Por Craig L. Bloomberg
Autoria e Data
Uma vez que estabelecemos que possuímos uma reconstrução confiável do que um documento antigo continha, com base na comparação dos manuscritos que existem de uma data mais antiga, estamos prontos pra começar a avaliar a confiabilidade do seu conteúdo. A próxima pergunta padrão para os historiadores da antiguidade é se podemos determinar o autor do documento e a data em que ele foi escrito. Se acontecer de o autor ser alguém que estava em posição para conhecer os fatos sobre o povo ou os eventos descritos, se pudermos determinar que o seu caráter era, de modo geral, confiável, a nossa convicção da confiabilidade do documento aumenta. Se a data em que a obra foi escrita estiver dentro do período de duração da vida de testemunhas oculares dos eventos narrados, a nossa confiança aumenta, similarmente. Se estas condições não se cumprirem, nós nos tornamos mais céticos a respeito do conteúdo da história que é narrada.
Como os Evangelhos e o livro de Atos se mostram, quando testados de acordo com esses critérios. Admiravelmente bem, pelo menos pelos padrões antigos. A rigor, os autores destes cinco livros são anônimos, uma vez que os nomes Mateus, Marcos, Lucas e João não aparecem em nenhum versículo como os autores destes documentos. Os nomes aparecem, no entanto, em todos os manuscritos existentes, como títulos dos quatro Evangelhos. Mas é improvável que quatro dos primeiros cristãos tivessem decidido independentemente chamar seus textos de “O Evangelho segundo X” (onde “X” representa o nome do autor). É mais provável que a Igreja Primitiva acrescentasse esses títulos paralelos para distinguir um Evangelho do outro, quando eles foram combinados para formar uma coletânea de quatro partes.18
Por outro lado, entre os muitos autores cristãos do período entre o século II e o IV, que comentaram acerca das origens do Novo Testamento, nenhum nome, senão Mateus, Marcos, Lucas e João, jamais foi oferecido como um possível autor dos Evangelhos e do livro de Atos. O mais antigo destes autores, Papias, foi um discípulo do apóstolo João e escreveu no início do século II, apenas uma geração depois da morte deste último apóstolo. Uma consideração de tudo o que Papias declarou sobre os Evangelho está além do nosso alvo aqui, e há algumas das suas declarações que não parecem completamente confiáveis.19 MS a Igreja Primitiva teria uniformemente atribuído os três primeiros Evangelhos e o Livro de Atos a Mateus, Marcos e Lucas, sem crer que eles tivessem sido os seus verdadeiros autores? Afinal, os Evangelhos e os livros apócrifos de Atos do final do século II até o século V foram todos (falsamente) atribuídos a cristãos primitivos influentes e de elevada reputação, para tentar fazê-los parecer tão confiáveis e autênticos quanto possível. Assim, nós temos Evangelhos supostamente escritos por Pedro e Tiago, Tomé e Filipe, Bartolomeu e Matias (substituto de Judas, que traiu Jesus) e até mesmo Nicodemos e Maria. De maneira similar, os livros apócrifos de Atos aparecem em nome de André, João, Pedro, Paulo e Tomé.20
Em comparação, Marcos e Lucas são personagens muito mais obscuros nas páginas do Novo Testamento. O nome de Marcos não aparece em nenhuma parte dos Evangelhos; no livro de Atos, ele é mais conhecido como o companheiro de viagem de Paulo e Barnabé, que os abandonou na sua primeira viagem missionária (At 13.13). Lucas aparece apenas nas saudações de encerramento em três das epístolas de Paulo, que também nos informam que ele era um médico (Cl 4.14; cf. também 2 Tm 4.11, FM 24). Nem marcos nem Lucas fazem parte do grupo dos doze “apóstolos”; ambos provam ser candidatos improváveis para uma atribuição de autoria, a menos que realmente tenham escrito os documentos a eles atribuídos (no caso de Lucas, o Evangelho que traz o seu nome e o livro de Atos dos apóstolos). Mateus era um dos Doze, mas, tendo sido um coletor de impostos que trabalhava (indiretamente) para os odiados romanos, ele teria sido o mais notório, de um ponto de vista judeu ortodoxo. Como Simão, o Zelote (na extremidade oposta do espectro político, violentamente oposto a Roma), Mateus não teria sido um dos primeiros nove ou dez discípulos a ser escolhido, se alguém estivesse tentando emprestar autoridade ou credibilidade a um documento fictício escrito por outra pessoa.
João, por outro lado, pertencia ao círculo mais íntimo dos três discípulos (com seu irmão Tiago e Pedro) que compartilhavam de experiências na vida de Jesus das quais os demais não participavam. Um livro apócrifo de Atos é atribuído a ele, como já observamos, e o testemunho de Papias não deixa claro se ele pensava que foi João, o apóstolo, chamado o Velho, que pertencia à segunda geração de seguidores do apóstolo. Mas a questão para a qual não apareceu nenhuma boa resposta é a seguinte: Se o autor do Evangelho de “João” não era o filho de Zebedeu, e o apóstolo do mesmo nome, por que este autor (diferentemente dos Sinóticos – Mateus, Marcos e Lucas) sempre se refere a João Batista meramente como “João” e espera que os seus ouvintes saibam de qual João estava falando. E a aparente referência a si mesmo feita pelo autor deste Evangelho, cinco vezes referindo-se ao “discípulo que Jesus amava”, é perfeitamente compatível com alguém que pertencia ao círculo intimo de Jesus (veja Jô 13.23-25; 19.26,27; 34,35; 20.2,5,8; 21.1-7; 20-22).21
Acadêmicos liberais do Novo Testamento tendem, hoje em dia, a colocar Marcos alguns poucos anos antes de um lado ou de outro de 70 d.C., Mateus e Lucas-Atos em algum ponto dos anos 80, e João nos anos 90. Quanto às datas, todos estes documentos são citados ou mencionados em textos cristãos do começo do século II, de modo que dificilmente poderiam ser datados mais tarde do que o século I. Declarações explicitas, combinadas com deduções razoáveis dos vários “Pais da Igreja” levaram, no entanto, muitos acadêmicos conservadores a situar todos os três Evangelhos Sinóticos, e também o livro de Atos, nos anos 60, com João ainda nos anos 90.22
A evidência interna destes cinco livros combina bem com as datas mais antigas. Jamais foi dada uma explicação completamente convincente para o abrupto final do livro de Atos, a menos que Lucas estivesse escrevendo pouco tempo depois dos eventos que concluem o livro. Por qual outro motivo ele teria passado mais de uma quarta parte da sua obra narrando o aprisionamento, os juízos e a apelação de Paulo (capítulos 21-28), deixando-nos, então, em suspense sobre o período de prisão domiciliar de Paulo em Roma, esperando os resultados da sua apelação, a menos que Lucas estivesse escrevendo antes de saber quais foram estes resultados? Mas, se esta lógica for convincente, então ele deve ter escrito o livro de Atos aproximadamente em 62 d.C., uma vez que sabemos, com base em outras fontes, que Festo subiu ao poder na Judéia em 59. Sabemos, com base no livro de Atos, que Paulo apelou ao imperador pouco tempo depois da ascensão de Festo, e que ele passou o inverno seguinte na ilha de Malta, depois do naufrágio, e os dois anos seguintes em Roma.23
Podemos, então, deduzir que o Evangelho de Lucas foi escrito antes do livro de Atos dos Apóstolos, uma vez que este último é a seqüência do primeiro. Como muitos acadêmicos modernos acreditam que Lucas confiou parcialmente no Evangelho de Marcos, este deve ter uma data anterior. Talvez estes três trabalhos tenham sido escritos, então, nos anos 60. De acordo com Irineu, que escreveu próximo ao final do século II, Mateus compilou o seu relato “enquanto Pedro e Paulo estavam pregando o Evangelho e fundando a Igreja em Roma” (Against Heresies 3.1.1). Isto também exige uma data não posterior a meados dos anos 60, pois depois disso os dois líderes cristãos perderam suas vidas na perseguição de Nero à Igreja (64-68 d.C.).
O que deve ser ressaltado, no entanto, é que com qualquer conjunto de datas, seja o mais liberal ou o mais conservador, os Evangelhos e o livro de Atos foram escritos no século I. Os que não foram escritos por testemunhas oculares da vida de Cristo, como Mateus e João, foram escritos por pessoas em posição de entrevistar aquelas testemunhas oculares – Marcos e Lucas. Isso também é verdadeiro mesmo se adotarmos a abordagem mais cética, de que estes documentos eram originalmente anônimos, seguindo a suposição liberal padrão de que os autores eram cristãos da segunda geração, e seguidores dos apóstolos. Além disso, devemos nos lembrar de que o cristianismo do século I enfrentou inúmeros oponentes que teriam ficado satisfeitos em refutar as declarações desta religião recém-nascida. O que seria melhor do que declarar que os Evangelhos e o livro de Atos simplesmente não narravam com exatidão à história? Enquanto houvesse, ainda vivas, testemunhas oculares hostis à vida de Cristo e à formação da Igreja, esta refutação sempre seria possível. Mas não há registro, em nenhum lugar, de que alguém tivesse feito tal declaração. Na verdade, a mais antiga e mais duradoura acusação que os judeus não cristãos fizeram contra as reivindicações do cristianismo, já tendo começado durante a vida de Cristo, admitia tacitamente a confiabilidade dos seus registros históricos.
Hoje, um período de trina a sessenta anos entre uma série de eventos e os registros históricos que os narram, parece um tempo muito longo. Se Jesus foi crucificado por volta de 30 d.C., e o primeiro Evangelho foi escrito nos anos 60, e o último nos anos 90, certamente uma considerável distorção poderia ter se desenvolvido dentro deste período. Parte da nossa resposta a esta alegação virá mais adiante neste capítulo. Aqui, são importantes dois comentários. Em primeiro lugar, há razões para crer que Mateus, Marcos, Lucas e João tenham usados fontes escritas anteriores, mais curtas que um Evangelho inteiro, para pesquisar e escrever porções de seus livros. Estas fontes anteriores podem ser datadas por volta dos anos 50. As palavras idênticas em inúmeras frases de Jesus, traduzidas de seu aramaico original ao grego, encontrada no Evangelho de Mateus como no de Lucas, mas não no de Marcos, sugerem a dependência destes autores de uma fonte comum que não fosse o texto de Marcos.24 Menos seguro, mas ainda bastante possível, é o uso que João faz de uma “fonte de milagres”, freqüentemente datada nos anos 60, para as suas histórias particulares de milagres, neste caso devido a um estilo singular, perceptível em partes destas narrativas. É interessante que até mesmo o Seminário Jesus aceita estas duas hipóteses como prováveis desta maneira reduzindo à metade do período de tempo em que, segundo acreditam, muitas das palavras e obras de Jesus circularam antes de serem compiladas em algum tipo de documento escrito (de 30-50 d.C. versus 30-70 ou 80 para os Sinóticos, e de 30-60 versus 30-90 para João).25
Em segundo lugar, mesmo 60 anos entre um conjunto de eventos uma história escrita sobre eles é um período admiravelmente curto para os padrões antigos. As sagas lendárias dos antigos heróis gregos e romanos circularam de boca em boca durante séculos, Às vezes durante mais de um milênio, antes de serem escritas. Mesmo as biografias relativamente moderadas de Alexandre, o Grande, por exemplo, que ainda existem datam do final do século I e início do século II d.C. Mas Alexandre morreu em 323 a.C., de modo que há um intervalo de aproximadamente quinhentos anos antes que seus biógrafos, Plutarco e Arriano, escrevessem seus livros sobre a sua vida. Os dois autores, no entanto, dedicam um copioso reconhecimento a fontes escritas anteriores, e os historiadores clássicos acreditam que a partir destas obras possam obter, de maneira detalhada, informações históricas exatas sobre Alexandre, enquanto, ao mesmo tempo, reconhecem que elas não são, de maneira alguma, isentas de falhas.26 A citação frequentemente comentada, do historiador romano A. N. Sher-win-White, de uma geração posterior a nossa, ainda resume a ironia que cerca o ceticismo contemporâneo: “Assim, é assombroso que, enquanto os historiadores grego-romanos crescem em confiança, o estudo das narrativas do Evangelho no século XX, tendo começado de um material não menos promissor, tenha sofrido uma reviravolta são sombria...”.27
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