quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Biografia de G. K. Chesterton


 Um “Pai da Igreja, forçado pela necessidade dos tempos e do ministério a pregar num estilo burlesco às multidões dos cétigos e dos gaudérios”, um novo “Abram de Domenico Cavalca, que enfiou um capuz sobre a armadura e ataviou-se com belas vestes para entrar no local de perdição a fim de converter a sobrinha”, um “bispo vestido de palhaço” (E. Cecchi). Um “gênio colossal”, o “Chesterbelloc” (G. B. Shaw), “tão alegre que se poderia quase ficar tentado a acreditar que ele de fato encontrou Deus” (F. Kafka), “um presente oferecido à comunidade católica (e toda a humanidade) diretamente por Deus” (Cardeal G. Biffi), “um dos melhores que existem” (E. Hemingway), “talvez nenhum autor me tenha proporcionado tantas horas felizes como Chesterton” (J. L. Borges), “Crianchesterton” (Pe. J. O'Connor), “defensor fidei” (Papa Pio XI).

Partindo das mil maneiras utilizadas para definir esse homem, logo perceberemos que estamos diante de um gênio, um homem excepcional sob todos os pontos de vista. E Gilbert Keith Chesterton foi excepcional de verdade. EM sua Autobiography [Autobiografia] ele afirma, mostrando toda sua personalidade amável e polêmica, humorística e cheia de alegria:

“Curvando-me com certa credulidade, como costumo fazer, ante a mera autoridade e a tradição dos meus antepassados, fruindo superticiosamente uma história que, quando acnteceu, não me foi possível controlar como experiência pessoal, tenho a mais convicta opinião de ter nascido no dia 29 de maio de 1874, em Campden Hill, Kensington, e de ter sido batizado, segundo as fórmulas da Igreja Anglicana, na igrejinha de São Jorge, situada na frente da torre da caixa d'água que domina aquela paisagem elevada.”

Mas de onde provêm essa personalidade tão vivaz e essa alegria profunda e contagiante que deixaram nos leitores parca tão forte? A pergunta se faz óbvia diante de homens de tal quilate. Tudo leva a pensar que se trata de um presente, como diz o cardeal Biffi, um presente inesperado. É como uma semente caída numa terra que não esperava outra coisa. Uma feliz intuição de liberdade da razão e otimismo em relação à vida; germina num contexto familiar afetuoso e receptivo ao belo e ao bom, cresce primeiro nas margens e depois no lugar onde tudo isso se sente em casa, a Igreja. Assim nasce um autêntico gênio do pensamento e da vida. Chesterton.

Nasce numa família não muito comum: o pai de Edward trabalha no setor imobiliário, sócio com seu irmão Sidney de uma agência que existe até hoje; sereno e despreocupado, transmite aos filhos o amor pela arte e literatura, o gosto pelo fantástico e uma desenfreada paixão por brinquedos, em primeiro lugar pelo teatro de marionetes. “Inglês no grau máximo”, uma espécie de Pickwick, dirá Gilbert, liberal e unitarista, mais propenso às discussões que ao fervor religioso. A mãe é Marie Louise Grosjean, cujo pai era suiõ (pregador leigo calvinista) e a mãe escocesa. A avó escocesa é que vai abrir para Gilbert as portas do “ensolarado país das fábulas”, para o qual ele tecerá loas pela primeira vez em The Defendant [O réu] e ao qual atribuirá um fundamental valor moral e teórico em Ortodoxia. Terá ao seu lado outro irmão, Cecil, ele também jornalista, nas batalhas jornalísticas e culturais.

Sua infância é serena, cheia de brinquedos e de afeto; não brilha de modo especial nos estudos e no fim da escola superior precisa acertar as contas com a solidão e a depressão: desorientado diante da vida e do futuro, tenta a universidade sem obter nenhum êxito, em seguida uma escola de arte (será também bom pintor e desenhista); perde o contato com seus caros amigos do Junior Debating Club, todos na universidade, e fecha o jornal que juntos haviam fundado, The Debater; praticao espiritismo, do que se arrependerá amargamente.

Essa é uma confusão desgastante para um homem fundamentalmente bom e inocente como ele é e será a vida inteira. Mas no fim sai de modo milagroso (essa é a expressão mais adequada) desse túnel aparentemente sem saída (no qual acalentou, como ele mesmo admite, até a ideia mais insana), graças à leitura do livro bíblico de Jó. A esse respeito contará depois numa carta a um amigo bastante estranho, uma experiência mística. “Tenho certeza de que cada coisa é o que é porque assim deve ser. Agora a visão está desvanecendo na vida do dia a dia e me sinto feliz por isso. É embaraçoso falar com Deus cara a cara, como se fala com um amigo.”

A partir de então, a partir da inesperada granítica certeza (ou melhor, confirmação depois da prova) da intrínseca positividade da existência, envereda por uma vida totalmente nova, sentindo um desejo incontrolável de dizer ao mundo que a vida é bela, que estamos aqui e poderíamos não estar e que se pode preservar o dom inestimável da inocência sem renunciar a nada da vida. São os motivos que fundamentam o pensamento de Chesterton, e deles nascerá toda a sua vasta reflexão.

Isso é o que alegrará todos os anos de sua vida, literalmente dedicados à máxima difusão da feliz descoberta, sem poupar energias. São intuições naturais, que percorrem sem trégua sua obra inteira, como um rio subterrâneo que aparece e desaparece, mas que sabemos estar sempre por trás de cada linha, cada palavra.
Descobre seu talento de escritor e começa a colaborar com muitos jornais; consegue em pouco tempo um sucesso imprevisto. Cresce cada vez mais o número de pessoas que se perguntam quem será esse “GKC” que assina aqueles artigos tão originais, bem escritos, cheios de inelutáveis paradoxos e bom senso. Os primeiros artigos resultam no volume The Defendant [O réu] de 1901 (uma defesa do indefensável, desde as pastorinhas de porcelana aos thrillers de dez tostões...), e depois de alguns textos poéticos ele, ele assina em 1904 seu primeiro romance, The Napoleon of Notting Hill [O Napoleão de Notting Hill], narrativa surreal onde encontramos o seu amor pelas pequenas pátrias que o caracterizará por toda a vida, a coragem de lutar pela própria casa e o próprio lar, princípio de toda ousadia, e os ecos da guerra anglo-bôer. Paradoxalmente Chesterton ganha notoriedade opondo-se ao imperialismo britânico, considerado pelos ingleses mais do que uma lei religiosa, e colocando-se na defesa dos camponeses bôres num país em que isso é comparável a uma blasfêmia e alegremente provocando, junto com Hilaire Belloc, seu amigo de toda a vida, até mais do que algum materialismo safanão por essa causa.

Desse ponto em diante temos um homem novo que delineará uma imagem absolutamente inédita do escritor, brilhante e apaixonado amante da verdade e do bom humor, jamais separados.

Não deixa de ser verdade o que dele disse Emilio Cecchi: é um bispo vestido de palhaço, alguém obrigado a pintar o nariz de verde a fim de atrair nosso olhar para a verdade. Ele se faz paladino da vida normal, da família, da ordem contra o caos, do senso comum. Mostra ao mundo com o entusiasmo de um apóstolo e a alegria de uma criança que há mais aventura na vida “normal” do que em qualquer romance de aventura, mesmo numa família onde nenhuma “aventura” acontece.

O padre Ian Boyd, presidente do Chesterton Institute for Faith and Culture, sublinha que “a exuberância e o modo divertido que caracterizavam o jovem Chesterton foram elementos decisivos na criação de uma imagem pública. Ele cheava a ser citao por quem nunca havia lido nenhuma de suas obras. As suas frases tornaram-se rapidamente proverbiais”. Sua fama de arguto debatedor rapidamente se faz enorme. Ele é “a delícia dos cartunistas” (Ian Boyd) por seu perfil inconfundível (ele, que na adolescência era um sujeito alto e enxuto, com o passar dos anos torna-se um gigante com mais de um metro e noventa de altura pesando cento e trinta quilos (ou mais), que alimenta histórias e lendas de todos os tipos (uma delas é a seguinte: Chesterton se levantava no ônibus e de repente havia espaço para três mulheres se sentassem...).

Em 1905, escreve Heretics [Heréticos], o ensaio mostra, na crítica das idéias e das figuras em voga em seu tempo, seu distanciamento pessoal em relação ao “pensamento moderno” segundo qual “a verdade cósmica tem um peso tão insignificante que nada do que alguém diga pode ter importância alguma”. E mais adiante: “Em volta de qualquer inocente mesa de chá, todos os dias acontece de ouvir-se alguém sentenciar: ‘A vida ao vale a pena’. E ninguém acha que essa consideração difere desta outra: ‘Hoje o tempo está bom’; ninguém pensa que isso exerça algum efeito nos homens e no mundo.” Toda a sua vida será uma alegre luta contra esse mal de viver; dirá de fato em outra passagem: “Desentocar e combater o mal é o princípio de todas as alegrias” Só assim é possível compreender Chesterton e seus vibrantes personagens.

Escreve num ritmo torrencial artigos sobre qualquer assunto que deve discutir (Alberto Castelli dirá que sua vida foi uma única interminável discussão), praticamente sobre tudo, aonde quer que o empurre seu elã vital milagrosamente reconquistado. Trava batalhas em qualquer campo, como, por exemplo, na polêmica antieugênica. Sua produção jornalística é imensa, um “desperdício de artes e de idéias” que “causa uma sensação quase angustiante” (Emilio Cecchi). Sua assinatura aparece, em outros, em periódicos como “Daily News”, “The Speaker” e “The Illistrated London Newis”. Tmabém publica sólidos ensaios sobre literatura enfocando R. L. Stevenson, Browning, Tennyson, Blake e outros autores, e mais adiante lança The Victorian Age in Literature (A época vitoriana na literatura), obra que muitos consideram de grande valor.

Em 1908 Chesterton atinge um momento de extraordinária clarza acerca do objetivo de sua vida obra, e dá à luz dus de duas obras-primas, mas quais tamvez seja mais vibrante e eficaz toda a lucidez recebida como dom inesperado: The Man Who Was Thursday (O homem que era Quinta-Feira) e Ortodoxia, reelaboração literária e teórica das passagens fundamentais de sua experiência humana até aquele ponto: o renascer a partir do absurdo e da redescoberta da fé cristã mediante a experiência da razão aberta à realidade. Essas obras foram com razão definidas como “autobiográficas” (Ian Boyd).

A primeira é uma espécie de romance policial metafísico – dizem empregando uma expressão feliz – com o significativo subtítulo de Um pesadelo. Obra visionária, entre o místico e o grotesco, altamente poética e simbólica, ela faz um relato muito autobiográfico da descoberta da beleza e bondade da vida que é um mistério, e a possibilidade real da felicidade para o ser humano. E um livro repleto de referencias ao Livro de Jó, ao qual Chesterton deve sua salvação. Gabriel Syme, o protagonista, e no fundo Gilbert, o homem com olhar de poeta, que descobre o ponto de fuga, presente em todas as coisas, que conduz ao Mistério, a origem de tudo. O monsenhor Ronald Knox, amigo de Chesterton e, como ele, brilhante autor de romances policiais e convertido ao catolicismo, afirma: "Trata-se de um livro extraordinário: e como se o editor Ihe houvesse pedido para escrever um romance do gênero O peregrino empregando o estilo de As aventuras do sr. Pickwick", E a historia do homem, de cada um de nos, que depois de mil confusões de forte sabor policial (porque no fundo numa vida normal há muito mais aventura do que em qualquer romance de detetive...) descobre o segredo da vida.

Ortodoxia relata a tentativa do autor no sentido de encontrar as respostas para o mistério da vida e sua descoberta de que tudo o que ele procurava esta no Credo dos Apóstolos; e a intuição da razão que caminha assombrada e feliz rumo a fé, ocasionada pelo desafio de G. S. Street, que depois de ler sua obra Heretics (Hereges) fizera o seguinte comentário: "Com minha filosofia [...] começarei a preocupar-me depois que o sr. Chesterton tiver apresentando a dele"
Chesterton, com uma comparação fulminante e engraçada — a historia de um homem que deixa a Inglaterra em seu barquinho e aporta diante do pavilhão no litoral de Brighton convencido de ter descoberto uma nova terra selvagem —, narra sua tentativa de inventar uma nova religião (e ele, portanto, o iatista* fantasioso, que vamos encontrar em outros textos) e a descoberta de que ela já foi "inventada", e o cristianismo. Mais uma vez afirma o padre Boyd:

Chesterton acreditava que no fundo de todas as realidades mais profanas cada um fosse capaz de encontrar a Dens. Poucas vezes ele escreveu sobre temas religiosos, mas nos acontecimentos da vida quotidiana, ou nos objetos de gesso, ou nas ruas urbanas, ele conseguiu descobrir o mistério religioso presente no fundo de todas as coisas.

Chesterton chega assim a conclusão de que o cristianismo e para o ser humano a maior fonte de sanidade mental". Ortodoxia contem paginas inteiras de autentica e agudíssima compreensão da vida, pela qual devemos ser eternamente gratos.
Dessa sua consciência nasce um fantástico romance, breve e muito intenso, Manalive (O homem vivo), publicado em 191L Narra a historia de Inocêncio Smith (nome e sobrenome nada casuais, personificação da inocência e da normalidade), que empreende uma viagem pelo mundo e também e iatista, e depois e acusado (pelo olhar míope de alguns inquilinos da mesquinha Casa Beacon) de homicídio, furto, abandono da família e poligamia, pelo simples fato de ele ter ido visitar sua família, sua única e amada mulher e sua casa com a caixa de correio vermelha e o lampião verde na frente, que ele havia perdido na paralisia da rotina quotidiana. Um homem, diz Chesterton, que não aceitava estar morto enquanto ainda estava vivo. Em outras palavras, ele mesmo.
Essa, como praticamente todas as suas obras narrativas, apresenta aspectos nitidamente autobiográficos, embora dispersos no surreal. Sua intenção e falar da própria vida que e a vida de qualquer homem, e do mistério que nela existe, para não morrer.

Mas O homem vivo esta em cada um de nos (um verdadeiro e adequado motivo poético para Chesterton) e precisa de ajuda; precisamos de alguém que nos empurre no Mistério e para o Mistério, e que do serviço quotidiano prestado ao Mistério tenha feito sua vida: padre Brown, sacerdote católico romano (como dizem os ingleses), detetive primeiro da alma e depois das coisas materiais. O primeiro de uma longa e feliz serie de contos que tem como protagonista o semi-invisível padrezinho inglês foi lançado em 1911, e se inspira numa das pessoas mais importantes na vida de Gilbert e de sua mulher Frances Blogg, o padre John O'Connor, sacerdote irlandês que se estabeleceu na Inglaterra, homem de extraordinária inteligência e argúcia, bem descrito num capitulo memorável da Autobiography [Autobiografia]. A primeira característica do padre Brown e o fato de ele não ter características, e sua importância consiste em não parecer importante, tudo contrastando com sua atenção e inteligência insuspeitadas. Este homenzinho resolve mistérios e delitos mergulhando, gramas a sua experiência de padre e confessor, na mente de quem cometeu o delito, compartilhando com ele tudo exceto o ato de delito final, como explica o próprio Chesterton em O segredo do padre Brawn.

Em 1914 Chesterton foi acometido por uma grave enfermidade que quase Ihe custou a vida, deixando aturdida aquela Inglaterra que, embora por ele muitas vezes criticada, correspondia sinceramente a seu amor. Nesse mesmo ano sai um romance profético e visionário, The, Flying Inn (A pousada voadora); e a historia de uma Inglaterra em que se instala um governo filoislamico com o objetivo de eliminar no pais todos os bares e casas onde se vendem bebidas alcoólicas, mas que encontra em Patrick Dalroy o herói que — tendo atrás de si um barrilote de rum, uma peça de queijo e o distintivo do pub ‘velho marinheiro'? — conduz a rebelião contra a insensatez e desumanidade desse tipo de governo. E um hino ao bom humor cristão e contra os sincretismos impossíveis.

Em 1922 ele opta pelo catolicismo. Não faltou nisso a colaboração de amigos como o padre O'Connor, o padre Vincent McNabb (vibrante dominicano irlandês defensor, como ele, do distributivismo) e Hilaire Belloc. É o ancoradouro definitivo, nada fácil nem mesmo depois de toda uma existência devotada a demonstrar ao mundo a sensatez da vida crista. Naquele abençoado dia? em sua casa em Beaconsfield, Gilbert declara: aos sábios tem mapas que desenham universos densos como arvores, agitam a razão com mil peneiras que retém a areia e deixam passar o ouro; para mim tudo isso vale menos que o pó porque meu nome e Lazaro e estou vivo". A conversão origina também maior reflexão. e um Chesterton parcialmente diverso do brilhante jornalista em voga nos anos anteriores; isso lhe custara a perda de muitas amizades em sua própria casa (no fundo a desconfiança em relação ao Roman Catholic não morre facilmente nem nos dias de hoje).

No ano subseqüente a conversão Chesterton publica a biografia de São Francisco de Assis, talvez o santo por quem mais se apaixonara por seu poder de profeta e menestrel, de amante e forte contestador de seu tempo.

Em 1925 sai O Homem Eterno. Começa com o recorrente motivo da viagem e uma excursão histórica do homem sobre esta terra, com a qual o nosso Autor prova que o cristianismo é o fator supremo de civilização em todas as épocas. Do mesmo modo que se fala do cristianismo como fonte de sanidade mental para o homem, nessa obra se fala do cristianismo como fator de civilização para o mundo. Se Ortodoxia é uma resposta ao desafio de Street, O Homem Eterno é a resposta a The Outline of History, de H. G. Wells, e seu “darwinismo histórico”.
A partir de agora Chesterton viaja muito, especialmente pelo Canadá e Estados Unidos, aquele pais criticado por ele mas que lhe reserva acolhidas triunfais, em suas turnês que se tornarão proverbiais. Visita a Palestina, a França, varias vezes a Itália, que muito amava da mesma forma que amava os países católicos como a Irlanda e a Polônia (são "esses onde ainda se canta, se dança e se vestem roupas vistosas e onde a arte vive ao ar livre” afirmava Chesterton), que também visita.

Em 1933 publica a biografia de santo Tomas de Aquino, definida por Etienne Gilson como a mais bela obra sobre o “Boi mudo". "Ao lê-la não se pode pensar em outra hipótese que não seja a do gênio..." Colabora também em transmissões radiofônicas na BBC, conseguindo imensa popularidade.

Mas quem define Chesterton? Chesterton ama a gente comum porque Deus "criou muita gente assim", sua querida mulher, a tradição por ser "a democracia dos mortos", a cerveja e os bares "onde tinha seu trono” e "extravasava humorismo" (R, Church); nele liberdade e dogma são sinônimos; ele ri feito criança e é sábio como um velho de muitos séculos. Ama os bebes e a inocência (isso mesmo, a inocência!) que transforma na quintessência do homem verdadeiro e, sobretudo, vivo; participa das festas geralmente entediado e mata o tempo atirando cenouras no ar para depois apanhá-las com a boca fazendo rir as crianças presentes; ele é alguém que sai de casa para se casar, mas não deixa de passar pela padaria, freqüentada na infância com sua mãe, para beber um copo de leite, como também não deixa de levar consigo uma pistola, porque o casamento, senhores, é uma grande aventura e então é bom que se vá ao encontro dele devidamente armado...

Uns afirmam que.ele é conservador, outros que é progressista; lamento dizer isso, mas rotulá-lo assim significa ter lido pouco ou apenas trechos de sua obra. Chesterton só descobriu a vida, seu segredo a ser defendido com sacrifício e ate como próprio sangue, a ser difundido discursando sobre os telhados e chegando para isso ate a loucura, a ser sempre defendido na vida sempre tendo em vista sua Fonte, o próprio Deus, cuja casa é a Igreja católica. Talvez ele não seja muito politicamente correto, tanto ontem como hoje. Mas esta errado?

Morre em Beaconsfield (Buckinghamshire) no dia 14 de junho de 1936, onde está sepultado até hoje, no pequeno cemitério católico junto à igreja paroquial de Santa Teresinha do Menino Jesus (uma santa quase menina, veja só...), junto com a mulher Frances e a quase filha e secretaria Dorothy Collins.


Marco Sermarini
Presidente da Sociedade Chestertoniana da Italia

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O eterno hoje.

“Assim também Cristo não se glorificou a si mesmo, para se fazer sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, Hoje te gerei.” (Hebreus 5.5)

“Como poderiam ter passado inumeráveis séculos, se Vós, que sois o Autor e o Criador de todos os séculos, ainda não os tínheis criado? Que tempo poderia existir se não fosse estabelecido por Vós? E como poderia esse tempo decorrer, se nunca tivesse existido?

Sendo pois, Vós, o obreiro de todos os tempos – se é que existiu algum tempo antes da criação do céu e da terra – por que razão se diz que Vos abstínheis de toda a obra? Efetivamente fostes Vós que criastes esse mesmo tempo, nem ele podia decorrer antes de o criardes! Porém, se antes da criação do céu e da terra não havia tempo, para que perguntar o que fazíeis então? Não podia haver então, onde não havia tempo. Não é no tempo que Vós precedeis o tempo, pois, de outro modo, não serieis anterior a todos os tempos.

Precedeis, porem, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com a Vossa eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro porque esta ainda por vir. Quando ele chegar, já será pretérito. Vós, pelo contrario, permaneceis sempre o mesmo e os Vossos anos não morrem.

Os Vossos anos não vão e nem vem. Porém os nossos vão e vem, para que todos venham. Todos os Vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando todos não existirem. Os vossos anos são como um só dia, e o Vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se quotidiano, mas e um perpétuo hoje, porque este Vosso hoje não se afasta do amanha, nem sucede o ontem. O vosso hoje e a eternidade. Por isso gerastes coeterno Vosso Filho a quem dissestes: ‘Eu hoje te gerei’.

Criastes todos os tempos e existis antes de todos os tempos. Não é concebível um tempo em que se possa dizer que não havia tempo.”. (Santo Agostinho)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O Novo Testamento é historicamente confiável?

Segue organizado um bom texto sobre a historicidade do Novo Testamento, de Craig L. Bloomberg, no livro "Questões cruciais do Novo Testamento". Boa Leitura.

Itens:

1 - Introdução
2 - Crítica Textual
3 -  Autoria e Data
4 - Os Gêneros dos Evangelhos e do Livro de Atos
5 -  O Sucesso do Empreendimento dos Evangelistas
6 - Palavras Severas e Tópicos Ausentes
7 -  A Evidencia de Autores Não-Cristãos
8 - Evidencias Arqueológicas
9 -  Milagres
10 - Conclusão

10 - O Novo Testamento é historicamente confiável?

 Por Craig L. Bloomberg

Conclusão

Neste capitulo, nos investigamos um vasto terreno, tentando oferecer breves introduções a cada tópico, com referencias onde cada uma delas pode ser investigada com mais detalhes. Determinados argumen¬tos e determinadas partes das varias linhas de raciocínio acabam sendo mais fortes do que outros. De forma cumulativa, no entanto, um caso impressionante pode ser defendido a favor da confiabilidade geral dos Evangelhos e do livro de Atos, exclusivamente pelos critérios históricos. As pessoas que decidem crer nos relatos mais do que a argumentação histórica pode respaldar o fazem, certamente, por um "salto de fé". Mas e um salto na mesma direção para a qual a grande maioria das evidencias históricas está apontando. E cada historiador do mundo antigo regularmente obtém conclusões provisórias sobre a confiabilidade ou não de determinada fonte, o que, então, predispõe a sua atitude com relação às partes daquela fonte que não podem ser confirmadas nem contraditas. Como os Evangelhos e o livro de Atos se mostram comprovadamente confiáveis em tantas passagens onde podem ser testados, deveriam receber o beneficio da duvida onde não puderem sê-lo.

Notas (Clique para visualizar):

9 - O Novo Testamento é historicamente confiável?

Por Craig L. Bloomberg

Milagres

A única coisa que impede que Ludemann passe da observação de que os primeiros cristãos acreditavam que Cristo tinha ressuscitado dos mortos para a convicção de que Ele ressuscitou fisicamente, e a sua sincera pressuposição de que essas coisas, ou quaisquer eventos milagrosos, jamais poderiam ocorrer. Embora pareça melhor deixar a questão do miraculoso para outro livro, eu não consigo evitá-la completamente neste capitulo, ainda que meus comentários devam ser breves.101

- Ceticismo e resposta

Há tres razoes principais por que muitos acadêmicos modernos acreditam que milagres não acontecem. Em primeiro lugar, alguns acreditam que a ciência refuta os milagres. A mais famosa enunciação dessa convicção vem do prolífico acadêmico do Novo Testamento e teólogo alemão, de 50 anos atrás, Rudolf Bultmann, quando declarou que "o conhecimento e domínio que o homem tem do mundo avançou a tal ponto, em razão da ciência e da tecnologia, que não mais e possível que alguém defenda seriamente a visão de mundo do Novo Testamento,”.102 Os povos antigos simplesmente não tinham o entendimento das leis universais de causa e efeito que nos temos, e por isso acreditavam no que nos não podemos crer.

Em segundo lugar, outros admitem a possibilidade do miraculoso (Mn teoria, mas insistem que, na pratica, sempre haverá uma probabilidade mais alta de que uma explicação naturalista se responsabilize pelo misterioso. A clássica exposição deste ponto de vista vem do filosofo escocês XVIII, David Hume, que defendeu essa afirmação enfatizando quão freqüentemente a declaração de testemunhas confiáveis pode estar equivocado, quão freqüentemente pessoas ingênuas e crédulas caem presas de interpretações equivocadas de eventos, e como os outros estão simplesmente procurando milagres e por isso são incapazes de analisar objetivamente causas de eventos incomuns. Hume adotou um uniformitarianismo filosófico, isto e, declarando que uma pessoa não pode atribuir uma causa a um evento que não observou nem vivenciou diretamente (nem obteve a informação de alguém que observou ou vivenciou o evento).103

Finalmente, um terceiro argumento apela para os aparentes paralelos na antiga religião e mitologia. Historias similares eram contadas sobre os deuses e deusas gregos e romanos. Quase contemporâneos de Jesus, por exemplo, Apolônio, no mundo grego e Hanina ben Dosa ou Honi, o que faz chover, no mundo judeu, são considerados como tendo realizado milagres, alguns deles assombrosamente similares aos primeiros prodígios e maravilhas cristãos. Portanto, este argumento tenta sugerir que nos interpretamos mal o gênero literário das historias de milagres bíblicos, que jamais teriam pretendido registrar fatos sérios, mas seriam relates fictícios designados a ensinar lições teológicas. Classicamente estruturada nos meados do século XIX por David Strauss, esta e hoje em dia a explicação dominante para as historias de milagres da Bíblia, entre o ramo mais cético dos acadêmicos.104 Cada um dos três argumentos merece uma resposta.

Em resposta a reivindicação cientifica, e importante enfatizar que em uma era pós-Einstein, pós-Heisenberg, os filósofos da ciência são cada vez menos dogmáticos sobre o que pode ou não acontecer, reconhecendo que a ciência, por definição, e o estudo do que e repetível, e por isso não pode avaliar a existência divina.105 Se Deus, por definição, e um ser sobrenatural que criou o universo, realmente existir, então nos devemos aceitar a possibilidade de que Ele ocasionalmente interrompa as leis científicas normais de causa e efeito, para criar o que chamamos de milagre.
Curiosamente, mesmo nesta era altamente tecnológica e cientifica, a substancial maioria dos norte-americanos adultos ainda crê em milagres, porque respostas dramáticas a orações e curas físicas instantâneas e inexplicáveis continuam a acontecer com excessiva freqüência para que se possa negá-las.106 Por outro lado, devemos nos lembrar de que, já no período do Novo Testamento, as pessoas sabiam que os mortos normalmente não ressuscitam, e que os doentes não se curam instantaneamente. Muito freqüentemente, nos declaramos a ingenuidade dos povos primitivos de maneira que simplesmente não são fieis a historia.

Embora ainda encontre adeptos, a objeção filosófica foi refutada ha mais de três séculos. O testemunho de pessoas confiáveis ainda deve ser levado em consideração, mesmo se o que elas descrevem parecer inacreditável. Algumas pessoas são ingênuas, mas não todas, e nem todas ao mesmo nível. Algumas certamente estão procurando milagres, e podem acreditar que os encontraram, por meio de algum processo de "cumprimento de desejos". Mas os céticos endurecidos também foram convertidos a fé cristã por causa dos milagres que decididamente não estavam procurando. E o uniformitarianismo prova: pelo seu critério, ninguém que viva nos trópicos, em uma época diante da comunicação global e tecnologia moderna, teria qualquer razão para crer no gelo! Alem disso, o uniformitarianismo marcara um determinismo antropológico; isto e, ele não deixa espaço para que o livre-arbítrio humano crie uma nova causa para um evento jamais imaginado antes.107

Quanto aos paralelos com outras religiões antigas, não e provável que sejam responsáveis por gerar as historias de milagres contidas nos Evangelhos e no livro de Atos. Os mitos classicos greco-romanos eram sobre deuses e deusas que jamais viveram vidas humanas verdadeiras na terra. Nas raras ocasiões em que os milagres eram atribuídos a heróis humanos endeusados, como Asclepio (embora mesmo então haja debates se este homem realmente existiu), ainda eram pessoas de séculos passados cujos retratos cresceram ao nível de lendas detalhadas somente depois de centenas de anos. Os milagres que aconteceram nos tempos do Novo Testamento em santuários dedicados a Asclepio provavelmente podem ser explicados pelo que hoje seria chamado de processos psicossomáticos.108 Apolonio de Tyana viveu depois da época de Cristo e a composição dos Evangelhos e do livro de Atos, de modo que as suas supostas curas e ressurreições não podem ter influenciado os primeiros relatos cristãos. Hanina teve milagres de cura atribuídos a ele, mas somente por meio da oração, ao passo que Cristo e os apóstolos ordenavam que as pessoas fossem curadas diretamente, e elas realmente ficavam curadas. O único milagre atribuído a Honi, como sugere o seu apelido, foi ter feito chover, um tipo de milagre que jamais e retratado nos Evangelhos ou no livro de Atos. Mas, dada a fé cristã de que Deus realizou milagres por intermédio de judeus fieis, e de que Satanás pode realizar falsos milagres, não ha razão necessariamente para rejeitar todas as historias antigas de outros eventos aparentemente sobrenaturais.109

- A Evidencia positiva.

Não apenas as objeções padrão a aceitação das historias de milagres do Novo Testamento não convencem, mas a evidencia positiva adicional respalda a sua historicidade. Nos já observamos que tanto a tradição rabínica como Josefo concordaram que Jesus realizou milagres. As his¬torias de milagres são encontradas em cada Evangelho, e cada suposta fonte para o Evangelho, assim como para o livro de Atos, e as referências a Jesus e aos apóstolos realizando milagres estão espalhadas pelas epistolas também (por exemplo, Rm 15.19; 2 Co 12.12; Gl 3.5; Hb 2.4). Globalmente, as historias de milagres satisfazem plenamente ate mesmo o antigo critério da dupla igualdade e desigualdade (veja o inicio do capítulo 1). Ha paralelos parciais nas fontes judaicas mais antigas e nas cristãs mais recentes, mas o âmago da singularidade dos relatos bíblicos e a objetividade e a eficácia dos milagres e da sua função como indicadores da chegada decisiva do reino de Deus. Os milagres, assim, também sa¬tisfazem o critério da coerência com o ensinamento de Cristo conhecido como autentico e essencial. John Meier, na mais abrangente investigação acadêmica dos tempos modernos, sobre a historicidade dos relatos de milagres do Evangelho, embora enfatize que nem todos os relatos satis¬fazem a todos os critérios, ainda assim conclui:

A curiosa conclusão da nossa investigação e que, considerada global¬mente, a tradição dos milagres de Jesus e mais firmemente respaldada pelo critério da historicidade do que o são inúmeras tradições conhecidas e com freqüência prontamente aceitas, sobre a sua vida e o seu ministério (por exemplo, a sua condição de carpinteiro, o seu uso de "abba" em oração, a sua própria oração no Getsemani antes da sua prisão). Explicando dramaticamente, mas sem grandes exageros: se a tradição dos milagres do ministério publico de Jesus tiver que ser rejeitada in toto como não histórica, todas as outras tradições do evangelho a respeito dEle também deverão ser.110

Esta não é, naturalmente, a conclusão de Meier; na verdade, há for¬tes razões para crer, ainda que com bases puramente históricas, na confiabilidade substancial da tradição dos milagres.

A Ressurreição

Novamente, breves comentários parecem completamente inadequados, mas ha excelentes livros que se dedicam mais plenamente ao tema,111 principalmente N. T. Wright na sua recente e magistral obra, The Resurrection of the Son of God [A Ressurreição do Filho de Deus].112 Nenhuma explicação alternativa convincente foi proposta para expli-car a fe dos primeiros cristãos na ressurreição. As idéias propostas na literatura popular mais antiga, de que Jesus na realidade jamais morreu na cruz, de que os seus discípulos roubaram o seu corpo, de que as mulheres foram ao sepulcro errado ou que mais de quinhentas "testemunhas" durante um período de quarenta dias, em diferentes localizações geográficas, todas foram acometidas de idêntica "alucinação em massa", foram apropriadamente descartadas por grande parte de acadêmicos contemporâneos. A alternativa acadêmica mais popular hoje e a de que a ressurreição e o produto de um processo de mitologização posterior de uma tradição original que não incluía um retorno sobrenatural dos mortos. Mas a evidencia de 1 Coríntios 15 já basta para refutar isso, como já vimos anteriormente nos tópicos ''Os Credos cristãos Antigos" e "Milagres". Alem disso, e o tipo de explicação que poderia fazer sentido, se Jesus tivesse sido um grego que pregava em Atenas, e se os seus seguidores, uma geração depois, tivessem se tornado predominantemente judeus. A Grécia, de modo geral, acreditava somente na imortalidade das almas. Os judeus eram comparativamente singulares no mundo mediterrâneo do século I, crendo em uma ressurreição total do corpo. Mas, naturalmente, isso e o oposto do progresso geográfico real do evangelho. No mínimo, nos deveríamos ter esperado um cristianismo helenista crescente, cada vez mais, para minimizar ou eliminar as referencias a ressurreição de um corpo.113

As alternativas a ressurreição corpórea de Jesus não convencem, e, alem disso, seis argumentos adicionais também propiciam fortes evidências a favor da sua historicidade. Nos já mencionamos o testemunho terreno de Paulo. Alem de 1 Coríntios 15, ha mais de uma dúzia de outras referencias a ressurreição de Cristo nas incontestáveis epistolas paulinas, escritas antes dos anos 50 (Rm 4.24, 25; 6.4, 9; 8.11, 34; 10.9; 1 Co 6.14; 2 Co 4.14; 5.15; Gl 1.1; 1 Ts 1.10; etc.). Em segundo lugar, não ha alternativa que explique adequadamente por que os primeiros cristãos judeus (isto e, não apenas gentios) alteraram o seu dia de adoração de sábado para domingo, especialmente quando a sua lei fazia da ado¬ração no sábado (Sabbath) um dos Dez Mandamentos invioláveis (Ex 20.8-11). Alguma coisa objetiva, assombrosamente significativa e com data de alguma manha de domingo em particular deve ter gerado a mudança. Em terceiro lugar, em uma cultura em que o testemunho das mulheres era freqüentemente inadmissível em um tribunal, quem inventaria um “mito” relacionado à fundação, em que todas as primeiras testemunhas de um evento difícil de crer eram mulheres? Em quarto lugar, os relates contidos do Novo Testamento diferem dramaticamente das bizarras descrições apócrifas da ressurreição, inventadas no século II e depois. Em quinto lugar, nos primeiros séculos do cristianismo, nenhum sepulcro jamais foi venerado, separando a resposta cristã a morte do seu fundador de praticamente todas as outras religiões da historia da humanidade. Finalmente, o que teria levado os primeiros cristãos judeus a rejeitar a interpretação que lhes foi dada como herança em Deuteronômio 21.23, de que o Messias crucificado, pela própria natureza da sua morte, demonstrou que Ele estava se colocando em uma posição de maldição diante de Deus? Novamente, e mais fácil crer em um evento aceito como sobrenatural do que tentar explicar todos estes fatos estranhos através de alguma outra lógica.114

8 - O Novo Testamento é historicamente confiável?

Por Craig L. Bloomberg

Evidencias Arqueológicas

Uma categoria importante de evidencias de corroboraçao fora dos Evangelhos e do livro de Atos, ou de quaisquer outras fontes cristãs explicitas, e o que a arqueologia descobre. Novamente, ha livros cheios de itens que confirmam o tipo de detalhes em o Novo Testamento que se prestam como prova ou refutação arqueológica. Em nenhum caso algum detalhe foi refutado; incontáveis itens foram corroborados. Novamente, podemos ter apenas uma idéia inicial, com os exemplos mais famosos ou significativos.75

- Os Quatro Evangelhos

Uma admirável quantidade de detalhes circunstanciais nos Evangelhos recebe respaldo de escavações realizadas em Israel. A maioria delas serve para reforçar o nosso entendimento do cenário histórico, religioso e sociocultural do mundo de Jesus. Assim, podemos ver ruínas de inúmeros projetos de edifícios de Herodes, a disposição e a função do templo, as dimensões e o conteúdo de uma típica casa palestina, a natureza das estradas romanas e outras coisas. Pedras de moinho, tanques para imersão ritual, e a "cadeira de Moises" em uma sinago¬ga, tudo foi desenterrado, esclarecendo as referencias do Evangelho a esses itens. Em alguns casos, localidades inteiras foram escavadas — a sinagoga de Cafarnaum, do século IV, provavelmente edificada sobre as fundações de uma sinagoga da época de Jesus; o poço de Jacó em Sicar, onde Jesus se encontrou com a samaritana; o tanque de Betesda, com seus cinco alpendres, próximo a Porta das Ovelhas em Jerusalém; o tanque de Siloé, também em Jerusalém; e possivelmente a pedra (Gabata ou Litostrotos — veja Joao 19.13) do lado de fora do palácio de Pilatos (supondo que se tratava da Fortaleza Antonia).76 O mesmo e valido para a localização de cidades inteiras. Um mosaico de um barco de pesca do século I, com a inscrição “Magdala” ajudou a conduzir a descoberta da localização da terra natal de Maria Madalena. Ruínas de uma igreja bizantina, a leste do mar da Galileia, provavelmente apontam para a localização de Khersa, onde Jesus expulsou uma legião de demônios de um homem.

Algumas descobertas são bastantes recentes. Somente depois de 1961 foram desenterradas as evidências de inscrição (em oposição às literárias), em Cesárea Marítima, de Pilatos como governador da Judéia, durante o reinado do imperador Tibério. Em 1968, um ossuário (isto e, uma caixa de ossos) de um homem crucificado, chamado Johanan, confirmou, pela primeira vez, que os romanos podiam cravar pregos nos pés ou tornozelos de vitimas de execução. Um barco de pesca do século I foi dragado do mar da Galileia em 1986, depois da pior seca em Israel em mais de um século. E interessante que nele havia espaço para treze pessoas, exatamente, a quantidade de espaço que teria sido necessária para que Jesus e seus doze discípulos coubessem todos em uma embarcação. No museu em que os turistas agora podem vê-lo, o barco foi apelidado de "o barco de Jesus", embora, e claro, não tenhamos como saber se o próprio Jesus chegou a usar este barco. Em 1990, a sepultura que parece ser, provavelmente, do sumo sacerdote Caifas foi descoberta no monte Sião em Jerusalém, perto do local tradicionalmente conhecido como a Cidade de Davi no Antigo Testamento.77 O mais recente centro de atividade arqueológica foi Betsaida. Embora, ate hoje, não houvera nenhuma descoberta dramática, muitos pequenos artefatos, incluindo inúmeros itens relacionados a atividade pesqueira, foram escavados. Apenas quando este livro ia começar a ser impresso, surgia uma controvérsia a respeito de outra descoberta, próxima a Jerusalém — o possível ossuário de Tiago, o irmão de Jesus. A possibilidade de que a inscrição da urna funerária, que diz "Tiago", tenha sido feita por duas mãos diferentes, no entanto, deixa os acadêmicos incertos quanto a qual Tiago teria sido enterrado nela.78

Freqüentemente, a arqueologia fornece boas "lições praticas" para o leitor interessado da Bíblia. Em outras palavras, locais que não são as reais localizações de eventos dos Evangelhos, apesar disso, assemelham-se provavelmente aos verdadeiros lugares. Assim, embora a adornada Igreja do Santo Sepulcro, na parte velha de Jerusalém, esteja próxima ao local autentico da crucificação e do sepultamento de Jesus, o Calvário de Gordon — um afloramento de rocha na forma de caveira, pouco acima da atual estação de ônibus da moderna Jerusalém — e tão semelhante ao terreno que provavelmente parece com o lugar original do Golgota, explicando por que este lugar foi apelidado de "Lugar da Caveira". Ou, de novo, os turistas normalmente são levados a visitar um considerável patamar, a algumas centenas de metros acima da costa noroeste do mar da Galileia, e abaixo do tradicional "Monte das bem-aventuranças". Aqui, a acústica natural possibilita que alguém que esta no meio do caminho para o topo seja ouvido por grande multidão de pessoas ao mesmo tempo. Este poderia ser o lugar onde Jesus pregou seu famoso”Sermão da Montanha”, mas nós simplesmente não temos como afirmar isso, porque os Evangelhos não nos fornecem informações suficientes para determinar o local.

Artefatos desenterrados podem freqüentemente fornecer esclarecimento sobre palavras ou costumes específicos. A palavra corbã ("consagrado a Deus") foi encontrada sobre um sarcófago judaico, como advertência para ladrões de sepulcros. Sepulcros "caiados" resplandecentes ainda salpicam o vale do Cedrom e uma parte das encostas do monte das Oliveiras, ilustrando visualmente a metáfora de Jesus, em Mateus 23.27. Abundante quantidade de moedas confirma o costume de cunhar nelas a imagem de Cesar, um ponto em que Jesus se baseou quando evitou a pergunta capciosa dos lideres judeus sobre o pagamento de tributos.

A arqueologia ainda tem o potencial de esclarecer os silêncios dos Evangelhos. Nos últimos vinte anos, grande parte das escavações se concentrou em Sepphoris, a capital herodiana original da Galileia, antes da construção de Tiberiades, nos anos 20 d.C. Curiosamente, Sepphoris ficava somente a 8 quilômetros de Nazaré e solicitou grande quantida¬de de trabalhadores na construção civil, durante a mocidade e inicio da vida adulta de Jesus. Foi aqui que Ele aprendeu o costume grego de "atuar", de onde deriva a palavra hupokrites ("hipócrita"), uma palavra não encontrada em hebraico ou aramaico, mas que Jesus usou repetidas vezes contra certos lideres religiosos (veja especialmente Mateus 23)? Afinal, um grande teatro em estilo tipicamente grego foi escavado ali. O silencio dos Evangelhos a respeito de Sepphoris pode indicar que, quando Jesus iniciou o seu ministério publico, Ele teria evitado esta grande cidade gentílica, porque entendia que a sua missão era "primeiro para os judeus?"79 Ou o fato de que arqueólogos tenham desenterrado comparativamente alguns poucos ossos de porcos em Sepphoris — uma característica de cidades altamente judaicas, em que as refeições eram "kosher" e onde se evitava comer carne de porco ou presunto — sugere que nos superestimamos o quanto esta cidade era grega?

Um artefato de uma natureza bem diferente merece um breve comentário. Pequenos fragmentos do Sudário de Turim, cuidadosamente guardados durante séculos na Italia por autoridades católicas, foram submetidos a uma bateria de testes científicos em 1988, em três diferentes laboratórios, ao redor do mundo. Todos os resultados, independentemente provaram que só tratava de um pedaço de tecido do século XI ou XII, recente demais para ter sido o Sudário de Jesus.80 Ainda não há explicações convincentes sobre a origem da assombrosa impressão de um homem crucificado, estampada neste tecido, mas e inútil continuar argumentando a favor da sua autenticidade.81 Uma vez que muitas pessoas ao redor do mundo já ouviram falar neste sudário, embora nada mais saibam sobre artefatos bíblicos antigos, este ponto deve ser enfatizado.

- O Livro de Atos

Quando nos voltamos para a arqueologia dos inúmeros locais mencionados no livro de Atos, mal sabemos por onde começar, pois muitos já foram escavados. Deixar Israel significa, antes de mais nada, seguir Paulo nas suas jornadas (At 13 - 28).82 Em Antioquia da Pisidia, referências a parentes de Sergio Paulo, o governador cipriota, foram encontradas, sugerindo um dos motivos por que Paulo e Barnabé foram para lá, depois de navegar, saindo de Chipre para o que hoje poderia ser chamado de Turquia continental. Inscrições em pedras possibilitaram que os arqueólogos localizassem Listra e Derbe, duas outras cidades do sul da Galacia que Paulo visitou na sua primeira viagem missionária. Grande parte da antiga Efeso foi reconstruída das ruínas, incluindo o teatro onde os ourives de prata se revoltaram. Uma estatua de Artemis em Efeso, que parece ter mais de doze seios no seu peito, confirmou a adoração daquela deusa da fertilidade e exemplifica o tipo de idolatria contra a qual Paulo lutava. Em Tessalonica, evidencias de inscrições, pela primeira vez, justificaram o uso que Lucas faz do termo "politarca", que não aparece em outras passagens, com referenda aos governantes civis locais (Atos 17.8 - "principais da cidade"). Em Filipos, um possível local do breve aprisionamento de Paulo foi escavado assim como a ampla agora ou o mercado, e um possível local próximo ao rio onde ha via aquela oração, onde Paulo encontrou Lidia e seu grupo.

Corinto, como Efeso, contem muitas ruínas que ainda existem ou foram reerigidas. Ali a famosa inscrição de Galio nos possibilitou confirmar a existência e a data do governador local diante do qual Paulo foi julgado. Podemos ate mesmo ver ruínas do bêma, ou "tribunal", onde Galio teria se sentado para presidir o julgamento. Na imensa montanha rochosa, chamada de Acrocorinto que se ergue no fundo, ainda estão as ruínas da fortaleza romana que posteriormente substituiu o templo pagão no seu cume, no século I. Ali, os "sacerdotes sagrados" ou as "sacerdotisas" tinham relações sexuais com os "adoradores" para obter união com os deuses. Pouco admira que a moralidade sexual fosse uma grande preocupação de Paulo na sua primeira carta a jovem igreja desta cidade (veja especialmente 1 Coríntios 5-7). Uma inscrição mencionando "Erasto", o "aedile" (palavra em latim, que significa um oficial municipal) corresponde, assombrosamente, as saudações que Paulo transmite de Erasto, "procurador da cidade'', em Romanos 16.23, escritas de Corinto. Atenas, naturalmente, contem o espetacular Partenon, mas também o Areopago, onde Paulo falou, e uma stoa esplendorosa-mente reconstruída e modernizada — uma passagem apoiada em pilares e coberta, em que se alinham lojas ao redor da ágora.83

- As Igrejas do Livro do Apocalipse

Normalmente, não se pensa no livro do Apocalipse como um documento do gênero histórico. Mas os capítulos 2 e 3, que contem as cartas da João as sete igrejas da Ásia Menor, incluem varias referencias que são esclarecidas pelo estudo histórico e, mais especificamente, arqueológico.84 A promessa da "arvore da vida" aos que "vencerem" (Ap 2.7) esta em agudo contraste com a arvore do santuário ao culto de Artemis em Efeso e o abrigo que esta dizia oferecer. A oferta de uma coroa a Esmirna (v. 10) era apropriada para uma cidade que a tinha como seu conhecido emblema de beleza. Pergamo era um centro de adoração a Zeus, de curas de Asclepio e o culto imperial, sendo qualquer um deles, ou todos, bons candidates ao "trono de Satanás" (v. 13). Tiatira era local de associação de comerciantes, incluindo a de oleiros, que participavam de cerimônias pagas idolatras. Compare o quebrar da cerâmica no versículo 27.

Contudo o mais importante esclarecimento arqueológico envolve a sétima cidade, Laodiceia, que era famosa pela sua riqueza (ela foi reconstruída, sem ajuda romana, depois de um terremoto, em 60 d.C), pela sua industria de lã negra, e uma escola de medicina que fabricava balsamo para os olhos. A guisa de comparação de cada um destes três itens, Apocalipse 3.17 declara que os cristãos ali eram um povo "desgraçado, e miserável, pobre, cego, e nu". Jesus bate a porta dessa igreja para tentar recuperá-los e conduzi-los a uma fé mais vibrante (v. 20). Essa gentil abordagem contrasta com a entrada forçada de oficiais romanos exigindo alojamento nesta rica cidade, passando por uma impressionante porta tripla nas muralhas da cidade. O que e mais significativo e que Laodiceia não tinha seu próprio abastecimento de água; a água tinha que ser canalizada das frias fontes montanhosas, perto de Colossos, ou das terapêuticas fontes de água quente perto de Hierapolis.

De qualquer maneira, quando os aquedutos chegavam a Laodiceia, a água já estava morna. Assim, quando Jesus fala, por intermédio de João, que desejava que os laodicenses fossem frios ou quentes (v. 15), antigas expressões são metáforas positivas. Este fato e conhecido, pelo menos, desde a obra de Rudwick e Green, ha meio século, de modo que os pregadores que perpetuam o mito de que aqui "frio" significa ativamente em oposição a Deus, conduzem muitas pessoas a um equívoco!85

Uma lista de tanto material arqueológico de respaldo a historicidade básica do Novo Testamento não deveria dar a impressão de que não ha problemas não solucionados a respeito da confiabilidade destes documentos. Por exemplo, existem pelo menos duas, e talvez ate mesmo três, localizações plausíveis para a cidade de Emails. O problema da data do governo de Cirenio, na Síria (Lc 2.1), documentada fora da Bíblia não antes de 6 d.C, pode ter sido solucionado por inscrições micrograficas em moedas, que indicam que ele teve também uma posição política anterior, mas as marcas são pequenas demais e incertas, para que tenhamos certeza.86 (Ha problemas similares quando tentamos datar o Teudas mencionado em Atos 5.36; Josefo parece atribuir uma data posterior a esta rebelião.87 Fontes literárias, portanto, contem os mesmos prospectos e as mesmas ciladas que as fontes arqueológicas). Mas a esmagadora maioria de descobertas arqueológicas consistentemente aponta na direção de confirmar a confiabilidade destas porções de documentos do Novo Testamento com os quais e possível fazer comparações.

- Outras evidências do período do inicio do Cristianismo

As duas seções anteriores se concentraram nas evidencias, literárias e arqueológicas, que não poderiam ter sido distorcidas por "inclinações" cristãs. Mas o argumento de que a evidencia cristã deve ser "excluída do tribunal" e enganador, como já vimos no tópico "O Sucesso do Empreendimento dos Evangelistas". Há um ultimo tipo de testemunho, portanto, que não deve ser negligenciado, e envolve outros textos cristãos, fora dos Evangelhos e do livro de Atos. Nós investigamos estes materiais na ordem cronológica inversa, do menos importante para o mais importante.

No inicio do século III, se não no final do século II, praticamente todas as narrativas cristãs do ministério publico de Jesus e a historia da primeira geração da igreja confiavam exclusivamente no material dos Evangelhos canônicos e do livro de Atos. Mesmo a literatura apócrifa, na sua maior parte, não coincidia com o material canônico, mas procurava (ainda que ficticiamente) se encaixar nos "anos ocultos" da vida de Jesus, revelar os seus ensinamentos supostamente secretos a determinados seguidores, depois da ressurreição, ou descrever feitos muito posteriores dos apóstolos. Já na metade do século II, no entanto, a tradição oral dos eventos relativos a fundação da Igreja continuava a circular juntamente com os documentos escritos do Novo Testamento. Papias, bispo de Hierapolis no inicio do século II, afirmou que confiava na tradição oral que Ihe fora transmitida pelos sucessores dos apóstolos de Cristo, mais do que em quaisquer textos escritos (Eusebio, Eccl. Hist 3.39.3-4).88

- Os Pais Apostólicos

A coletânea dos primeiros escritos, cristãos ortodoxos, posteriores ao Novo Testamento, e conhecida como Pais Apostólicos. Escritos principalmente durante as duas primeiras terças partes do século II, esses documentos incluem duas epistolas escritas por Clemente, bispo de Roma; um conjunto de cartas breves de autoria de Inácio, um famoso mártir cristão; uma epistola de Policarpo, discípulo do apostolo João; o Didaquê, ou "Ensinamento" dos apóstolos, um manual sobre questões praticas de ética cristã e ordem na igreja; uma epistola dura contra o judaísmo, falsamente atribuída a Barnabé; e uma coletânea de visões, mandamentos e parábolas de doutrinas cristãs atribuída ao "Pastor de Hermas".89 Freqüentemente, essas obras citam tradições encontradas em o Novo Testamento, mas com palavras ligeiramente diferentes, de modo que não podemos ter a certeza de que estejam dependendo das formas escritas destas tradições. Em um punhado de exemplos, elas ci¬tam ensinamentos ou eventos não encontrados em o Novo Testamento. Estas duas características reforçam o comentário de Papias, sugerindo que o testemunho oral independente continuava a circular, mesmo de¬pois que os Evangelhos e o livro de Atos foram escritos. Como os Pais Apostólicos se referem a um numero de detalhes da vida de Cristo e da Igreja Primitiva, bastante maior do que os autores não-cristãos, independentemente de ate que ponto eles propiciam testemunho indepen¬dente, e confirmada uma porcentagem muito maior de informações so¬bre as origens cristãs do que poderia ser corroborado por nossas linhas anteriores de argumentação. Estas referências incluem grande material sobre o ensinamento de Jesus no Sermão da Montanha, uma significativa porcentagem de outros ensinamentos exclusivos ao Evangelho de Mateus, assim como exortações éticas de Jesus de modo geral, clara-mente a parte mais comum dos Evangelhos e do livro de Atos citada nos primeiros textos cristãos não canônicos.90

- Apocalipse

Voltando ao final do século I, chegamos ao ultimo documento do Novo Testamento, o livro do Apocalipse. Greg Beale acredita ter identificado inúmeros pontos onde João, ao compor este livro do Apocalipse, se inspirou nas mesmas tradições independentes, empregando as profecias de Daniel do Antigo Testamento, que estão por trás dos Evangelhos Sinóticos. O uso da analogia do Filho do Homem, extraída de Daniel 7.13,14, singular tanto aos Evangelhos quanto ao livro do Apocalipse, e o seu exemplo mais proeminente.91 Louis Vos vai mais alem, crendo ter identificado vinte e cinco passagens no livro do Apocalipse que demonstram um conhecimento independente das tradições incorporadas aos Evangelhos Sinóticos,92 porem muitas delas são excessivamente alusivas para nos de fato.

- 1 Pedro

A primeira epistola de Pedro e datada, por acadêmicos liberais, nas ultimas décadas do século I, freqüentemente por volta dos anos 80. Os conservadores, que acreditam que o próprio Pedro escreveu esta carta, atribuem-na a uma data não posterior a meados dos anos 60, uma vez que Pedro foi martirizado por Nero em Roma, entre 64 e 68 d.C. Esta carta contem numerosas alusões aparentes a tradição dos Evangelhos, em formas suficientemente diferentes, de modo que a dependência literária direta não pode ser demonstrada com certeza. Particularmente notáveis são as alusões a palavras do Evangelho de João, que, se João tivesse escrito nos anos 90, não poderiam ter existido, em forma escrita, nem na data mais tardia atribuída a primeira epistola de Pedro. Três exemplos comumente citados são as declarações sobre nascer de novo, em 1 Pedro 1.2 (cf. Jo 3.3); amar a Jesus sem tê-lo visto, em 1.8 (Cf. Jo 20.29); e ser levado das trevas a luz, em 2.9 (cf. Jo 8.12).93

- Tiago

A epistola de Tiago pode, na verdade, ser a primeira de todos os documentos do Novo Testamento, escrita no final dos anos 40. Mas a evidencia e ambígua. Tiago, o irmão do Senhor, poderia ter escrito esta epistola já no inicio dos anos 60, uma vez que viveu ate 62 d.C. Aqueles que atribuem esta epistola a outro autor, em algumas ocasiões datam-na nos anos 70 ou 80. Mas praticamente todos acreditam que a epistola e anterior a primeira epistola de Pedro, assim como a primeira epistola de Pedro e anterior ao livro do Apocalipse. De todas as epístolas do Novo Testamento, nenhuma contem tantas passagens que se assemelham, verbalmente, aos ensinamentos de Jesus, como a epistola de Tiago. Embora aqui não haja citações inequívocas, ha aproximada-mente três dúzias de referencias ao Sermão da Montanha/Planície em Mateus5-7eLucas 6.20-49.94

Não e preciso ir alem do primeiro parágrafo da epistola de Tiago para observar um padrão de referencias que permanece consistente por toda a carta. "Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações" (1.2; cf. Mt 5.11,12 — "bem-aventurados sois vos quan¬do vos injuriarem... Exultai e alegrai-vos" — e Lc 6.23); "para que sejais perfeitos e completos" (1.4; cf. Mt 5.48 — "Sede vos, pois, perfeitos, [ou maduros] como e perfeito o vosso Pai, que esta nos céus"); "pega-a a Deus, que a todos da liberalmente... e ser-lhe-á dada" (1.5; cf. Mt 7.7 — "Pedi, e dar-se-vos-á" - e Lc 11.9); "Pega-a, porem, com Fe, não duvidando" (1.6; cf. Mt 21.21 — "se tiverdes fé e não duvidardes" — e Mc 11.23). Essas referencias envolvem as três fontes principais de Mateus — Marcos, Q e M (exclusivamente material de Mateus) — mostrando que o conhecimento que Tiago tinha da tradição do Evangelho era ampla. Mas mesmo que a carta tenha sido escrita tão tardiamente, como 0 ano 60 ou 61, e improvável que Tiago tivesse acesso ao Evangelho completo de Mateus. Ele deve ter conhecido as fontes de Mateus, ou as tradições orais por trás delas. Começam a se somar as evidencias de que os Evangelhos estavam baseados em tradições fielmente transmitidas, e não inventadas pelos evangelistas.

- Paulo

Finalmente, chegamos as importantes epistolas de Paulo. Comentaristas de todo o espectro teológico concordam que Romanos, 1 Coríntios e 1 Tessalonicenses foram escritas nos anos 50, cedo demais para se basear em algum Evangelho escrito. Mas ha mais ou menos uma dúzia de citações ou alusões muito claras aos ensinamentos de Jesus que os Sinóticos registrariam mais tarde. Romanos 12.14 traz o mandamento: "Abençoai aos que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis" (cf. Lc 6.27b; 28a); 12.17, "a ninguém torneis mal por mal" (cf. Mt 5.39); e 13.7, "dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto" (cf. Mc 12.17). Em 13.8,9, Paulo resume toda a lei no mandamento de amar ao próximo (como em Gl 5.14; cf. Mc 12.31); em 14.10, ele condena julgar um irmão, uma vez que todos seremos julgados (cf. Mt 7.1,2a); e em 14.14, ele declara: "Eu sei e estou certo, no Senhor Jesus, que nenhuma coisa e de si mesma imunda" (cf. Lc 11.41; Mc 7.19b).

Três das mais explicitas citações de Jesus, feitas por Paulo, aparecem em 1 Coríntios. Em 1 Corintios 7.10,11, Paulo respalda suas opiniões sobre o casamento e o divorcio, com o mandamento "não eu, mas o Senhor, que a mulher se não aparte do marido. Se, porem, se apartar, que fique sem casar ou que se reconcilie com o marido; e que o mari¬do não deixe a mulher". Ao enfatizar que isso vem do Senhor, ele não quer dizer que o resto do seu ensinamento não e inspirado, mas que nesta questão especifica ele pode buscar o respaldo do ensinamento do Jesus terreno.95 Em 1 Corintios 9.14, Paulo escreve: "Assim ordenou também o Senhor aos que anunciam o evangelho, que vivam do evan¬gelho". Aqui, ele esta se referindo ao ensinamento que posteriormente seria registrado em Lucas 10.7, ("digno e o obreiro de seu salário"; cf. Mt 10.10). A terceira citação de uma passagem semelhante a de um Evangelho Sinótico e a mais clara de todas. Ao tentar corrigir o mau uso que os coríntios faziam da Ceia do Senhor, Paulo cita abundantemente da tradição das palavras de Jesus na sua Ultima Ceia, particularmente paralela a forma em que Lucas escreveria (cf. Lc 22.19,20). Em razão do seu subseqüente uso litúrgico, estas palavras ficaram conhecidas como "palavras de instituição" (da Ceia do Senhor):

Por que eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado gramas, o partiu e disse: Tomai, comei; isto e o meu corpo que e partido por vos; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice e o Novo Testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. (1 Co 11.23-25)

Os verbos "recebi" e "ensinei" neste tipo de contexto são termos técnicos para a transmissão fiel da tradição oral, como era a pratica dos rabinos com a Tora.96 Paulo provavelmente recebeu esta informação bem cedo na sua vida cristã, como parte do discipulado cristão elementar da sua época. Mas isso sugere que já nos anos 30 existia o conhecimento detalhado das palavras reais das tradições que seriam escritas uma geração mais tarde nos Evangelhos, uma vez que a data da conversão de Paulo pertence ao período entre dois a três anos apos a crucificação de Cristo!

Em 1 Tessalonicenses 2.14-16, Paulo compara a perseguição que os cristãos tessalonicenses suportavam a que os cristãos judeus sofreram nas mãos de seus compatriotas, que levaram Cristo a morte. Esses versículos contem numerosas alusões a partes de Mateus 23.29-38. Em 1 Tessalonicenses 4.15 - 5.4, ha paralelos ainda mais claros. Paulo introduz a sua descrição do retorno de Cristo em 4.15-17 como "pela palavra do Senhor", e muitos dos detalhes desses três versículos são correspondentes ao "Sermão do Monte das Oliveiras" de Jesus (Mc 13), em que o Senhor descreveu os eventos que envolveriam a sua segunda vinda. Em 5.2-4, a dupla referenda ao dia do Senhor que vem como um ladrão a noite, certamente recorda a parábola do ladrão narrada por Jesus (Mt 24.43; Lc 12.39), uma vez que uma metáfora tão impressionante não aparece em nenhuma das fontes anteriores. Inúmeros outros textos, as vezes com alusões ligeiramente mais vagas, poderiam ser relacionados aqui. Mas a questão e clara — um corpo significativo, detalhado e fixo de tradições orais dos ensinamentos de Deus circulava desde os primeiros dias da igreja cristã. Os autores do Evangelho, por sua vez, confiaram nesta tradição, que não era uma invenção fantasiosa, para compilar o seu ensinamento.

Isso prova ser igualmente verdadeiro com respeito aos detalhes sobre a vida e as obras de Cristo. Um resumo das mais importantes informações biográficas que podem ser reunidas das incontestáveis epistolas de Paulo incluiria a sua descendência de Abraão e Davi, o fato de ter sido criado na lei judaica, a sua convocação de discípulos, incluindo Pedro e João, e o fato de que Ele tinha um irmão chamado Tiago. Nos também aprendemos sobre o impecável caráter de Jesus e a sua vida exemplar, a sua Ultima Ceia e a traição e inúmeros detalhes que envolveram a sua morte e ressurreição.97

- Os Credos Cristãos Antigos

As mais antigas de todas são as passagens usadas por Paulo e Pedro em suas epistolas, que os acadêmicos identificaram como, muito provavelmente, pre-datando as epistolas em que aparecem. Numerosos textos em grego altamente poético, cheios de formulações densas da doutrina cristã fundamental, em estilos que freqüentemente são diferentes dos estilos dos próprios autores das epistolas, e que parecem se separar como entidades independentes dentro das epistolas em que aparecem, são prováveis candidatos a credos cristãos antigos ou confissões de fé. Os exemplos mais claros e mais comumente citados são Filipenses 2.6-11, Colossenses 1.15-20 e 1 Pedro 3.18-22.98 Essas cartas f oram possivelmente escritas no inicio dos anos 60, de modo que credos estabelecidos, incorporados a elas, provavelmente não são posteriores aos anos 50. Mas essas (e outras) confissões também mostram sinais de um cristianismo judeu primitivo que floresceu principalmente nos anos 30 e 40, de modo que elas poderiam ser ainda mais antigas.

Mas e precisamente neste material mais antigo que com freqüência encontramos algumas amostras da mais exaltada linguagem sobre Jesus. Ele tinha "a natureza de Deus" (Fp 2.6, NTLH), era "e imagem do Deus invisível" (CI 1.15), e "esta a destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potencias" (1 Pe 3.22). Essas crenças emergiram cedo na Historia da Igreja, não em algum estagio avançado da "evolução da doutrina cristã"." Tais passa¬gens também conferem confiabilidade as declarações exaltadas feitas por Jesus, e sobre Ele, nas paginas dos próprios Evangelhos.

A mais significativa e assombrosa passagem pré-paulina e 1 Coríntios 15.3-7. Uma vez mais, Paulo usa a linguagem técnica da recepção e transmissão da tradição judaica oral: "Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi". Aqui chegamos ao âmago da fé cristã antiga acerca de Jesus:

... que Cristo morreu pelos nossos pecados, de acordo com as Escrituras, que Ele foi sepultado, que ressuscitou ao terceiro dia de acordo com as Escrituras, e que apareceu a Cefas [Pedro] e depois aos Doze. Depois disso, Ele apareceu a mais de quinhentos dos irmãos e irmãs, ao mesmo tempo, muitos dos quais ainda estão vivos, embora alguns estejam adormecidos. Então, Ele apareceu a Tiago, e depois a todos os apóstolos...

O âmago desta informação de discipulado deve ter sido ensinada a Paulo pouco depois que se tornou um cristão. Uma dramática corroboração disso nos vem de um importante acadêmico alemão que percorreu o caminho do cristianismo liberal ao ateísmo durante os anos 1990. Escrevendo abundantemente sobre o tema da ressurreição, Gerd Ludemann afirmou que durante os dois primeiros anos do movimento cristão, os seguidores de Jesus proclamavam confiantemente a sua ressurreição corpórea dos mortos. Embora Ludemann não cresse que um evento genuinamente sobrenatural tenha acontecido, reconhece que a declaração mais responsável que um historiador pode fazer e que os primeiros cristãos creram, quase que imediatamente, que algo deste tipo ocorreu.100 Não adiantara fingir que a historia da ressurreição foi uma invenção mitológica e muito posterior, muito tempo depois que as pessoas que realmente sabiam o que tinha ou não acontecido já estavam mortas!

7 - O Novo Testamento é historicamente confiável?

Por Craig L. Bloomberg

A Evidencia de Autores Não-Cristãos

Para algumas pessoas, a única evidencia que prova ser definitiva-mente valiosa e a de antigos autores que nunca se tornaram cristãos. Mesmo se admitirmos que os cristãos podiam escrever sobre a historia sem que suas tendências a distorcessem indevidamente, sempre ha a possibilidade de que não o fizeram com sucesso. Naturalmente, estas mesmas pessoas raramente observam que os não-cristãos poderiam ser muito mais inclinados contra o cristianismo e desta maneira deixar de apresentar adequadamente as suas origens históricas. Nos temos provas de que isso acontecia freqüentemente no primeiro milênio d.C, pois a volumosa literatura judaica que formava o Mishnah, Talmudes e vários Midrashim, cada vez mais censurava e excluía referencias a Jesus (e outros supostos apostatas) com o passar dos séculos. Mas, apesar disso, vale a pena investigar o que as literaturas mais antigas — judaica, grega e romana — dizem sobre Jesus e outros personagens e eventos retratados nos Evangelhos e no livro de Atos. Especialmente, quando levamos em conta a tendência destes autores, uma considerável quantidade de evidencias emergem, que, novamente, respaldam a confiabilidade histórica dos documentos canônicos.61

- Evidencias a Favor de Jesus

De longe, a informação mais extensa e interessante vem de Josefo. Escrevendo próximo do fim do século I, este historiador judeu produziu uma obra de vinte volumes, intitulada Antiguidade Judaica — uma historia do mundo, desde a criação ate os seus próprios dias! Os manuscritos que sobreviveram contem duas referencias a Jesus. Em 20.197-203, nos lemos sobre a execução de Tiago, o meio-irmão de Jesus, pelas mãos do Sinedrio, em 62 d.C. Especificamente, na seção 200, Josefo se refere a "Tiago, o irmão de Jesus que era chamado o Cristo".62 Nenhum acadêmico serio duvida da autenticidade desta observação breve, de modo que ela já e suficiente para demonstrar que Jesus existiu.
A outra passagem de Josefo e consideravelmente mais detalhada. Ela diz:

Nesta época, ali viveu Jesus, um homem sábio, se é que realmente deveríamos chamá-lo de homem. Pois Ele foi aquele que realizou feitos surpreendentes e mostrou que e o professor das pessoas que aceitam alegremente a verdade. Ele conquistou muitos judeus e muitos dos gregos. Ele era o Messias. Quando Pilatos, depois de ouvir que ele era acusado por homens da maior autoridade entre nós, o condenou para ser crucificado, aqueles que tinham sido os primeiros a amá-lo não desistiram de seu afeto por ele. No terceiro dia, ele lhes apareceu, restaurado a vida, pois os profetas de Deus tinham profetizado estas e incontáveis outras coisas maravilhosas sobre ele. E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, ate hoje não desapareceu (18:63-64).

O problema com esta passagem e que Josefo indica, no resto da sua obra, que continuou sendo judeu por toda a sua vida, e não aceitou o cristianismo. De modo que e altamente improvável que ele tivesse realmente escrito que Jesus era o Messias, questionado a sua verdadeira humanidade ou acreditado na sua ressurreição. Quando nos damos conta de que foram cristãos — e não judeus — que preservaram as obras de Josefo nos primeiros séculos depois da sua escrita, e natural supor que alguns escribas "mexeram" na obra de Josefo, para fazer com que o seu testemunho respaldasse as reivindicações cristãs mais explicitamente. Alem disso, uma obra árabe do século X, a Historia Universal de Agapio se refere ao testemunho de Josefo sobre Jesus, e no seu re-sumo faltam precisamente estes três itens, embora ele descreva Josefo dizendo que os seguidores de Jesus disseram tê-lo visto vivo e que Ele fosse talvez o Messias. Ha um consenso cada vez maior entre os acadêmicos, portanto, de que a passagem em Antiguidade Judaica, uma vez reescrita nestes três pontos, se aproximaria intimamente do que Josefo realmente escreveu.63

Testemunhos judaicos posteriores, a maioria deles encontrados no Talmude, tem natureza mais tendenciosa. Em um texto, esta escrito que Jesus fora enforcado na véspera da Páscoa. Uma vez que os judeus já tinham decidido que a crucificação era comparável ao enforcamento em uma arvore, isso não entra necessariamente em conflito com os relatos dos Evangelhos, particularmente o de João, que pode ser interpretado como se Jesus tivesse sido executado na véspera da Páscoa (embora devamos nos lembrar da nossa interpretação diferente, no tópico “Os quatro evangelhos”). Este mesmo texto, no entanto, diz, a seguir, que durante quarenta dias antes da execução, um arauto clamou: “ele vai ser apedrejado, porque praticou feitiçaria e atraiu Israel à apostasia”. De modo que pode ser que o registro histórico aqui esteja um pouco deturpado.

A acusação de que Jesus era feiticeiro, no entanto, aparece em outros trechos da literatura rabínica (veja especialmente b. Sanh, 107b), que fornece corroboração indireta de que Jesus verdadeiramente realizava milagres. Em vez de negar este fato, os autores judeus simplesmente atribuíam o seu poder ao Diabo, em lugar de atribuí-lo a Deus. O que é interessante é que esta abordagem emerge, em primeiro lugar, nas páginas os próprios evangelhos cristãos (MT 12.24; Lc 11.15).64 A mesma seção do Talmude que se refere ao enforcamento e Jesus também declara que Cristo tinha discípulos com os nomes de Matha, Naqai, Nezer, Buni e Todah. Quatro destes nomes podem ser grafias alternativas ou corrompidas dos nomes hebraicos de Mateus, Nicodemos, João e Tadeu, ao passo que Nezer pode se referir a um nazareno ou seguidor de Jesus, de modo mis genérico.

Outras referências explicitas a Jesus incluem uma tradição em que um discípulo rebelde é comparado a alguém que “queima publicamente um alimento precioso, que é Jesus de Nazaré”, uma metáfora que se refere à distorção do ensinamento judaico (b. Sanh. 103a). Em vários pontos, Jesus é chamado de “Jesus bem (=filho de) Pandera”, e Orígenes, um autor cristão do século II, explica que os judeus acreditavam que Jesus fosse filho de Maria em um relacionamento adúltero com um soldado que tinha este nome (Contra Celsum 1:32). O nome, e conseqüentemente a lenda, talvez venha de uma adulteração da palavra grega parthenos para “virgem”, refletindo, assim, um conhecimento deturpado da tradição cristã da concepção virginal. Em outros textos, Jesus não aparece mencionado por seu nome, mas há um amplo consenso na tradição judaica de que a referência é feita a Ele. Por exemplo, o rabi Abbahu, do século III, declara: “Se um homem diz a você, ‘eu sou (um) Deus’, é um mentiroso; ‘Eu sou (um) Filho do Homem’, irá se arrepender disso; se disser ‘eu vou subir para o céu’, poderá ter dito isso, mas não será capaz de fazê-lo” (p. Taan. 65b). Podemos reconhecer ecos da tradição do Evangelho netas três declarações.65

Historiadores Greco-romanos não-cristãos também fazem algumas referências a Jesus. Thallus (preservado somente nos textos do historiador Júlio Africano, do século III) se referiu a escuridão que aconteceu no momento da crucificação. Plínio, o Jovem, um embaixador romano no inicio do século II, escreveu para o imperador Trajano, pedindo conselhos sobre como lidar com os cristãos que se recusavam a adorar o imperador. Nesta correspondência, ele explicou que os cristãos se reuniam regularmente e entoavam hinos "a Cristo, como se a um deus" (Letters 10.96.7). Tácito, historiador romano do inicio do século II retratou os cristãos como aqueles cujo nome se devia a "Cristo, que tinha sido executado por sentença do procurador Poncio Pilatos, no rei-nado de Tiberio" (Annais 15:44). Aproximadamente na mesma época, o historiador romano Suetonio se referiu a expulsão dos judeus de Roma, durante o reinado de Claudio, em razão de uma revolta instigada por Chrestus. Muitos acadêmicos acreditam que esta e uma versão corrompida de Christus (Cristo) e que Suetonio esta descrevendo uma agitação entre judeus e cristãos, de forma equivocada pensando que Cristo estava pessoalmente presente para instigá-la. A referenda "no entanto, aponta para Jesus como líder de um grupo de judeus dissidentes, se não o fundador do cristianismo".66 Mara bar Serapion, escritor grego do final do século I, falou sobre Jesus, como o sábio rei dos judeus, ao passo que Luciano de Samosata, filosofo e historiador grego, em sua obra de meados do século II, A Morte de Peregrino, se referiu a crucificação de Cristo (seção 11) de uma maneira desdenhosa a credulidade dos cristãos que reverenciavam seu fundador como um deus. Finalmente, Orígenes narrou, com certo nível de detalhes, as acusações deste critico pagão, Celso, que reconhecia, mas menosprezava "os ancestrais, a concepção, o nascimento, a infância, o ministério, a morte, a ressurreição e a continua influencia de Jesus".67

Quando combinamos todo este antigo testemunho não-cristão de Jesus, ha material mais do que suficiente para refutar o mito persistente que ainda existe em certos círculos, de que Jesus jamais existiu!68 Os leitores modernos podem se perguntar por que não ha muito mais ma¬terial preservado, e para isso podemos dar duas respostas básicas. Em primeiro lugar, naqueles primeiros anos, ninguém sabia ainda que o cristianismo um dia se tornaria a religião dominante tanto no império, como em muitas outras partes do mundo. Em segundo lugar, ate boa parte do século XX, a maioria dos escritos históricos envolveu as façanhas de reis e rainhas, generais militares, os que detinham cargos em instituições religiosas, e outras pessoas. O foco nos cidadãos normais de uma nação particular e nos movimentos do povo que não estives sem relacionados com quaisquer poderes políticos ou eclesiásticos continuou relativamente raro ate o século passado. Nos poderíamos dizer que e surpreendente que estas referencias não-cristas a Jesus tenham sobre vivido.

- Outros Personagens e Eventos

Quando nos voltamos para outros personagens nos Evangelhos e no livro de Atos, a situação e bastante diferente. Precisamente porque muitos deles são pessoas poderosamente influentes, de vários tipos, as referencias não-cristas são tão abundantes que podemos apresentar aqui somente uma pequena seleção delas. Josefo, sozinho, fornece uma considerável quantidade de informações sobre João Batista, Herodes (o Grande), Antipas, Agripa I e II, Anas, Caifas e Poncio Pilatos.69 Josefo e os vários historiadores romanos, naturalmente, fazem detalhadas re¬ferencias aos diferentes imperadores que também são mencionados no Novo Testamento.

Copiando do volumoso catalogo de informações contido na obra magistral de Colin Hemer, podemos destacar treze tipos de conhece-mento histórico exibido no livro de Atos, que são corroborados ou pelo menos estão bem de acordo com outras fontes históricas.70 Em cada caso, nos vamos dar apenas um ou dois exemplos, embora na maioria dos casos exista um numero maior.

1. Conhecimento geral: Lucas reconhece que Augusto e o nome do imperador (Lc 2.1), mas, corretamente, menciona que um oficial romano se refere a ele pelo seu titulo (em grego, Sebastos) em Atos 25.21,25. Ele também sabe que os navios transportando grãos zarpavam de Alexandria rumo a Puteoli (28.11-13).
2. Conhecimento especializado: Lucas entende que Anás ainda era considerado como sumo sacerdote pelos judeus, mesmo depois de formalmente deposto por Roma (4.6). Ele também tem ciência dos detalhes da organização de uma guarda militar — quatro grupos de quatro soldados cada (12.4).
3. Conhecimento local especifico: Zeus e Hermes eram deuses populares em Listra, por causa de uma lenda de que tinham aparecido ali incógnitos, séculos antes. E compreensível, portanto, que Barnabé e Paulo fossem confundidos com eles (14.12). A viagem e o naufrágio de Paulo contem inúmeros itens que dificilmente teriam ficado conhecidos, a menos que alguém tivesse estado nesta viagem, ou fosse muito familiarizado com a tecnologia nautica da epoca.71
4. Correlações de data: A informação do livro de Atos esta em conformidade com outras fontes históricas, e nos capacita a fornecer datas para a morte de Herodes Agripa I, a fome na Judéia, a expulsão dos judeus de Roma por Claudio, o governo de Galio em Corinto, e a mudança de procuradores, de Felix a Festo, na Judeia.
5. Capacidade de ajustar o restante do livro de Atos com estas datas: Outras indicações de tempo no livro de Atos criam uma concordância harmoniosa com estes detalhes — um ano e meio de permanência de Paulo em Corinto, aproximadamente três anos em Efeso, e dois anos aprisionado na gestão de Felix — o que possibilita que os estudos da vida de Paulo datem com considerável precisão (pelos padrões antigos), cada uma das viagens missionárias de Paulo e as suas paradas em cada rota.72
6. Detalhes altamente sugestivos de datas: A Sinagoga dos Libertos, em Jerusalém, foi destruída em 70 d.C; a sua descrição precisa em Atos 5.9 teria exigido o conhecimento de condições anteriores a este ano. A Frigia e a Galacia estiveram associadas durante um curto período de tempo no século I, exatamente como Lucas as retrata em 16.6.
7. Correlações com o livro de Atos e as epistolas: Novamente, ha um enorme numero de correlações. Galatas 2.2,10 combinam elementos da visita de Paulo a Jerusalém também descrita em Atos 11.27-30. A superstição recriminada em Galatas 3.1 se encaixa com o engano de Listra em identificar Paulo e Barnabé como deuses gregos, como já observamos.
8. Correlações no livro de Atos: A natureza diversa dos sermões de Paulo esta em perfeita conformidade com o que sabemos sobre as localidades as quais cada um deles e destinado, desde a cética e filosófica Atenas em uma ponta (17.16-34) aos anciãos cristãos de Éfeso na outra (20.17-35).73
9. Possíveis informações históricas preservadas em variantes textuais: Embora provavelmente não seja o que Lucas escreveu originalmente, o texto “ocidental” de Atos 19.9,10 acrescenta que Paulo falava todos os dias a escola de Tirano, “da quinta a décima hora" (isto e, de 11 da manha as 4 da tarde — a parte mais quente do dia, quando a sala provavelmente estaria disponível), uma informação provavelmente precisa, acrescentada por um escriba posterior.
10. Referencias espontâneas: Informações secundarias, historicamente precisas, e com pouca probabilidade de terem sido inventadas conscientemente, incluem o nome de Antioquia na Frigia, próxima a fronteira da Pisidia, como Antioquia da Pisidia (13.14), como outros tinham feito, para distingui-la de outra Antioquia, localizada mais centralmente na Frigia, embora jamais mencionada no livro de Atos. A citação que Paulo faz com exatidão de poesia grega, de Epimenides e Arato, em Atenas oferece um segundo exemplo (17.28).
11. Diferenças de formulação no livro de Atos: Lucas emprega corretamente o termo "helenistas", ou "gregos judeus" (na versão BBE) quando se refere aos judeus que tinham adotado a cultura grega, mas chama as pessoas de "gregos" quando se refere a indivíduos não-judeus e não-cristãos. Saulo deixa de usar seu nome judaico, não na conversão, como leitores desatentos da Bíblia freqüentemente pensam, mas quando começa a ministrar entre os gentios (13.9).
12. Particular seleção de detalhes: Embora não mencionado explicitamente em outras fontes históricas, a inclusão de determinados detalhes de um significado não obviamente teológico e conveniente ao gênero de texto histórico, em um mundo que ainda não tinha inventado o que nos chamaríamos de romance histórico.74 Podemos comparar os papeis de Rode em 12.13,14 e Mnasom em 21.16.
13. Expressões idiomáticas especiais ou características culturais: As palavras lisonjeiras de Tertulo (24.2-4) combinam perfeitamente com a oratória aduladora de advogados gentios ao falar a procuradores romanos. A opção do governador de aceitar ou recusar a jurisdição sobre um caso de uma província isolada e, de igual maneira, retratada fielmente em 23.24.

Qualquer um destes itens específicos pode não provar muita coisa por si só, mas o caso cumulativo a favor da exatidão de Lucas como historiador no livro de Atos se torna esmagador quando percebemos o volume de tais itens que existem na sua narrativa.

6 - O Novo Testamento é historicamente confiável?

Por Craig L. Bloomberg

Palavras Severas e Tópicos Ausentes

Na seção anterior deste capitulo, eu respondi a inúmeros argumentos contrários a confiabilidade das porções aparentemente históricas do Novo Testamento. Agora é o momento de nos voltarmos para evidências positivas e adicionais a favor da sua confiabilidade. Duas destas evidencias formam um par natural. Por um lado, ha inúmeras "palavras duras" de Jesus nos Evangelhos que os seus primeiros seguidores provavelmente não teriam inventado. Um exemplo de palavra dura e aquele que faz uma exigência muito rigorosa aos discípulos, mesmo quando parece contradizer o ensinamento do próprio Jesus em outras passagens. Por exemplo, Lucas 14.26 declara que Jesus disse aos seus possíveis seguidores: "Se alguém vier a mim e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo". Esta declaração teria escandalizado um publico judeu que levava muito a serio o mandamento mosaico de honrar o pai e mãe, um mandamento que Jesus confirma em outras passagens (por exemplo, Mc 7.10). Felizmente para nós, Mateus inclui um ensinamento paralelo de Jesus em um diferente contexto, explicando o que Ele provavelmente quis dizer no contexto de Lucas também: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10.37). Os dois textos em grego estão, naturalmente, traduzindo o aramaico original de Jesus, e nas línguas semitas "amar" e "odiar" freqüentemente significavam "escolher" e "não escolher" ou "preferir" e "não preferir".57 O nosso amor por Deus deve superar tanto o nosso amor pela família, que este se parecera ate mesmo com o ódio, quando se fizer uma comparação. Agora, as palavras são, pelo menos, compreensíveis, embora ainda incrivelmente desafiadoras. Mas se Lucas ou Mateus se sentisse suficientemente livre para manipular as tradições que tinha herdado, como afirmam muitos acadêmicos, certamente teria sido muito mais fácil simplesmente omitir este tipo de frase.

Em outros casos, o que torna uma frase "dura" e o fato de que ela parece contradizer a divindade de Cristo, que a Igreja Primitiva tão rapidamente veio enfatizar. Por exemplo, em Marcos 6.5,6 o poder de Jesus parece limitado pela falta de fe em Nazaré: "E não podia fazer ali obras maravilhosas; somente curou alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. E estava admirado da incredulidade deles". Ou, em 13.32, o seu conhecimento parece limitado: "Mas, daquele Dia e hora [do retorno de Cristo], ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai". A teologia cristã entendeu, afinal, esses textos, e falou que Jesus não se utilizava de seus atributos divinos (tais como a onipotência e a onisciência), exceto quando era a vontade do seu Pai. Mas teria sido mais fácil que Marcos simplesmente omitisse estes dizeres, levando em consideração a confusão que poderiam criar. Alguma coisa, no entanto, o impediu de excluí-los. Aparentemente, estes eram "pontos fixos" na tradição que não poderiam ser eliminados se as narrativas nas quais eles apareciam fossem relatadas outra vez.58

Um fenômeno inverso também respalda a historicidade substancial dos Evangelhos. Varias controvérsias da Igreja Primitiva, descritas no livro de Atos e nas epistolas, jamais aparecem nas paginas dos quatro Evangelhos. Se os primeiros cristãos se sentiam livres para atribuir ao Jesus histórico os ensinamentos que eles acreditavam que o Senhor ressuscitado estava revelando a eles, por que nenhum ensinamento de Jesus sequer trata destas controvérsias em particular? Nos sabemos, de Atos 15 e Gálatas 2, que a questão da circuncisão, como parte da política dos judaizantes para fazer com que os gentios, que estavam se tornando cristãos, obedecessem a toda a lei judaica, ameaçou dividir a Igreja Primitiva. O caminho mais simples para solucionar a controvérsia teria sido que um dos participantes do Concilio Apostólico de Atos 15 tivesse citado o próprio ensinamento de Jesus sobre o assunto. Nos, então, esperaríamos que um dos Evangelhos contivesse algum ensinamento de Cristo sobre o tema, se a circuncisão devesse ser exigida dos seus seguidores. Mas nem o livro de Atos nem os Evangelhos contem uma única palavra atribuída a Jesus para solucionar este debate. Aparentemente, a Igreja Primitiva não se sentiu livre para inventar ensinamentos de Jesus, sabendo que Ele não os tinha proclamado durante a sua vida terrena. Um exemplo similar vem de 1 Coríntios 12-14. Falar em línguas provou causar muita discórdia em Corinto. Qual seria a melhor maneira de solucionar o debate sobre falar em línguas, senão citar palavras de Cristo? E certamente nos esperaríamos encontrar algumas palavras de Cristo sobre o tema nos Evangelhos. Mas estas palavras jamais aparecem! Na verdade, uma lista considerável de contrastes pode ser compilada entre questões que foram importantes para Jesus durante o seu ministério pré-crucificação em Israel e questões que eram importantes para a Igreja pós-ressurreição. E o Novo Testamento, coerentemente, as conserva separadas.59

Alem disso, pelo menos em uma ocasião, quando estes interesses se sobrepõem, Paulo claramente empreende grandes esforços para distinguir o que Jesus disse, durante a sua vida terrena, daquilo que ele acreditava que Jesus lhe estava dizendo, quando escrevia suas epistolas sob inspiração divina. O exemplo em questão aparece em 1 Coríntios, no tema de casamento e divorcio. Em 7.10,11, Paulo proclama: "Aos casados, mando, não eu, mas o Senhor, que a mulher se não aparte do marido... E que o marido não deixe a mulher". Aqui, Paulo resume o conteúdo do ensinamento do Jesus histórico em passagens como Marcos 10.1-12 e paralelas. Mas sobre a questão de um cônjuge incrédulo desejar deixar seu esposo ou sua esposa depois que esta pessoa tivesse se tornado cristã, Jesus não tinha ensinado nada. Assim, Paulo continua, em 1 Coríntios 7.12: "Mas, aos outros, digo eu, não o Senhor: se algum irmão tem mulher descrente, e ela consente em habitar com ele, não a deixe. E se alguma mulher tem marido descrente, e ele consente em habitar com ela, não o deixe". Paulo não esta dizendo aqui que ele já não esta mais escrevendo sob inspiração divina! O versículo 40 deixa claro que ele pensa que todas as suas instruções neste capitulo são orientadas pelo Espírito. Na verdade, Paulo aqui fala com um tom de ironia, uma vez que esta combatendo oponentes em Corinto os quais declaram que somente eles tem o Espírito. Na verdade, o versículo 12 quer dizer simplesmente que ele tem que confiar naquilo que acredita que Deus esta lhe dizendo, sem ser capaz de provar isso, citando uma palavra da tradição dos ensinamentos terrenos de Jesus. A mesma explicação, sem duvida, e valida para o versículo 25. Longe de mesclar casualmente os ensinamentos de Cristo anteriores e posteriores a ressurreição, Paulo cuidadosamente os conserva separados. Tudo isso deve aumentar o nosso credito na confiabilidade histórica dos Evangelhos.60

5 - O Novo Testamento é historicamente confiável?

Por Craig L. Bloomberg


O Sucesso do Empreendimento dos Evangelistas

Poderíamos concordar que Mateus, Marcos, Lucas e João pensavam que estavam escrevendo um bom material de historia e biografia, pelos padrões do seu tempo. Mas eles foram bem-sucedidos? Aqueles que respondem negativamente a esta pergunta freqüentemente baseiam a sua opinião em uma ou em todas as três alegações a seguir.

- Interesse Histórico?


Para começar, com freqüência se discute que a primeira geração de cristãos não teria estado terrivelmente interessada em preservar um registro histórico preciso de suas origens. Três linhas de raciocínio, a primeira vista, parecem sustentar essa afirmação. Em primeiro lugar, ha a alegação de que os profetas cristãos antigos falavam, em nome do Senhor ressuscitado, aquilo que acreditavam que Deus estava dizendo as igrejas, por seu intermédio, e que estas palavras teriam se mesclado com os ensinamentos do Jesus histórico. Afinal, era a mesma pessoa que falava em ambas as ocasiões, e os oráculos greco-romanos parecem ter adotado pratica similar. Em segundo lugar, a primeira geração do cristianismo certamente alimentava uma esperança viva do fim do mundo, propiciado pelo retorno de Cristo, dentro do período da sua vida. Sendo assim, quem estaria vivo para ler uma historia sobre o seu movimento? Finalmente, a tendência ideológica dos autores — um comprometimento apaixonado com a teologia cristã — inevitavelmente teria distorcido os seus relatos. Nós devemos considerar estas possibilidades, cada uma por sua vez.

Com relação a profecia cristã, independentemente de possíveis analogias com outras religiões da época, o único dado atual que temos em o Novo Testamento contradiz a declaração de que as palavras de Jesus durante a sua vida estivessem mescladas com o que os cristãos posteriores acreditavam que Ele estava dizendo as igrejas. As três referencias reais em que conhecemos o conteúdo da profecia cristã do século I distinguem claramente as suas palavras das do Jesus histórico. Duas vezes no livro de Atos, Agabo aparece em cena para profetizar — a primeira vez, a respeito de uma fome que viria a Judéia, e a segunda vez, sobre o iminente aprisionamento de Paulo em Jerusalém (At 11.28; 21.11). Uma vez no livro do Apocalipse, lemos que as palavras especificas de João as igrejas locais lhe tinham sido dadas como profecia (Ap 2-3 como resultado de 1.3). Em nenhuma passagem dos Evangelhos estas coisas aparecem como se Jesus as tivesse dito durante a sua vida. A hipótese, pelo contrario, e infundada.36

Com respeito a crença de que o mundo poderia acabar a qualquer momento, e importante observar que esta não era uma convicção exclusiva dos cristãos. Os judeus, a partir do século VIII a.C, tiveram uma sucessão de profetas que declaravam que o Dia do Senhor era chegado (por exemplo, Jl 2.1; Ob 14; He 2.3). Mas os séculos passaram, o mundo continuou a existir na sua forma atual, e os judeus escreveram a pregação destes mesmos profetas em livros que fariam parte do seu Canon bíblico. No período intertestamentario, Salmos 90.4 tornou-se um texto favorito para explicar como o judaísmo ainda podia crer em um imi¬nente dia do juízo: "Mil anos são aos teus olhos [aos olhos do Senhor] como o dia de ontem que passou".37 O que parece ser longo a partir de uma perspectiva humana e muito breve da perspectiva eterna de Deus. Alem disso, a seita dos essênios de Quaram, que nos deu os Rolos do mar Morto, abrigava uma esperança tão vivida como qualquer grupo judeu pela intervenção iminente e apocalíptica de Deus neste mundo, para punir os seus inimigos e defender os seus seguidores. Mas os essênios produziram mais literatura, incluindo obras que permitem que os acadêmicos de hoje apresentem a evolução da sua comunidade, do que qualquer outro grupo judeu que conhecemos nos tempos pré-cristãos. Uma vez que todos os primeiros cristãos eram originalmente judeus, e duvidoso que uma convicção de que Jesus pudesse retornar durante o tempo da sua vida os impedisse de estar interessados em registrar a sua historia.

Quanto a noção de que um forte comprometimento ideológico necessariamente leva a falsificação ou distorção de registros históricos, realmente, as vezes, o oposto e verdadeiro. Não ha duvida de que um programa especial pode distorcer os fatos, mas em certos casos os mes¬mos compromissos ideológicos que levam a registrar uma determinada fração da historia exigem que se conte a historia corretamente. Considere o exemplo dos historiadores judeus depois do holocausto nazista na metade do século XX. Precisamente por causa da sua apaixonada preocupação de que tais atrocidades jamais acontecessem novamente ao seu povo (ou a qualquer outro), os cronistas judeus cuidadosamente coletaram e divulgaram, detalhe apos detalhe, os horrores que o seu povo tinha vivenciado, culminando na morte de seis milhões de pessoas. Por outro lado, foram certos autores não judeus mais recentes, e não pessoalmente envolvidos nos eventos da Segunda Guerra Mundial, que geraram os relatos revisionistas, declarando falsamente que um numero muito menor de vitimas estava envolvido.

A pratica dos autores do Novo Testamento corresponde intimamente a este exemplo dos historiadores judeus modernos. O que distinguia as declarações de judeus e cristãos das declarações de todas as outras religiões no antigo mundo mediterrâneo era a fé de que Deus tinha agido de modo singular na historia, por intermédio de seres humanos reais e recentes, para propiciar a salvação para a humanidade. O que distinguia o cristianismo de suas raízes judaicas era a declaração de que a oferta decisiva, que expiaria os pecados de uma vez por todas, era fornecida pela crucificação do homem Jesus de Nazaré, que foi subseqüentemente justificado por Deus pela sua ressurreição corpórea da sepultura.38 Se essas declarações não forem historicamente precisas, o cristianismo desmorona. Portanto, a mesma teologia que os céticos afirmam que teria deturpado os relatos do Novo Testamento muito provavelmente agia como uma proteção contra tal distorção. Alem disso, ate onde sabemos, os antigos jamais escreveram a historia sem alguma lente ideológica por meio da qual estes eventos eram examinados. A sua atitude, basicamente, era perguntar que objetivo havia em registrar a historia se o povo não pudesse aprender algumas lições disso. Ao mesmo tempo, contrariamente as declarações de alguns acadêmicos modernos, eles poderiam distinguir a boa historia da ma, mesmo considerando propósitos propagandísticos (veja especialmente Luciano, On Writing History).39

- Habilidade para Escrever a Historia?


Podemos admitir que os primeiros seguidores de Jesus estiveram interessados em escrever a historia da fundação do seu movimento. Mas surge uma segunda pergunta. Eles seriam capazes de escrever uma historia confiável? Mesmo se aceitarmos as datas conservadoras para os Evangelhos Sinóticos e o livro de Atos (os anos 60) e se reconhecermos que estes livros dependiam de fontes escritas ainda mais antigas, de testemunhos oculares e da tradição oral, trinta anos parece um tempo longo demais para que tudo fosse preservado intacto. Bart Ehrman fala em nome de muitos céticos quando compara o processo ao jogo infantil do "telefone sem fio".40 Em uma sala cheia com umas vinte pessoas, sussurre uma frase comprida e complicada a primeira pessoa, pega que ela sussurre a próxima pessoa o que ouviu e recorda, e o processo deve continuar ate que a mensagem tenha sido "transmitida" a ultima pessoa da sala. Quando você pedir que esta ultima pessoa repita em voz alta a mensagem, para que todos ouçam, normalmente e cômico, porque a mensagem ficou muito deturpada. Como podemos imaginar seriamente os cristãos preservando, por todo o Império Romano, durante toda uma geração, o enorme numero de detalhes que encontramos nos Evangelhos e no livro de Atos?

A resposta mais simples a essa pergunta e que o processo da transmissão de informações sobre Jesus e a Igreja Primitiva trazia pouca semelhança com o comportamento descontrolado de crianças brincando de "telefone sem fio". O Império Romano do século I continha somente culturas orais. Toda informação importante circulava de boca em boca. A maioria das pessoas que vivia no império era analfabeta. Os homens judeus tinham uma instrução muito maior do que o resto da população, porque muitos deles freqüentaram a escola em sinagogas locais, desde os cinco anos de idade ate os doze ou treze. Eles teriam aprendido o suficiente para serem capazes de ler as Escrituras em hebraico, mas poucos teriam meios para possuir suas próprias copias. Assim a educação acontecia, como também era o caso no mundo greco-romano, por memorização. Muitos homens judeus tinham memorizado consideráveis fragmentos do que nos chamamos de Antigo Testamento. Os aspirantes a rabinos, que se submetiam a treinamento adicional durante a sua adolescência como alunos de reverenciados professores judeus, em alguns casos aprendiam todo o conteúdo das Escrituras. Ha ate mesmo relatos de escribas que concluíam uma copia do Antigo Testamento e então um respeitado rabino a revisava, comparando-a com a versão que tinha memorizado! Meninos que tinham acesso a educação no mundo greco-romano, as vezes, memorizavam a Ilíada e a Odisséia de Homero, parcial ou integralmente. Nesse tipo de cultura, confiar o conteúdo de um livro tão pequeno como um Evangelho a memória teria sido comparativamente fácil, especialmente quando observamos que 80 a 90% dos ensinamentos de Jesus são formulados em forma poética.41

Pode, no entanto, haver objeções de que nos não temos quatro Evangelhos que sejam idênticos, palavra por palavra. A memorização pode explicar algumas das similaridades, embora já tenhamos observado que a dependência literária que um Evangelho tem de outro ou de uma fonte comum provavelmente explique o numero de textos em que aparecem palavras idênticas. Mas o que acontece com todas as diferenças? Uma das respostas a tal pergunta envolve uma segunda dimensão para o costume de memorização das antigas tradições sagradas do Oriente Médio. As tradições sagradas transmitidas unicamente de boca a boca eram narradas, algumas vezes ate mesmo cantadas, por contadores de historias em pequenos vilarejos onde as pessoas freqüentemente se reuniam ao redor de uma fogueira depois de anoitecer, depois do jantar, em um ambiente (sem eletricidade) onde havia pouco para fazer, se não fosse isso. Nestas situações, e principalmente para manter o interesse em historias bastante conhecidas, qualquer contador de historias tinha o direito de omitir ou incluir, de expandir ou abreviar e de inserir comentários sobre os vários detalhes das historias. Mas essa flexibilidade na transmissão tinha limites específicos. Os pontos fixos em cada historia, sem os quais os relatos não poderiam ser compreendidos apropriadamente, tinham que ser preservados com exatidão, e a comunidade tinha a responsabilidade de interromper e corrigir um contador de historias, se estes pontos fixos não fossem adequadamente apresentados. Na maioria dos casos, uma dada "performance" variava entre 10 a 40% da anterior. E interessante constatar que esta porcentagem e muito similar a variação de um Evangelho Sinótico em relação Ao outro, sempre que dois ou mais narram o mesmo episódio. Assim, provavelmente nós precisamos caracterizar “a evolução na tradição oral” além da cópia literária e da edição teológica, como um componente significativo na formação dos evangelhos, da maneira como os conhecemos.42

Dois outros elementos na antiga tradição oral cristã a separam drasticamente da analogia do “telefone sem fio” de Ehrman. Em primeiro lugar, existe evidência de que os rabinos permitiam que os indivíduos tomassem nota depois dos ensinamentos, para facilitar o aprendizado e a memorização. Embora esta noção tenha sido satirizada, não é, de maneira alguma, irracional imaginar alguns dos discípulos de Jesus rabiscando lembretes para si mesmos depois de um dia de exposição ao seu ministério de ensinamento, para ajudá-los a recordar os seus pontos principais. Algo semelhante a isso parece ter sido o processo utilizado em Qumran, para preservar os ensinamentos do seu “Professor de Justiça” anônimo.43 Em segundo lugar, o costume de Pedro, João e Tiago no livro de Atos, e nas epístolas, de realizar viagens ou fazer reuniões para acompanhar a chegada do evangelho a uma nova localização geográfica, mostra que a Igreja Primitiva desejava assegurar a exatidão daquilo que era pregado ou ensinado (Veja especialmente At 8; 15; 21; Gl 1 – 2). A Igreja recém-nascida não era uma entidade amorfa e descontrolada como muitas vezes é retratada; mas, ao contrário, era uma comunidade “impulsionada por objetivos” com uma reconhecida liderança e mecanismos de responsabilidade.44

- Exatidão no produto final?


Nós vimos que os autores dos Evangelhos e do livro de Atos provavelmente estiveram interessados na preservação das biografias de Jesus e da história da primeira geração do cristianismo. Nós observamos que todos os mecanismos estavam funcionando no mundo deles, para que tivessem feito isto com um alto grau de exatidão. A última pergunta desta série, de que devemos tratar agora, é: “Mas eles foram bem-sucedidos nesta tarefa?” Quando comparamos os relatos dos quatro Evangelhos, onde eles são paralelos, ou quando tentamos adequar a informação no livro de Atos juntamente com a informação histórica encontrada nas epístolas de Paulo, percebemos harmonia ou desacordo? Certamente, foram elaboradas longas listas de supostas contradições aqui e em outras passagens da Bíblia.45 Será que estas seriam suficientes para refutar declarações de confiabilidade histórica independentemente dos argumentos mais genéricos apresentados até aqui?

- Os quatro Evangelhos


A única maneira completamente adequada de responder a esta pergunta seria considerar as supostas contradições, uma por vez, o que resultaria em um livro muito mais extenso. Em outros trabalhos, investiguei praticamente todas as famosas supostas contradições, tanto entre os três Sinóticos, como entre os Sinóticos e João, e recomendo que o leitor leia estas discussões completas.46 Uma considerável maioria das aparentes discrepâncias desaparece, quando recordamos os padrões mais livres de narração histórica do mundo antigo (veja o tópico “Os Gêneros dos Evangelhos e do Livro de Atos”). Mas mesmo o nosso mundo moderno e científico preserva convenções similares. Ninguém pensa em acusar o repórter de um erro quando ele declara: “O Presidente Fulano de Tal anunciou hoje que...” quando, na verdade, foi o seu secretário de imprensa que leu um documento, escrito por um roteirista e supostamente apresentado ao presidente, ainda que rapidamente. Assim, não deveríamos ficar surpresos quando Mateus converte a narrativa do centurião gentio que pedia um milagre de Jesus, por meio de judeus intermediários (segundo Lucas 7.6) em uma narrativa em que o próprio centurião vem com o pedido (Mt 8.5). Agir por meio de um intermediário pode ser descrito como agir por si mesmo.

Inúmeros outros exemplos poderiam ser fornecidos. A última Ceia foi celebrada na noite da refeição da Páscoa (aparentemente segundo Marcos 14.12-16), ou antes dela (aparentemente segundo João 18.28 e 19.14)? Provavelmente foi na Páscoa que dura uma semana, ao passo que o versículo 19.14 pode ser interpretado como o Dia da Preparação para o sábado durante a semana da Páscoa (como na NVI). Jesus enviou os demônios aos porcos em Gerasa (Mc 5.1; Lc 8.26, ARA) ou em Gadara (Mt 8.28)? Provavelmente foi perto de Khersa – uma cidade na margem oriental do mar da Galiléia, cuja grafia em grego poderia facilmente resultar em Gerasa – na província de Gadara.47 O que queremos dizer aqui é que nenhum destes problemas é novo. Os pais da Igreja Primitiva, escrevendo no período do século II a VI, estudaram o Novo Testamento o suficiente para reconhecer todas as aparentes discrepâncias no texto que os críticos modernos enfatizam. O famoso comentário de Agostinho, do século V, intitulado Harmonia dos Evangelhos, trata de um grande número destas discrepâncias. Hoje, praticamente qualquer comentário evangélico detalhado sobre um dos quatro Evangelhos ou o livro de Atos incluirá possíveis soluções para estes problemas na sua exposição, passagem a passagem. Nem todas as harmonizações são igualmente convincentes, e muitas “contradições” tem mais de uma solução plausível. Mas a questão é que homens e mulheres cuidadosos e atentos, ao longo da História da Igreja, e plenamente cientes destes problemas, também reconheceram que nenhum deles precisa minar a confiança do outro no que diz respeito à confiabilidade da Bíblia. É muito freqüente que céticos modernos dêem a entender que, se nós conhecemos hoje algo que nossos predecessores não conheciam, isso agora torna indefensável a fé na confiabilidade histórica das escrituras. Essa declaração é simplesmente falsa.
De fato, o que mudou são as atitudes de muitos acadêmicos com relação a harmonização. Como observamos acima, os historiadores clássicos são muito mais confiantes sobre a nossa capacidade de recuperar fatos históricos de antigos documentos, mesmo quando eles parecem conter pequenas contradições, do que o são muitos acadêmicos bíblicos. Um excelente exemplo disso vem da obra do historiador canadentes, Paul Merkley. A travessia de Júlio Cesar do rio Rubicon quando retornava da Gália à Itália em 49 a.C. frequentemente é apresentada como um fato indiscutível da história romana, que também teve importância histórica. Com este ato, Céar se comprometeu com a guerra civil, e o curso da república romana foi alterado, para sempre; ela se tornaria um império. O que frequentemente não é mencionado é que não sabemos, ao certo, a data exata, nem o local desta travessia. Além disso, como acontece com os Evangelhos, nós temos quatro relatos do evento, narrado por historiadores posteriores – Valleius, Paterculus, Plutarco, Suetônio e Appian. Somente o primeiro destes quatro homens nasceu antes da metade do século I depois de Cristo. Todos afirmam ter confiado em uma mesma testemunha ocular, ou seja, Ansius Pollio, cujas obras desapareceram completamente. Os quatro relatos variam aproximadamente da mesma maneira que os Evangelhos, quando seus conteúdos se sobrepõem. Suetônio inclusive chega a introduzir um milagre no seu relato, declarando que a decisão de César foi motivada porque ele viu “uma aparição de tamanho e beleza sobre-humanos” que “estava sentada à margem do rio, tocando uma flauta de pastor”. Mas a travessia de César do Rubicon continua a ser citada como um dos mais BM estabelecidos fatos históricos da antiguidade. Uma confiança similar deve ser transferida para os quatro Evangelhos, que permanecem muito próximos, em tempo e acesso aos eventos que eles narram.48

Em outros trabalhos, mostrei como os historiadores da vida de Alexandre, o Grande, assim como estudantes de Josefo, que comparam os seus vários textos sobre uma dada pessoa ou evento, adotam regularmente uma forma cuidadosa de harmonização de detalhes aparentemente discrepantes. Somente porque algumas harmonizações se mostram não plausíveis, isto não significa que todo o método deva ser descartado. Por exemplo, é improvável que a solução ao problema das várias localidades onde Jesus cura o cego, perto de Jericó, dos Evangelhos Sinóticos (Quando Jesus estava “saindo” da cidade – Mc 10.46; Mt 20.29 – ou quando Ele estava “chegando perto” de Jericó – (Lc 18.35) se dá com a suposição de duas Jericós diferentes, uma delas, o local do Antigo Testamento que está em ruínas, e a outra, a cidade do Novo Testamento, como já foi sugerido algumas vezes. Nenhum ouvinte do século I suporia que um narrador tivesse em mente uma cidade desabitada desde muitos séculos, quando falasse simplesmente de “Jericó”. A expressão grega, traduzid como “chegando perto” pode simplesmente querer dizer “estando na proximidade de”.49 Por outro lado, somente Mateus fala de Jesus curando dois cegos nesta narrativa (Mt 20.30-34). Mês nem Marcos nem Lucas declaram que havia apenas uma pessoa presente, de modo que é natural imaginar que estes dois autores do Evangelho, ou a tradição oral que eles herdaram, tinham simplesmente simplificado o relato e falado somente daquele que interagiu mais diretamente com Jesus e cujo nome foi preservado – Bartimeu. Esse tipo de harmonização “aditiva” é comum em estudos acadêmicos de outros personagens antigos.50

Mas o que acontece com as diferenças muito maiores entre os Evangelhos Sinóticos e o Evangelho de João? Novamente terei que recomendar ao leitor a minha discussão muito mais ampla deste tema, em um livro inteiro sobre o assunto.51 Mas podemos fazer algumas generalizações aqui. Em primeiro lugar, com o risco de declarar o óbvio, uma das razões porque João parece tão diferente é porque ele não depende diretamente de um ou mais Sinóticos, da mesma maneira como os Evangelhos de Lucas e Mateus dependem do de Marcos. Se os quatro evangelistas tivessem escrito, totalmente independente um dos outros, haveria tanta diversidade de detalhes entre os Sinóticos como há entre os Sinóticos e João. Embora usando hipérboles, o comentário final de João, de que “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez”, de modo que “se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem”, certamente se aplica a todos os personagens – principais, complexos e influentes – da história. Se não tivéssemos três Evangelhos tão semelhantes, as diferenças entre João e qualquer um dos outro não seria tão incisiva.

Em segundo lugar, e intimamente relacionado com isso, nós devemos nos lembrar do quanto João e os Sinóticos têm em comum, e não nos concentrar meramente nas diferenças. Uma lista parcial incluiria:


1. O retrato de João Batista como cumprimento de Isaías 40.3 e como percussor do Messias;
2. O contraste entre o batismo de João, com água, e o futuro batismo do Messias, com o Espírito Santo;
3. O espírito ungindo Jesus, como testificado por João Batista;
4. A refeição dos cinco mil/
5. Jesus andando sobre a água;
6. A ordem a um paralítico: “Toma a tua cama e anda”;
7. A cura do filho de um centurião romano, à distância;
8. Curas milagrosas que infringem as leis do sábado, que proibiam o trabalho neste dia;
9. A recusa de Jesus em realizar milagres meramente para satisfazer os seus oponentes;
10. O fracasso das tentativas de prender Jesus, prematuramente;
11. A amizade de Jesus com a reflexiva Maria e a atarefada Marta;
12. A insistência de Jesus na necessidade de um novo nascimento espiritual;
13. A promessa de uma colheita abundante para os lavradores espirituais;
14. A rejeição de um profeta na sua terra natal;
15. O juízo pelas obras dos incrédulos.
16. O Pai revelando o Filho, e ninguém conhecendo plenamente o Pai, senão o Filho;
17. Jesus e os seus discípulos, como “a luz do mundo”;
18. O ensinamento de Jesus, funcionando, em parte, para endurecer os corações daqueles que já o tinham rejeitado, cumprindo Isaías 6.9,10;
19. Jesus como o bom pastor;
20. O verdadeiro discipulado como a atitude de servir;
21. Jesus resistindo à tentação para abandonar o caminho para a cruz;
22. Receber Jesus é como receber àquele que o enviou;
23. Um discípulo não é maior do que o seu Mestre;
24. A promessa de que o Espírito Santo dirá aos seguidores de Jesus o que deverão dizer no futuro.
25. A futura expulsão dos crentes das sinagogas judaicas;
26. A dispersão dos crentes expulsos, por todo o mundo conhecido; e
27. Os discípulos recebem a autoridade para perdoar ou reter os pecados dos outros.52


E a lista poderia ser ainda maior.

Em terceiro lugar, as circunstâncias singulares que conduzem à composição do relato do Quarto Evangelho, pela decisão de João de narrar episódios diferentes da vida de Cristo. Combinando evidências internas e externas, parece que o Evangelho de João foi escrito no final do século I, para as várias congregações de Éfeso e das suas redondezas, para combater desafios semelhantes aos que a igreja daquela comunidade estava enfrentando. Por um lado, o professor gnóstico Cerinto tinha conquistado seguidores entre os cristãos dali, promovendo, entre outras coisas, um “docetismo” que aceitava a divindade de Jesus, mas que negava a sua humanidade. As inúmeras referências, por todo o Evangelho de João, a Jesus realmente se tornando carne, tendo emoções, comendo e bebendo, sendo subordinado ao seu Pai, e não fazendo nada além de realizar a vontade do seu Pai, o que finalmente incluiu morrer uma morte torturante e completamente humana, tudo isso, sem dúvida, está incluído para combater este erro teológico. Por outro lado, no final do século I, a separação entre igreja e sinagoga se fez completa principalmente porque os líderes judeus tinham excomungado o seu próprio povo, que professava a fé em Jesus, como o messias. Assim, uma alta porcentagem das passagens exclusivas de João envolve Jesus pregando a líderes judeus, ou discutindo com eles, para justificar seus atos e suas declarações. A leitura destas histórias deveria encorajar os cristãos judeus de que eles tinham realmente tomado a decisão correta, seguindo Jesus e também dar-lhes “munição” evangelística, para lidar com seus amigos judeus e seus familiares não salvos.53

Em quarto lugar, há inúmeros exemplos fascinantes de integração entre o Evangelho de João e os Sinóticos em que um episódio ou declaração nos Sinóticos faz sentido somente se tivermos informações exclusivas de João, e vice-versa. Por exemplo, João 3.24 faz uma referência breve a uma época em que “ainda João não tinha sido lançado na prisão”, mas em nenhuma outra passagem no Evangelho de João há qualquer referencia a este aprisionamento. Supostamente João estava presumindo que os seus ouvintes tivessem pelo menos ouvido falar sobre este evento, narrado em Marcos 6.14029 e passagens paralelas. Ou, novamente, no seu relato sobre os julgamentos de Jesus. João quase omite completamente a aparição culminante de Cristo diante do Sinédrio, presidido por Caifás. Mas faz duas observações breves que mostram que ele tem conhecimento deste evento, quando escreve: “Anás mandou-o, manietado, ao sumo sacerdote Caifás” (Jo 18.24) e “levaram Jesus da casa de Caifás para a audiência...” (v. 28); Novamente, João deve também supor que o seu público conhecesse a história (ela aparece em todos os Sinóticos – Mc 14.53-65 e passagens paralelas).Enquanto isso, João está interessado em descrever uma audiência preliminar diante do sumo sacerdote anterior, Anás, o sogro de Caifás (Jo 18.13. 19-23).

Em outros casos, a integração trabalha na direção oposta. Os que lêem somente os Evangelhos Sinóticos poderão se perguntar por que os líderes judeus tiveram que para enviar Jesus ao governador romano, Poncio Pilatos (Mc 15.1-3, e paralelas). Se tinham considerado Jesus culpado de blasfêmia, por que simplesmente não o apedrejaram de acordo com a sua lei? Somente João fornece a resposta: os líderes judeus, sob o governo de Roma, não tinham permissão de executar a pena de morte nestes casos (Jô 18.31). De maneira similar, os que lêem somente os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas poderão se perguntar se os primeiros discípulos de Jesus realmente deixaram suas ocupações imediatamente para segui-lo na primeira vez em que Ele os viu. Marcos 1.16-20 e passagens paralelas certamente poderiam ter esta interpretação, sem nenhuma informação adicional. Mas João 1.35-42 deixa claro que vários dos apóstolos encontraram Jesus pela primeira vez quando eram seguidores de João Batista. Cada um deles teria testemunhado o seu batizado, familiarizando-se com o seu ministério, e mais tarde respondeu a um chamado mais formal para se tornar um dos doze que literalmente trabalharam lado a lado com Jesus.54

- O livro de Atos

Finalmente, consideramos um tipo diferente de suposta contradição – no livro de Atos. Como a narrativa do segundo volume de Lucas contém muitas informações acerca da pregação de Paulo, freqüentemente é feita a alegação de que a ênfase teológica que emerge dos seus sermões no livro de Atos não se encaixam bem com os temas principais das cartas incontestáveis de Paulo. Phillip Vielhauer escreveu um clássico estudo, na metade do século XX, fazendo esta alegação. Ele identificou quatro áreas em que acreditava que Paulo do livro de Atos era fundamentalmente incompatível com Paul das epístolas. (1) No livro de Atos, Paulo é favorável com relação à teologia natural ou à revelação geral (a idéia de que as pessoas podem vir a ter algum conhecimento de Deus e até mesmo a salvação, tendo em vista o desígnio na criação – veja especialmente o seu sermão no Areópago, em Atenas (At 17.16,33); nas epístolas, Paulo enfatiza que a lei meramente aponta a incapacidade da pessoa de guardá-la, quando os rituais cerimoniais judaicos agora pertencem ao passado (veja especialmente Gl 3 – 4). (3) No livro de Atos, o Jesus ressuscitado forma o centro da mensagem do Evangelho, em praticamente cada sermão registrado; nas cartas, Paulo se concentra unicamente na crucificação (1Co 2.2). (4) No livro de Atos, a esperança iminente do retorno de Cristo diminui; nas cartas, ela continua vibrante (veja especialmente 1Ts 4.15).55

Nenhuma destas quatro supostas contradições, no entanto, resume bem os dados complexos no livro de Atos ou nas epístolas. Nada, no livro de Atos, sugere que alguém realmente possa ser salvo, separado de Cristo; o texto 17.27 fala apenas das pessoas “achando” Deus em algum sentido não especificado, mesmo quando Lucas emprega o incomum modo optativo com o verbo, sugerindo que Paulo duvida de que isso possa ser feito. Romanos 1.19,20, ao contrário, declara que as pessoas deveriam saber que Deus existe, com base na criação. Quanto à atitude de Paulo com relação a Lei, o livro de Atos pode retratá-lo como o grande defensor da graça (At 13.39), e as epístolas podem mostrar Paulo guardando a lei, para tentar conquistar judeus para Cristo (1 Co 9.20). A questão, tanto no livro de Atos como nas epístolas é se uma determinada lei e apresentada como necessária para a salvação. Paulo ira resistir totalmente a isso.
Voltando a questão sobre o cerne do evangelho, Atos 20.28 ressalta a expiação através do sangue de Cristo, ao passo que 1 Coríntios 15 ensina extensivamente sobre a ressurreição. Esta claro que e uma questão de ênfase e não de contradição, o que leva os textos a destacar um aspecto da obra de Cristo e não outro. Finalmente, as epistolas de Paulo revelam que ele reconhece que pode não viver para ver o retorno de Cristo (por exemplo, Filipenses 1.19-26), ao passo que o livro de Atos retrata Paulo pregando que o seu tempo e o ponto decisivo nas gerações que iniciarão o juízo de Deus (At 17.31). David Wenham habilmente investigou estas questões e outras correlatas, e concluiu que as diferenças entre o livro de Atos e as epistolas de Paulo são suficientemente substanciais para provar que Paulo não escreveu o livro de Atos! Mas as diferenças dificilmente demonstram uma tensão fundamental entre Paulo e Lucas. Cada autor tem suas próprias razoes para enfatizar porções complementares do ministério de Paulo.56