a questão de saber o que é que o Espírito divino quer de todos nós, constituídos em Igreja, e o que é que nos traz. É isso, propriamente, o Evangelho.

O Evangelho, a Boa Nova, é assim chamada a priori, porque um desígnio divino é, por essência e inevitavelmente, um desígnio de amor. A não ser que o homem o estrague! Mas trata0se aqui do desígnio primeiro, e a este nível, não intervindo nenhuma defecção, o amor e a felicidade só se separam se, entre os dois, desfalecesse o poder.

E qual é a boa nova anunciada? É que o homem, desde sempre, foi chamado à intimidade divina; que esse desígnio, longamente desconhecido, vai ser reatado e acha seu cumprimento decisivo na pessoa de Cristo “princípio” e “pedra de ângulo”, “caminho, verdade e vida” (Cf. João VIII, 25; Mt, XXI, 42; João, XIX, 6). Trata-se, pois, ao mesmo tempo, de uma intenção divina e de um fato divino; trata-se, em consequência, de uma ação, de uma lei, de um sistema de meios, e, necessariamente, de um ambiente apropriado à fecundidade do fato, à aplicação da lei, à utilização dos meios, à realização da intenção inicial.

No tempo, o advento de Jesus abre a fase definitiva do reino de Deus; o seu segundo advento deve encerrá-lo, julgar-lhe os efeitos e eternizar-lhe os fins.

Jesus traz o levedo que fará fermentar a massa humana; cultiva um campo onde brotará também joio; lança uma rede que apanhará peixes bons e maus, enquanto não vem a separação. E isto quer dizer que ele se propõe, e poupa as liberdades.

Quanto ao essencial, a saber, espiritualmente – pois Deus é Espírito e suas obras são, antes Ed tudo, obras de espírito -, o reino de Deus está em nós desde que nos demos a Deus e à obra de Deus sem restrição pecaminosa. Historicamente, visivelmente, o reino de Deus será estabelecido desde essa primeira geração (Mt XXIV, 34), porquanto o grão será semeado, Cristo provado, a sociedade fundada, o Espírito difundido e os sinais fornecidos: ressurreição de Jesus, ruína de Jerusalém e abolição do antigo reino provisório.

Para entrar no reino, o que antes de tudo é necessário, por oposição ao judaísmo carnal, são as disposições do coração. Importa primeiro compreender-se a si mesmo, ter consciência da sua natureza real e completa. “Reconhece, ó cristão, a tua dignidade”, dirão os nossos Padres. Em seguida, é preciso rematar-se, seja como indivíduo, seja como grupo. Enfim e desde o inicio, a fim de se compreender deveras e de se realizar plenamente, o homem é chamado a ultrapassar-se para entrar em sociedade intima com o Pai, o Filho e o Espírito.

Compreender-nos é sabermos que, nascendo na terra, somos um ser de essência celeste: homo coelestis (I Co XV, 47); que, sujeito ao tempo, somos um ser de eternidade.

Realizar-se, rematar-se, é, como indivíduo, dirigir o seu desenvolvimento no sentido daquilo que faz alcançar o seu fim, e, já que somos celestes, desenvolver em nós o celeste; já que somos feitos para a eternidade, preparar em nós a eternidade, preferindo a todos os valor que perecem no tempo os valores eternos: Homens carnais, não busqueis o pão que perece, mas o pão que fica para a vida eterna (Jo VI, 27). E, como grupo, realizar-se é elevar-se até à consciência da sua unidade e tirar daí as consequências: amor mútuo, amor organizado, justiça fraterna que superabunde em relação à justiça dos pagãos e em relação à pretensa fraternidade, que não passa de uma coesão dos nossos pós. Pai, que eles sejam um como nós. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, sejam eles também um em nós. (Jo XVII, 11, 21).

Enfim, ultrapassar-se, por uma vida em comum com seu Princípio, é aceitar a graça e merecer-lhe o crescimento. Se alguém me ama, meu Pai também o amará, e nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada (Jo XIV, 23). Porém primeiro, se vós me amais, observai meus mandamentos (Jo XIV, 15). E por isto sobretudo, por isto essencialmente, se reconhecerá que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (Jo XIII, 35).

Essa habitação misteriosa do divino em nós, juntos, esse renascimento em Deus de todo o grupo humano, é que prepara e permite a ascensão inaudita de um pequeno ser ao contato imediato do seu Princípio, e essas sublimes intuições que são o fundo da vida celeste prometida. “A vida eterna é que eles te conheçam, a ti único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste” (Jo XVII, 3).


Mostrar tudo isso, em minúcia, nas palavras de Jesus – sentenças, discursos ou parábolas -, não temos que vagar para tanto; mas, pelos nossos apóstolos, pelos nossos Padres e pelos nossos teólogos, sabemos que nelas se acha a substância disso³.

Dissemos que o passado tinha feito prevê-lo e olhe preparara o desabrochar: por isso Jesus se refere muitas vezes ao passado, embora assinalando as diferenças. Faz ressaltar o que há de bom nos meios pagãos, exaltando o publicano virtuoso e o Samaritano caridoso. Abstém-se de condenar a lei, dizendo que vem apenas aperfeiçoá-la. Superior a Moisés, nem por isso deixa de lhe ser o continuador, e, se pode levá-lo mais longe, é que o coração duro dos homens foi amolecido lentamente pela penosa experiência da sua impotência. Agora, o progresso vai declarar-se. O que o mundo pagão autorizava, Jesus condena; o que Moisés concedia à dureza dos corações, Cristo recusa-o.

A ação divina no mundo é de uma continuidade que a sua matéria condiciona e perturba frequentemente, mas que tende a subir. Já que hoje os tempos estão maduros pra uma transformação profunda, cumpre organizar os méis desta. Faz-se mister uma alma nova aos humanos, ei-la: O Espírito do Evangelho. Mas, para que essa alma trabalhe, é preciso, como dissemos, que organize para si um corpo. Sucedendo ao corpo plasmático das antigas organizações, ao corpo embrionário constituído pela sinagoga, torna-se necessário agora um corpo religioso que corresponda à idade perfeita das revelações, à vida plena da grande obra. É esse corpo que vamos ver brotar sob a ação humilde, harmoniosa e pejada de imenso porvir que devemos agora contemplar.

II

Quando se diz que Jesus Cristo fundou a Igreja, há quem peça para ver, no tempo dele, um grupo religioso semelhante ao nosso, diferindo apenas pela amplitude. Teremos de dizer até que ponto, filosoficamente, essa concepção é falsa. A Igreja, nos seus primórdios, tem apenas delineamentos; porém faz-no-los vez no próprio dia em que a ideia nova vital é lançada na sua matéria consciente.

Jesus faz-se reconhecer; fala, e a sua influência, que é uma lei de vida, apossa-se da matéria ambiente na medida em que essa matéria está preparada para recebê-lo. “Vem!” diz ele, e a pessoa vem (Mt VIII, 9; Mc X, 21; Jo I, 46). Ou mesmo, como no caso de Madalena, de Nicodemos, nada havendo ele pedido, acorre-se, reconhecendo nele o ideal que se procurava. Assim as substâncias que o turbilhão vital arrasta colocam-se sob a lei da alma.

A alma espiritual introduzida no mundo por Jesus vai assim, por atração, por conaturalidade, constituir para si um corpo. Ninguém vem a mim, dizia o Salvador, se meu pai não o atrair. Que é essa atração do Pai, se não é Deus vivo nas almas sob a forma de um apetite sobrenatural que ele provoca, e que em seguida saberá satisfazer, quando essas almas tiverem reconhecido em Cristo o meio de realizarem o que procuravam?

Essa atração interior constitui rapidamente a Jesus um grupo de aderentes, homens e mulheres, em número bastante grande, entre os quais emergem e se distinguem, nomeadamente escolhidos, setenta ou setenta e dois discípulos. Digo nomeadamente, embora nenhum catálogo autêntico nos tenha chegado; mas a cifra setenta (ou setenta e dois segundo os manuscritos) é dada por Lucas (X, 1), e alguns nomes sobreviveram, como Barnabé ou Sóstenes.

Um terceiro grupo mais restrito e especialmente eleito será o dos Doze, entre os quais Pedro, Tiago e João parecem formar ainda uma seleção. Enfim, Pedro revela-se como o chefe, o centro de unidade para o futuro, quando o centro eterno, Cristo, se tornar invisível.

Ora, Jesus toma bem cuidado de dizer aos que terão um papel no Estado espiritual por ele construído, que Ele os escolhe, e não apenas os recebe por uma espécie de acessão passiva (João XV, 16). Assinala assim a sua intenção, que é de lhes conferir um poder social. Intenção que aliás se revela em múltiplas palavras assaz conhecidas, palavras que não deixam dúvidas senão aos que dúvidas procuram.

E que a sociedade que ele assim funda não seja uma sociedade particular, porém a cidade universal das almas, é o que já assinala simbolicamente essa cifra doze, que corresponde às doze tribos, isto é, à humanidade religiosa provisória, ao novo Israel, à Igreja incoativa de que falamos, e também a cifra setenta, ou setenta e dois, que correspondia, segundo a tradição judaica, ao número das nações da terra, a que o Evangelho concerne. O próprio Jesus faz ressaltar esse simbolismo, prometendo aos Doze uma glória que ele figura por doze tronos, julgando as doze tribos de Israel (Mt XIX, 28). Julgar as doze tribos de Israel no fim dos tempos, é julgar o mundo, havendo-se este, graças à Igreja universal saída da sinagoga, tornado o prolongamento religioso de Israel.

Mil vezes tem-se feito notar que esses fundamentos da obra cristã, os apóstolos, não são uns letrados, uns filósofos, ou pessoas importantes nos seus grupos; são pessoas de pouca importância. Não que haja nisso o menor exclusivismo democrático; o Evangelho não é propriedade dos pequenos mais do que dos grandes; não se deixará que ele seja açambarcado por ninguém; mas, se – pelo espírito ou pela situação – devem os grandes ser mais tarde incorporados ao organismo constituído, é útil que eles próprios não sejam constituintes, para não parecerem usurpar o papel assimilador que pertence à ideia vital.

O estabelecimento da Igreja toma assim o seu ponto de partida. Simples lineamentos, mas com um espírito ativo e com centros de ação organizadora, que já se coordenam numa espécie de encéfalo, na pessoa de Pedro. É o embrião no inicio do desenvolvimento. Jesus experimenta-lhe, por assim dizer, a vitalidade e convida-o a tomar por si mesmo a consciência dela, confiando aos Doze, até aqui instruídos pouco a pouco, missões que servirão de prelúdio à conquista do mundo. Que isso esteja prenhe de todas as realizações e de todas as organizações ulteriores, fá-lo Jesus ver, e assinala simultaneamente a unidade, a significação transcendente e o futuro da sua obra numa circunstância que figura entre as mais solenes da história cristã.

Era em Cesareia de Filipe. Julgando chegada a hora de se declarar completamente, Jesus pergunta de repente aos Doze, depois de fingir interrogá-los sobre o estado da opinião pública no tocante à sua pessoa: E vós, quem dizeis que eu sou? A esta pergunta inopinada, é Pedro quem se levanta e quem, com o entusiasmo pronto que está na sua índole, mas, quanto ao fundo, inspirado de mais alto, exclama: Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo.

Feliz és tu, declara-lhe o Salvador, feliz és tu, Simão Bar-Jona! – e lhe declina os seus nomes de homem para convidá-lo a compreender que o que se passou nele não é do homem. – Não foram a carne nem o sangue, quer dizer, a educação doméstica ou a intuição humana, ainda quando trabalhasse sobre os dados que lhe fornece o espetáculo de uma vida divina, não foram a carne nem o sangue que te revelaram estas coisas, porém meu Pai que está nos céus. É preciso a intervenção dos céus para a palavra de fé tal como ela vem à autoridade em vista do grupo. Porquanto foi em vista do grupo, e como que já em seu nome, que Simão falou inspirado do alto.

Logo lho declara Jesus, e sua réplica é ao mesmo tempo uma espécie de recompensa pessoal e de definição da Igreja: E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Falar assim não é fundar a Igreja num trocadilho, como levianamente disseram alguns; é dar o seu emprego natural a um nome simbólico atribuído desde o início a Simão, conforme o costume judeu, quando Jesus lhe disse, escolhendo-o: Tu que te chamas Simão filho de Jonas, chamar-te-ás Kephas, quer dizer, Pedro, ou Rochedo (Jo II, 42).

Portanto: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. A ideia de uma construção regular e durável é aqui nitidamente afirmada. Não se trata de uma assembleia de acaso, formada de próximo em próximo, mas de uma obra fundada que subsiste. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela. As portas do inferno, quer dizer, as potências da morte, que triunfam de tudo o que é humano, que se fecham, indiferentes e fatais, sobre tudo o que a natureza ou o homem sós põem a lume; quer dizer, ainda, as potências do mal, de que Satanás é o tipo, e cujas cidadelas se erguem em face da cidade do bem. A Igreja não sucumbirá a nenhum desses ataques; a Igreja não morrerá, e seu fundamento, a sé de Pedro, durará tanto quanto ela. Tal é a promessa. “Fato curioso, observa Henri de Tourville, o desse homem da Galiléia, que não teve em sua pessoa nada de extraordinário, e a quem um amigo, aldeão de Nazaré, usando do mundo e do futuro como senhor, por sua simples autoridade e com uma palavra colocou no pináculo da
história e à frente da humanidade”4.

Na continuação do texto, a função de chefe é figurada pelas chaves, insígnia do intendente ou mordomo de palácio. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, isto é, o poder de admitir ou de rejeitar os fiéis. No Apocalipse, é o próprio Jesus quem traz as chaves de Davi, como Grão Mestre do Reino de Deus. Aqui trá-las-á, por procuração o seu discípulo chefe, primeiro porteiro do Reino.

Esse reino evidentemente é a Igreja, visto que Jesus acrescenta: Tudo o que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu. Esse poder de ligar e de desligar, que significa permitir ou proibir, é relativo às ações ou às coisas, assim como o poder de admitir ou de rejeitar é relativo às pessoas. Assim, o magistério de fé indicado pela primeira declaração do Mestre (como aliás por muitas outras palavras), e o magistério governamental implicado na segunda, são claramente definidos.

Tinhamos razão de dizer que um tal fato é central no estabelecimento evangélico da Igreja; ele serve de base à obra, com a sua forma hierárquica claramente centralizada, é necessária à ação espiritual predita. Tudo, partindo de uma Encarnação para se adaptar à natureza carnal ao mesmo tempo que espiritual do homem, tudo deve envolver em seguida no visível, e não no espiritual puro, isto é, no invisível. O que deve ser visto é a humanidade nova agrupada em torno de Cristo, redimida, unida ao Pai com sua própria unidade, animada pelo Espírito. Isso não é possível sem uma organização social, sem uma representação, sem uma diversidade de funções exprimindo a diversidade humana na unidade, à maneira de um corpo. E, como um é que manifesta melhor um, do mesmo modo que, no ponto de partida, tudo se concentra na unidade de Cristo, concebe-se que a representação principal de Cristo seja por sua vez unitária. Donde a eleição de Pedro, ponto de partida do Papado, Jesus não mencionou expressamente sucessão; mas criou o papel; mais tarde, como agora, bem forçoso era fosse esse papel desempenhado. O próprio Jesus coloca a duração de sua Igreja na dependência do Rochedo sobre o qual a funda, e di-la perpétua. Pode-se, pois, pensar que, se desde o início ele assim não houvesse disposto, isso se teria espontaneamente estabelecido mais tarde, bem longe de ser um desvio posterior, como pretendem alguns, e um plágio da autoridade romana.

Quando ao magistério sacramental, este resulta de outras declarações não menos precisas, das quais dentro em pouco encontraremos a principal.

Mas, antes das palavras supremas e antes do supremo apelo ao futuro, a instituição da Igreja necessita, no presente, de uma consagração dolorosa.

Os pactos sociais da antiguidade selavam-se sempre por um sacrifício. Por isso dizia-se: ferir uma aliança, matar uma aliança: ferire foedus, mactare foedus. Um sacrifício mais alto deve aqui intervir, porque a aliança entre Deus e o homem, em mira a fundar essa vida em comum que é a Igreja, requer da parte do homem um esforço de ascensão e de purificação que não pode ter lugar sem dor. O Filho do Homem assume-lhe o encargo coletivo, e acha-se preso por sua obra numa espécie de engrenagem onde deve necessariamente sucumbir.

Nos confins de todos os mundos, entre o passado e o futuro, entre a terra e o céu, entre a matéria e o espírito, entre a culpabilidade e a justiça, deve ele ser esmagado e sacrificado pela aproximação temível que ele tem por missão promover.

O passado não quer perecer; o futuro tem dificuldade de nascer; toda passagem renovadora é acompanhada de conflitos; todo nascimento é uma crise.

A matéria não quer ceder; o Espírito desarranja-a nas suas combinações e nas suas esperanças; ela vai resistir, e resistirá a ponto de Pascal poder dizer: Jesus estará em agonia até o fim do mundo. A sua agonia presente será causada pela resistência imediata de um meio corrupto, símbolo bem indicado daquilo a que o Salvador chamava o mundo.

Quanto ao céu e à terra, estes não podem juntar-se e unir-se senão no crisol do amor – amor reparador, em relação a um passado carregado de responsabilidades e de misérias; amor inspirador, prestimoso e vencedor em relação ao futuro.

Ora, esse amor deve ser visível e para sempre indiscutível. Ninguém ama mais, disse o próprio Jesus, do que aquele que dá a vida por seus amigos (João XV, 13). Em Cristo martirizado, Deus e o homem dar-se-ão reciprocamente essa prova. O homem morrerá por seu Deus; um Deus morrerá por seu Deus; um Deus morrerá pelo homem. Desse duplo selo do Testamento, o rótulo da cruz será o quirógrafo. Em hebraico, a língua do passado religioso; em grego, língua da civilização temporal; em latim, língua do poder viril e conquistador do Romano, poder-se-ão ler os perdões e as munificências celestes, as retribuições generosas e os esforços de uma criatura assim prevenida pelo amor.

Grandezas de carne, grandezas de espírito e grandezas de caridade, consoante a divisão célebre de Pascal, unificar-se-ão assim na caridade superabundante e mortal. O passado, sublevado em tempestade, por mais que julgue quebrar e suprimir o que considera ser antagonista, não fará senão desprender violentamente da árvore humana o grão de futuro que é Cristo, e, sepultando-o numa terra que ele próprio contribui para tornar fecunda, graças aos cuidados de uma Providência mais forte do que as suas cóleras preparará as futuras germinações.

Foi o que repetidas vezes Jesus procurou dar a compreender aos seus. Se o grão de trigo caído em terra não morre, dizia-lhes ele, fica só; mas, se morre, dá muitos frutos (João XII, 24). Cumpre dizê-lo, a esse pensamento eles eram refratários. O próprio Pedro, a despeito das suas declarações proféticas, antes por causa mesmo dessas declarações, cujo sentido profundo lhe escapava, Pedro exclamara um dia: Longe de ti isso, Mestre! E o mestre, voltando-se, lhe dissera: Retira-te de mim, Satanás, tu me serves de escândalo (Mt XVI, 23). Ele reencontrava no discípulo o Tentador dos seus primórdios, que o excitava a subtrair-se indene e glorioso a uma obra essencialmente mortal. Então, insistindo no sentido da sua profecia, o Salvador especificara: É necessário que o Filho do Homem sofra muito, e seja morto, após o que ressuscitará ao terceiro dia (Lc IX, 22).

Efetivamente, cumprido o rito, consumado o sacrifício e fornecida a prova, Cristo não tem razão para ficar no túmulo. Convém que saia dele, provando, pelo seu domínio póstumo sobre a morte, o seu domínio anterior, e em consequência o caráter generoso da sua paixão. Dou minha vida para retomá-la, disse ele, e ninguém ma rouba; mas dou-a eu mesmo; tenho o poder de dar e o poder de a retomar (Jo X, 17).

Tendo-a, pois, retomado após o silêncio misterioso dos três dias, ele retoma ao mesmo tempo a sua obra. A sua morte era um simples episódio. Longe de ser um fim, era o verdadeiro começo, visto que, indispensáveis como são as utilidades que dela virão, não se podia verdadeiramente começar senão depois desse aparente fim de tudo.

Eis que de novo Jesus aparece e fala. Quarenta dias de sobrevivência correspondem aos quarenta dias do deserto, enquanto ele preparava a sua missão. Então ele jejuava, privando-se de um alimento necessário. Agora, come sem mais ter fome, liberto das misérias mortais, porém querendo condescender e provar.

Os quarenta dias do deserto foram a transição entre a vida oculta e a vida ativa; os quarenta dias de sobrevivência serão a transição entre a vida individual e a vida de Cristo em seu “corpo” social. O Cristo individual mostra-se assim desaparecendo, voltando ao espiritual completo, e, se a sua vida terrena foi o último passado, se a sua morte foi o instante solene dos nascimentos, a sua sobrevivência é o primeiro futuro. O caminho doravante está aberto a uma obra que ele concebeu como Deus, aceitou em nome de todos como homem, e iniciou como síntese viva dos dois princípios que agora se trata de fazer agir.

***

Após a dupla lição de coisas da cruz e do túmulo glorioso, os discípulos estão maduros para uma colaboração consciente e efetiva. Jesus lhes fala como a quem de ora em diante pode ouvir. O Espírito virá, que lhes confirmará tudo.  Mas desde já ele, Jesus, lhes põe nos ouvidos palavras cujo som não mais poderá extinguir-se. Diz-lhes: “Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-as a guardar tudo o que vos mandei. E eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do tempo” (Mt XXVIII, 18).

A presença misteriosa de que o Salvador aqui fala entende-se de várias maneiras. É a presença eucarística; é a presença interior pela graça que o Espírito Santo traz. Mas é também a presença social por procuração. Porquanto, tomando à parte Simão Pedro, Jesus lhe reitera solenemente os seus poderes. Diz-lhe: “Apascenta minhas ovelhas, apascenta meus cordeiros” (Jo XXI, 15).

O serviço da palavra de Deus pelos apóstolos e seus sucessores; a administração do batismo, o sacramento da entrada, que coloca o cristão na trilha de todos os outros sacramentos; o exercício da autoridade por um grupo que tem por chefe claramente designado Pedro e sua sequência sucessora (já que isso deve durar até o fim do tempo); tudo isso acha-se, pois, determinado. E tudo isso é a Igreja.

Alguns têm dito que essas palavras tão claras não pertencem à história, por nos virem de Cristo ressuscitado, o que, sem dúvida, no pensamento deles, quer dizer: de um Cristo de sonho. Mas Cristo ressuscitado é para nós coisa mui diversa de um sonho. Já não é mais, se se quiser, um ente histórico no sentido pleno do termo, já que a sua vida, doravante transcendente, escapa às leis do que se agita no tempo; mas é um ser historicamente agente, visto que se manifesta por fenômenos reais, insertos na trama da história, e que nela produzem efeitos. Aliás, as mesmas coisas ouvimos da boca de Cristo vivo temporalmente, e nenhuma razão permite pô-las em dúvida.


A Igreja nasceu, pois, realmente. Nascida era ela desde sempre no seu Cristo-Deus. Nascida era em Belém no seu chefe homem e Deus. Nasceu de ora em diante em si mesma como sociedade organizada de uma organização inicial, mas positiva. Estreia humildemente; é bem o pequenino rebanho de que falou o divino Mestre (Lc XII, 32). Mas a esse rebanhozinho ele prometeu um reino. O reino dilatar-se-á pouco a pouco na terra, segundo a lei de desenvolvimento progressivo que foi a do mundo antigo, mas com um elemento novo, perfeito em si, posto que indefinidamente perfectível em nós.

E o reino assim regido, ao mesmo tempo que preparará o futuro da raça, salvará, alma por alma, aqueles que quiserem submeter-se às suas leis. Procriará eleitos para encher o céu. O Reino dos céus terrestre: tal será o nome da Igreja “militante”. O Reino dos céus puro e simples: tal será o nome da Igreja “triunfante”. Um dia, eles se juntarão, quando Aquele que vai partir voltar, desta vez liame definitivo entre as duas séries de fatos que dividem a vida do homem: fatos temporais, fatos eternos; fatos materiais, fatos espirituais; fatos do passado e do presente, fatos do futuro.

É a segurança que, para acabar, mensageiros celestes dão aos Doze, depois que a nuvem de luz lhes furtou aos olhos o Senhor que sobre ao céu, sobre o horizonte de Jerusalém e do mundo.

Mas, antes, a série dos tempos religiosos deve desenrolar-se ainda sobre este solo. Os apóstolos e a Igreja têm de cumprir a sua missão do tempo: recrutar adeptos ao plano divino, regê-los, e, para isso, organizar-se, progredir, defender-se, estabelecer a obra no coração do tempo, e prossegui-la. É o que os veremos empregar-se com uma atividade e um êxito que evidentemente parecerão exceder o homem, tão eficaz será o Espírito deixado como sucedâneo divino por Aquele que acabava de pôr termo à sua presença visível.

O Espírito! O Espírito do Cenáculo com suas línguas de fogo, com o seu vento violento, com os seus dons e os seus presságios, dele se pode dizer que pela sua vinda, o seu coroamento à obra de fundação da Igreja. Realiza-lhe a Confirmação.

A ascensão e a sediação à destra do Padre rematam e levam ao perfeito a divina Pessoa dada à Igreja com “cabeça”; libertam-na da sua mortalidade e das suas outras fraquezas voluntárias: assim o corpo místico vem ao perfeito pelo dom integral do Espírito e pelas graças sociais do Cenáculo.

Como essas graças são o efeito dos méritos de Cristo, só são outorgadas na sua plenitude após o acabamento da obra meritória e da sua consagração celeste. Era por isto que Jesus dizia: “Se eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas, se eu for, vo-lo enviarei” (Jo XVI, 7).

Ele vem. E não se pode negar que não haja nisso um milagre psicológico de primeira ordem. É o Espírito que torna de repente viris e clarividentes aqueles homens tão pueris, dantes tão inconscientes a respeito das realidades de que durante três anos foram circundados e que lhes fizeram o efeito de um mistério turvo; a respeito d’Aquele com quem viveram e a quem até o fim, de certo modo, não conheciam (Jo XIV, 9); a respeito da obra e da sua significação verdadeira, da vida e da morte de Cristo que por tantos lados foram para eles um escândalo, da sua própria ressurreição, que os deixou deslumbrados, esmagados de espanto, mas do que lucidamente convencidos; a respeito, enfim, do seu próprio papel, ainda tão mal julgado, tão mal aceito, e da parte deles objeto de tanto temor.

Eles têm agora a intuição de tudo. A breve irradiação de Cesareia de Filipe, não seguida de efeitos a ela proporcionados, seguida de uma negação, tornou-se em Pedro, e solidariamente nos outros, uma claridade sem trevas. Tantos ensinamentos, estímulos e preceitos docilmente recebidos, porém mal assimilados e mal harmonizados, unem-se num feixe. Empolga-os uma certeza que, deles, os pusilânimes de ontem, vai fazer uns heróis e uns conquistadores. É uma transformação radical. A alma deles iluminada poderia dizer como Paulina em Polieucto:

Vejo, sei, creio estou livre de ilusões.
   
E essa fé ardente, prática e comunicativa é a que vai transmitir-se; é a que já se manifesta na multidão ambiente, onde um vasto lance de rede testemunha a sua força; é a fé da Igreja recém-nascida; é a nossa. E é o Milagre da Igreja na sua consumação inicial.

Este termo inicia torna sempre, porque a Igreja está sempre no seu começo, como tudo o que é do Espírito. Mas enfim, tudo aqui é consumado em preparação se tudo começa como realização. Pela descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, a Boa Nova evangélica pode, como o fará S. Paulo, definir-se plenamente “a virtude de Deus para a salvação dos que creem” (Rm I, 16). Os homens de todos os tempos terão parte nela em razão dos Doze assim investidos. A própria vida futura ficar-lhes-á a dever. Esses homens vêm a seu tempo, de um futuro eterno. Sem dúvida eles mesmos têm pensamentos mais humildes; obedecem; mas com toda certeza grande lhes é a esperança. Eles esperam, como Abraão, pela cidade de fundamentos sólidos de que Deus é o arquiteto e o construtor (Hb XI, 11), e, se, nesta nova fase do trabalho, eles não verificam mais do que o patriarca o efeito definitivo das promessas, sabemos que eles o viram e saudaram de longe (Ibid, 13)

3 – A este respeito, como a tantos outros, ler-se-á com incomparável fruto a obra tão preciosa do P. Lagrange: L’Évangile de Jesus-Christ, Paris, Gabalda editor.
4 – Henri de Tourville, Lumiêre ET Vie, p. 218, Bloud editor.


- Retirado do livro "O Milagre da Igreja" de A. D. Sertillanges