sábado, 22 de outubro de 2016

Paradoxos do Cristianismo: Jesus Cristo, Deus e Homem - ROBERT HUGH BENSON

O presente texto é o primeiro capítulo do livro "Paradoxos do Cristianismo" de Robert Hugh Benson, onde há uma ótima reflexão sobre o assunto.

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Um sábio materialista anunciou um dia ao mundo estupefato que os mistérios da Igreja são brinquedos de criança, comparados com os mistérios da natureza. Naturalmente que ele, afirmando isto, errara redondamente e o seu erro não tem justificação alguma. No estudo da natureza criada, de que era profundo conhecedor, encontrara numerosas anomalias e paradoxos sobrepostos uns aos outros, e vira que o seu escasso conhecimento de teologia, limitado pelos primeiros e mais rudimentares princípios, não lhe permitia encarar as coisas por outro prisma.

Nós, na altura de compreendermos como os mistérios da natureza estão inteiramente contidos no círculo da vida criada, enquanto os mistérios da graça se ligam ao supremo mistério da incriada e eterna Vida de Deus, nós, digo, podemos ao certo assegurar que, se a Natureza é paradoxal, a Graça o é num grau incalculavelmente maior. Em cada paradoxo que encontramos no mundo material, acharemos o centro da atmosfera espiritual, dentro da qual respiramos e onde se movem as nossas almas, que, por um processo por si mesmo paradoxal, são obrigadas sob a limitação que lhes impõe a matéria.

Ao defrontarmos estes mistérios, não temos outro campo visual além do minúsculo espelho do sobrenatural ou aquele débil fio de esperança que chamamos "vida espiritual". Como se explica, por exemplo, que, enquanto a religião é num sentido a luz que clareia a nossa escura existência, noutro é o único ponto escuro num mundo de prazeres? E ainda, num sentido, é a única que torna a vida digna de ser vivida, e em outro, o único obstáculo para o nosso prazer? Que significam estes mistérios Gozosos e Dolorosos contradizendo-se uns aos outros e que têm por resultado (como no rosário) outros mistérios que são Gloriosos? Voltemo-nos a considerar a paixão fundamental destes mistérios, paixão que é chamada amor, e vejamos se aí existe algo de inexplicável. Que paixão é esta que transforma a alegria em dor e a dor em alegria? Esse impulso que leva o homem a fazer sacrifício de sua vida para salvá-la, que para si transforma as alegrias em complacências, lhe torna leve o jugo da Cruz, que o leva a encontrar o centro além do próprio eu, a procurar o seu prazer na privação de todo o bem-estar? Que poder é esse que pode muitas vezes encher-nos de alegria antes de nos metermos à obra e que recompensa a nossa fadiga com as trevas da desolação?

I - Se, pois, a nossa vida interior está cheia de paradoxos e de aparentes contradições, - e não há alma que tenha feito qualquer progresso que o não tivesse verificado - naturalmente deveríamos atender a que a Vida Divina de Jesus Cristo sobre a terra, que outra coisa não foi senão a Luz Central e Objetiva do Mundo, refletida em nós mesmos, deve ser cheia das mais estupefacientes anomalias. Examinemos os testemunhos escritos referentes a esta vida e vejamos se as cousas não são precisamente assim. Para melhor nos convencermos, suponhamos que este exame venha de um observador alheio completamente à tradição cristã.

a) Começa ele a ler atentamente e termina convencido de que esta Vida é uma vida como todas as outras; que este Homem não difere de outro homem, e, prosseguindo na leitura, encontra centenas de argumentos que servem para corroborar a sua teoria. De fato, vem ele a achar-se em presença de um indivíduo nascido de uma mulher, sujeito à vida comum, às inclemências da fome e da sede, e que, com o correr do tempo, aumenta em sabedoria; de um indivíduo que trabalha numa oficina de carpinteiro, sofre e se alegra como todos os outros homens, e que, como todos, tem amigos e inimigos; de um indivíduo que se vê abandonado por uns e insultado por outros, que, numa palavra, passa por todas as privações impostas pela humanidade; que morre como todos os outros homens e é, finalmente, depositado numa sepultura.

O observador encontra uma suficiente e adequada explicação dos fatos maravilhosos de que se compõe a Vida deste Homem na sua poderosa e magnífica humanidade. E é induzido a concluir que a fascinação emanada da simples, mas perfeita personalidade do herói, tenha sido condição tão grande para abrir os olhos aos cegos para que possam contemplar a beleza de sua face, e os ouvidos aos surdos para que possam ouvir a sua palavra.

Penetrando na leitura, não tardará, porém, a topar com problemas que o fazem duvidoso. Se este Homem, porquanto perfeito e sublime, é igual aos demais homens, como é que dizem que sua santidade se manifesta pelos muitos atos diversos dos outros Santos? Os homens aspirantes à perfeição, quanto mais se aproximam dela, melhor se dão conta das próprias imperfeições: os outros Santos mais se aproximavam de Deus e mais lamentavam a distância que dele os separava. Os outros mestres de vida espiritual, cônscios de suas deficiências, convidavam os discípulos a desviarem deles os seus olhares para o fixarem na Lei Eterna, objeto de suas mesmas aspirações.

Este Homem, ao contrário, parece vasar todos os sistemas. Tomando posições em face do mundo, Ele ordena aos homens que O imitem, e não como fazem os outros diretores espirituais; evitar os seus pecados cometidos; longe de indicar uma meta posta antes ou depois de si, aponta para si mesmo como Caminho que conduz ao Pai; longe de adorar uma Verdade, para a qual Ele tende com esforço, não hesita em afirmar que esta existe em si mesmo; longe de descrever a Vida a que espera chegar um dia, ordena aos seus ouvintes que olhem para Ele como para a própria Vida; longe de maldizer com os seus amigos as faltas que o agravam, desafia os inimigos a acharem nele a menor mancha de pecado. Há nele uma extraordinária sabedoria vinda de sua própria essência, que nada tem que ver com o conceito comum de individualidade.

Suponhamos agora, ao contrário, que o nosso observador se preste a ler o Evangelho partindo de um outro conceito, isto é, o de se achar em erro, pretendendo encontrar algum quê de humano na vida de Cristo. " Jamais homem algum tem falado como este". " Quem é este Homem a quem até os ventos obedecem?" dirá ele fazendo coro com o Evangelho. E prosseguirá, interrogando: " Como pode Cristo ser um homem se não nasceu de um pai humano?"

Se ressuscitou depois de três dias de morto? Se dele narram maravilhas que não podem ser atribuídas a um homem semelhante aos demais homens?

E começa a argumentar. "Aqui nos achamos", diz para consigo mesmo, "frente a frente com a realidade da antiga fábula, com a vinda de Deus entre os homens, com a solução de todos os problemas. E ei-lo ainda uma vez desorientado. Como pode um Deus sentir-se cansado com a jornada de longos caminhos, trabalhar numa pobre carpintaria e morrer numa Cruz? Como pode o Verbo Eterno ficar silencioso e obediente durante trinta anos? O Ser Infinito nascer numa manjedoura? A Fonte da Vida sujeitar-se à morte e à morte de Cruz?

O averiguador destes fatos debate-se desesperadamente entre uma e outra teoria. Apela para as mesmas palavras de Deus, e a sua perplexidade aumenta a cada expressão. Se Cristo é Deus, como pode proclamar: " Eu e o Pai somos um ?" Se Cristo é Deus, como pode dizer : "O Pai é maior do que Eu"? Se Cristo é homem, como pode assegurar : "Antes que Abraão fosse, eu sou" ? Se Cristo é Deus, como pode chamar-se a si mesmo "o Filho do Homem"?

b) Tornemos a considerar o ensinamento espiritual de Jesus Cristo, e uma vez mais acharemos que os problemas e os paradoxos se sucedem e se sobrepõem uns aos outros. Este homem, que veio ao mundo para aliviar as dores dos homens, para dar descanso aos fatigados, este Homem, que oferece aos seus seguidores um jugo doce e suave, diz ao mesmo tempo que ninguém o pode seguir e ser seu discípulo, se não renunciar a si mesmo, tomar cada dia a sua Cruz e subir a montanha com Ele. O médico das almas e dos corpos, que passou operando o bem, dando o exemplo de uma grande atividade no servir a Deus, não hesita em declarar que Maria, na sua silenciosa passividade, escolhera a melhor parte e que esta não lhe poderá ser outorgada. A uma certa altura vemos Cristo dirigir-se aos seus discípulos com os olhos cintilantes de belicoso ardor e dizer-lhes: quem não possui espada venda os seus vestidos e compre uma; e outra vez: embainhai a vossa espada, porque o meu Reino não é deste mundo. Em uma ocasião vemos o Pacificador baixar a sua benção sobre aqueles que fazem a paz, e, em outra, declarar que não veio trazer a paz, mas a guerra: vemos, ainda, este homem, que chama bem-aventurados os que choram, ordenar aos Seus discípulos que se alegrem e exultem. Onde encontrar um conjunto mais complexo de paradoxos, de problemas e de perplexidades? Tanto na pessoa como na doutrina de Cristo, parece não se encontrar certeza nem solução. - Que vos parece do Cristo? De quem o julgais filho?

II - a) A doutrina católica, e somente esta, oferece a chave destes problemas - chave como todas as outras chaves, entretanto tão complicada como o mecanismo da fechadura que só pode abrir. Um depois do outro, forcejam os heréticos por arrebatá-la e, um depois do outro, esperam ansiosos o seu desmoronamento na confusão. Cristo é Deus - exclama o herege - por isso tirai do Evangelho tudo que fala de sua Humanidade. Deus não pode derramar o próprio sangue, sofrer e morrer; Deus não pode experimentar as dores do homem; Deus não pode afligir-se e fatigar-se. Cristo é homem - exclama a crítica moderna -  por isso arrancai do Evangelho o seu nascimento imaculado e a Sua Ressurreição gloriosa. Ninguém no mundo, fora de um católico, pode aceitar os Evangelhos tais quais foram escritos, porque é somente quem crê que Cristo é ao mesmo tempo Deus e homem, que se inclina diante dos paradoxos chamados Encarnação, que aceita o estupendo mistério de uma só pessoa e duas naturezas, finita e infinita, que crê que o Eterno veio ao mundo, que o Criador Encarnado se dignou unir-se à sua mesma criação - somente este homem pode dizer-se Católico, pode sem reserva aceitar o misterioso fenômeno da vida de Cristo.

b) Consideremos os mistérios da nossa vida e, mediante um confronto inadequado, nos poremos em condição de melhor compreender.

Porque até nós temos uma dúplice natureza. Como Deus e o Homem formam o Cristo, a alma e o corpo formam o homem - e, como as duas naturezas de Cristo, a sua perfeita Divindade unida à sua perfeita Humanidade, são base dos problemas que a Sua Vida representa, assim a nossa afinidade com o lodo, de que foi feito o nosso corpo, e com o Pai da Vida, que infundiu em nós uma alma imortal, explica as contradições da nossa própria experiência.

Se fossemos unicamente animais irracionais, poderíamos ser felizes como o são os animais do campo: se somente fossemos puros espíritos extasiados na contemplação de Deus, nossa seria a alegria dos anjos. Admitindo, porém, uma só destas verdades, necessariamente terminaríamos abismando-nos na confusão. Vivendo como animais do campo, não poderíamos encontrar a alegria de que eles gozam, porque a nossa parte imortal no-lo impediria. Descurando ou resistindo às legítimas aspirações do nosso corpo, o nosso espírito imortal vê-se arrastado pela baixeza do mesmo corpo ultrajado. Somente a admissão das duas naturezas em Cristo permite resolver os problemas contidos no Evangelho. Somente a aceitação das duas naturezas nos põe na possibilidade de viver segundo os juízos de Deus.

O nosso modo de ser, física e espiritualmente, se eleva ou se abaixa, enquanto uma ou outra parte recebe tendências favoráveis às suas inclinações: umas vezes a nossa religião é um peso para a nossa carne e vezes outras dá-se o contrário; é o exercício que delicia a nossa alma; - umas vezes é a causa única que dá valor à nossa vida, vezes outras é a causa única que impede de gozarmos as delícias que a mesma nos oferece. Alteram-se, em nós, estes estados irresistíveis de ânimo quando o equilíbrio entre as nossas duas naturezas é oscilante e instável. Concluindo, a nós não é reservada nem a felicidade dos animais irracionais, nem a dos anjos, mas a própria dos homens, sendo nós superiores a uns e inferiores a outros, e destinados a ser coroados por Aquele que, participando da mesma Humanidade, está à direita de Deus-Pai. E isto basta como introdução. Vemos que o supremo paradoxo da Encarnação, o qual por si só compendia todos os fenômenos do Evangelho, é a chave de todas as demais dificuldades. Prosseguindo, veremos que ele é também a chave dos outros paradoxos da religião e das dificuldades que apresenta a história do Catolicismo, a Igreja Católica, que é a continuação e difusão da Vida de Cristo sobre a terra. A Igreja Católica, este estranho conjunto de mistérios e de lugares comuns, esta união da terra com o céu, da argila com o fogo, só pode  por isso ser compreendida por aquele que a aceita como Divina e Humana, visto não ser ela outra coisa senão a representação mística, em termos humanos, d' Aquele que, sendo Deus infinito e Eterno Criador, se mostrar em semelhança de servo; d' Aquele que, sem deixar o seio do Pai, desceu do céu para a nossa salvação.