sábado, 27 de junho de 2015

A Noite de São Bartolomeu - PARTE I

Por Mons. E. Cauly. Curso de Instrução Religiosa, Tomo IV.

Noção Geral e questões a examinar.

Entende-se por São Bartolomeu o massacre dos huguenotes ou protestantes, que teve lugar na França, na noite de 24 de agosto, festa de são Bartolomeu, em 1572, por ordem de Carlos IX, influenciado pelos conselhos de sua mãe, Catarina de Medicis.

Este massacre começou em Paris, depois do sino de Saint-Germain-l’Auxerrois ter dado o sinal. Coligny, chefe do partido huguenote, foi uma das primeiras vítimas. O sangue correu em toda a capital; segundo alguns, houve dois mil mortos; segundo outros, dez e até vinte mil. Vê-se que a diferença é grande, e a verdade deve estar entre os extremos.

Nos dias seguintes, sempre pelas ordens do rei, semelhantes cenas se renovaram em diferentes pontos do país: Meaux, Orleans, Lyão, Burges, Tolosa, Bordéus etc. Alguns historiadores pretendem que, nas províncias, houve de quinze a vinte mil vítimas. Veremos o que se deve pensar a este respeito.

Tal é o fato da São Bartolomeu... Mesmo sem aceitar os exageros a respeito dele, foi por demais verdadeiro, e é uma pátina que se desejaria poder apagar dos anais da história francesa, segundo uma palavra não do chanceler de l’Hospital, a quem muitas vezes foi atribuída, mas do presidente de Thou: “Excidat illa dies aevo! Pereça para sempre a memória daquele dia!”

O ódio dos protestantes e ditos filósofos misturou, de tal modo, o nome da Igreja Católica a este fato histórico que, por tanto ouvir, muitas pessoas passaram a acreditar que São Bartolomeu era obra da Igreja. Importa destruir este preconceito. Por outra parte, sob a pena dos escritores protestantes, dos romancistas e outros homens de juízo errôneo, o número das vítimas aumentou de modo sistemático. Não nos será difícil demonstrar que aí também o exagero se deu livre curso.

Para proceder com ordem:

1 – Examinaremos rapidamente as causas que prepararam este acontecimento deplorável;
2 – Mostraremos que a Religião Católica não teve parte alguma no massacre de São Bartolomeu;
3 – Foi um golpe de Estado, um ato de proscrição, obra da política de Carlos IX e de Catarina de Medicis;
4 – Finalmente, que a noite de São Bartolomeu fez muito menos vítimas do que se tem escrito. É o que vamos demonstrar em outros tantos artigos, onde aparecerá claramente que a Igreja deve ser justificada de qualquer acusação de intervenção no odioso massacre da noite de São Bartolomeu, e convém andar desconfiado a respeito dos números em que se calculam as vítimas.

I – AS CAUSAS QUE PREPARARAM E EXPLICAM A SÃO BARTOLOMEU.

I. Princípios da Reforma.
II. Violências e crimes dos protestantes na França.

I – Recentes trabalhos, publicados por investigadores e eruditos, permitem colocar hoje, em plena luz, o acontecimento que deixou uma impressão tão dolorosa na história da Filha primogênita da Igreja, no século XVI. Esses autores remontam às fontes, e acharam, nos próprios historiadores da Reforma, declarações que merecem ser recolhidas.

Primeiro, julgamos que não surpreenderemos nossos leitores afirmando que da Reforma procederam as desordens que tão profundamente transtornaram a Europa no século XVI. A doutrina de Lutero e Calvino continha em gérmen todos os princípios de revolta, de anarquia, de luta sangrenta.

1º O protestantismo arrastava consigo a corrupção dos costumes. O livre exame, a salvação atribuída somente à fé, sem as obras, a rejeição da autoridade da Igreja e de toda moral importuna, já, ainda em tempo dos reformadores – e os próprios Lutero e Calvino disso gemeram – tinham causado uma depravação geral.

2º O protestantismo impelia para o socialismo, a pilhagem e para a anarquia. Na livre interpretação da sagrada Escritura, cada um achava não só uma desculpa, mas uma aprovação de todos os excessos. Pois: “Naqueles tempos, diz Bousset[1], toda a Alemanha estava em fogo. Os camponeses, revoltados contra os senhores, tinham pegado em armas e imploravam o socorro de Lutero. Além de que seguiam a doutrina dele, pretendia-se que um livro dele, a Liberdade cristã, muito contribuíra a lhes inspirar a rebelião, pela maneira ousada com que falava contra os legisladores e contra as leis.”

“Lutero, diz Luiz Blanc, levava direitinho a Munzer. Milhões de vozes estavam prontas a proferir, contra os reis e os príncipes, o grito que soltara contra Roma[2]”. A violência dos novos bárbaros não conheceu mais limites: matanças nos campos de batalha, cidades desmanteladas, mosteiros destruídos, igrejas incendiadas e saqueadas, tesouros de escultura e pintura destruídos; tais foram os resultados da Reforma na Alemanha. Melanchton dizia que as ondas do Elba não chegariam para chorar todas as infelicidades e desventuras da Religião e do Estado.

3º O protestantismo queria a destruição do catolicismo. É um erro considerável, explorado pelos inimigos da Igreja, acreditar que os protestantes reclamavam simplesmente um lugar ao sol, ao lado dos católicos, que eram inofensivos e tolerantes em excesso. Lutero dissera: “Quem cooperar com o braço ou os bens para a ruína dos bispos e da hierarquia episcopal, é bom filho de Deus, verdadeiro cristão, e observa os mandamentos do Senhor”. Seus discípulos obedeceram e provam-no seus sangrentos triunfos na Alemanha, na Dinamarca e na Inglaterra.

II – Na França, como em outros lugares, os protestantes queriam acabar com a religião católica e substituir-lhe o calvinismo. No século XVI formavam um Estado no Estado; tentavam apoderar-se do poder e pactuavam com os inimigos da pátria. “O calvinismo envolvia a França numa rede de conspirações. Em 1562, seus partidários sublevaram-se, ao mandado de seus chefes, com uma simultaneidade assustadora. Em 1567, pôde-se verificar juntamente o alcance e a rapidez de suas manobras. Neste ano, as ruas de Nimes foram ensanguentadas por uma das mais odiosas São Bartolomeus protestantes, a qual se chamou Miguelada, efetuada pelos huguenotes, a sangue frio, de caso pensado, sem provocação da parte dos católicos, em 30 de setembro, no dia seguinte à festa de São Miguel. Trezentos cadáveres foram precipitados num grande poço, no pátio do palácio episcopal. Contra este fato, os protestantes organizaram a conspiração do silêncio. Contudo, o nefando crime é confessado por alguns deles. Além disso, a Miguelada não foi um fato isolado, mas o efeito de uma conspiração tramada contra a França.[3]”.

“As catedrais, as igrejas, os conventos, as capelas e até as bibliotecas e os hospitais são destruídos, saqueados, roubados, profanados. Como os bárbaros, os protestantes apoderam-se de todas as riquezas do culto, quebram as estátuas, dilaceram as pinturas... Pelas mãos deles, os bispos, os sacerdotes, os frades de qualquer ordem são mortos, insultados ou expulsos. As populações, fiéis ao culto de seus pais, são submetidas aos mais cruéis tratamentos. Só na Beauce, os calvinistas triunfantes destruíram trezentas igrejas. Em toda a França, contam-se cento e cinquenta catedrais ou abadias completamente arruinadas”.[4]

Assim, é preciso reconhecer que o massacre de Vassy, no qual quarenta e dois protestantes, segundo La Popelinère, sucumbiram numa luta travada entre eles e os católicos, era já vingado e de sobra. Deve-se então ficar surpreendido que a velha fé dos Francos, tão arraigada no solo do reino cristianíssimo, ficasse indignada e, mais do que a Alemanha e a Inglaterra, se tivesse defendido contra as usurpações, os concluios e manejos da Reforma?

É neste verdadeiro ponto de vista histórico, que convém colocar-se para julgar lealmente o fato da São Bartolomeu e, sem pretender desculpá-lo, patentear pelo menos as muitas circunstâncias atenuantes.



Notas:

1 – Bousset, Histoire des Variations, liv. II, cap. XI. (Possui PDF em espanhol).
2 – Luiz Blanc, Histoire de la Révolution française, t. I.
3 – Jorge Gandy, Revue des questions historiques, 1866, t. I. -  J. J. Fauriel, Essai sur les événements qui ont précédé la Saint-Barthélemy (thèse).
4 – Carlos Buet, François de Guise.


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A Boa Imprensa

imprensaTexto retirado de uma das publicações da "Raio de Sol", uma folha de propaganda católica da década de 30. Decidi transcrevê-lo para mostrar que as dificuldades da imprensa católica não é de hoje e que os mesmos problemas que enfrentamos eles também enfrentaram. Os medos também são semelhantes, e os sentimos na pele por causa da nossa iniciativa em publicar os livros de Dom Anscar Vonier. O bom, caríssimos, é que os meios de ajuda também não mudaram muito e são, inclusive, mais fáceis.



QUANTOS BENS TRAZ A BOA IMPRENSA! É um dos mais poderosos baluartes da sociedade e da Igreja. O bom periódico, a boa revista, o bom livro, os bons escritos... mas principalmente o bom diário, o bom periódico e a boa revista são de uma importância capital para defesa dos bons e derrota dos maus. Não me abalançarei a afirmar que é a arma principal, porque há muitas coisas principais e acima de tudo estará sempre a religião; digo, porém, afoitamente que a boa imprensa é principalíssima e capitalíssima. A boa imprensa diz resolutamente a verdade a defende e propaga em todas as partes. O periódico, a revista, o livro são eloquentes pregadores e apóstolos do bem. A boa imprensa desmascara o mal e lhe põe a calva à mostra, desacredita-o e o confunde e é benemérito apologista contra o erro. A boa imprensa recomenda, enaltece e põe no lugar que lhes é devido os homens de bem, os que o merecem, os que são dignos de confiança e de recomendação e que se hão de dedicar à defesa dos interesses da boa causa. A boa imprensa denuncia e desacredita os cidadãos perversos e perniciosos, revelando-nos suas más intenções, seus planos tenebrosos, seus sofismas, suas astúcias e perversidades. A boa imprensa forma a consciência pública e dita as normas da honradez da religião, da moralidade, contribuindo para a formação do critério seguro e reto de proceder. A boa imprensa é a única que está em alturas de opor resistência eficaz aos péssimos efeitos da imprensa má e anticlerical. A boa imprensa é a tutela da ordem, defensora e amparo da verdade, escudo da justiça, da pátria, da autoridade e da religião. A boa imprensa é absolutamente necessária na sociedade para defesa e triunfo do bem e destruição do mal. Deves por este motivo estimar grandemente os bons escritores e jornalistas católicos, deves apreciar muitíssimo os bons periódicos, as boas revistas, os bons livros. Não basta contudo estimar e apreciar os escritores e as publicações católicas; é necessário, é indispensável, é urgente e de boa justiça favorecê-los. Os maus favorecem a má imprensa; e tu, que fazes em prol da boa imprensa? Tu, meu amigo, que és cristão? Tu, que és honrado, que fazes a favor da imprensa honesta? Tu, que és amigo dos escritores e jornalistas honrados, que fazes pelos teus amigos? Refletiste alguma hora em como esses beneméritos apóstolos têm renunciado a medrar e a enriquecer, entrando a combater nas fileiras do periódico católico, da revista católica, onde se medra pouco e se ganha menos ainda, em vez de se meterem nos arraiais da má imprensa, em que teriam maiores lucros e apetitosas propinas? Não reparaste talvez em como muitos deles, no louvável intuito de advogarem os teus interesses, que são os de tua religião, da moralidade e da ordem, sacrificam generosamente os seus próprios interesses? Pois então, meu caro amigo, agora é mostrares a tua gratidão e a nobreza do teu coração, favorecendo-os e estimando-os na prática. Perguntar-me-ás: de que maneira? Indicar-te-ei aqui nove maneiras de favorecer na prática e eficazmente a boa imprensa, sobretudo os periódicos:

1 – Lendo-os. É o mínimo que da tua boa vontade podemos exigir. Escrevemos para defender os teus interesses; é portanto muito natural e justo que leias os escritos dos teus advogados. Dizes que não te interessam assuntos de religião. O fato é que lês artigos que tratam de religião quando algum periódico ou livro perverso a combate; e te recusas a ler um periódico ou um livro bom que a defende e explica?


2 – Comprando-os. É excelente método este, e se todos os católicos comprassem os jornais, revistas e livros, que escrevem os seus irmãos, certo é que destarte lhes prestariam poderoso auxílio. Fica receia que o seu trabalho seja balado e estéril, sobre ser penoso e caro, porque gastará tempo e dinheiro na impressão e não chegará talvez a refazer ao menos os gastos. Treme e hesita o jornalista, afana-se na sua tarefa ingrata, sacrifica-se, põe todo o seu empenho, o melhor dos seus recursos e do seu talento em procurar a prosperidade do seu periódico, e afinal não se livra de uns assomos de desalento, quando se lembra de que seus irmãos não o comprarão. Se nos fora lícito imprimir coisas luxuriosas, chulas, livres e intrigantes, então sim havíamos de encontrar ledores em barda!


3 – Assinando-os. Melhor que a compra avulsa é a assinatura, porque fornece recursos mais seguros ao periódico, que terá maior importância e vida quanto for mais avultado o número dos seus assinantes.

4 – Fazendo-lhes donativos. Não digo esmolas, ainda que alguns periódicos e periodistas receberiam com gratidão qualquer importância que se lhes desse, mesmo a título de esmola. Ponhamos porém a mira um pouco mais alto: gratificai os jornalistas e mais escritores, os periódicos e as revistas. Não dais dinheiro para outras obras pias? Obra muito pia, muito religiosa e muito cristã é a boa imprensa. Quantas vezes não acontece auxiliarem os católicos obras de caridade e beneficência duvidosas e suspeitas, e não desembolsarem um cetil para a grandiosa e importantíssima obra de caridade, misericórdia e beneficência e de muitos outros bens que em si encerra ou produz!

5 – Deixando legados. Não lestes alguma vez nos vossos jornais como algum inglês, algum norte-americano, algum francês ou alemão deixou determinado no seu testamento que se entregasse avultada quantia a certos escritores de livros, e sobretudo a bibliotecas e periódicos? E não eram doações de somenos importância: importavam bem sim em centenas e milhares de reais. Desta maneira se pôde ir adiante e sustentar eficazmente a boa imprensa.

6 – Fornecendo-lhes anúncios, comunicados, correspondências, artigos avulsos e outros subsídios de que vivem os periódicos.
Não mandeis anúncios, nem correspondência, nem coisa alguma que forneça recursos aos periódicos anti-clericais; reservai tudo isso para a boa imprensa.

7 – Propagando a sua leitura e conseguindo novos assinantes.
Nas rodas dos vossos amigos, nas vossas salas de visitas, nos vossos círculos, clubes, lazeres e reuniões, entre as pessoas que frequentais, procurai que se leia e se compre o bom jornal, a boa revisto, o bom livro.

8 – Falando a favor deles.
Relevai os seus senões e deslises e ponde em relevo as suas boas qualidades; não imagineis que não haja defeitos e grandes defeitos nos jornais adversos e que os bons não tenham coisa que preste. Não vos excuseis com dizerdes que comprais de preferência o mau jornal por achardes a boa imprensa desenxabida e sem noticiário. As mais das vezes não vai grande diferença entre uns e outros, quando, pelo contrário, a instrução ministrada pelos bons jornais é infinitamente superior e mais sã que a dos jornais contrários. Pelo que diz respeito a escritores, a má imprensa pode limpar as mãos à parede, que os tem às vezes muito ordinários, reles e bisonhos, mas eles são frívolos e mangões se vão incensando mutuamente; a boa imprensa por outro lado tem nas suas fileiras escritores de escól, que não raramente riscam muito acima dos seus adversários, ou pelo menos não têm nada que invejar-lhes, mas a desgraça é que nos deixamos enganar e atordoar pelos zabumbas dos visinhos da frente. Se... fulano dos anzóis, por exemplo, não vendesse a sua pena libertina à imprensa perversa e não a prostituísse com o seu estilo pedantesco e sediço, com a sua perpétúa mania de bolsar blasfêmias, chalaças e injúrias contra Deus e a Religião, não seria certamente tão encomiado pela turba dos seus atuais aduladores. Se Galdós não fora um deles, mas antes houvesse posto a sua pena a serviço da boa imprensa, não seria hoje um dos seus da Mitologia literária. Autores há de mão cheia nos arraiais da Boa Imprensa, muito superiores a ele e muitíssimo mais dignos de admiração e de elogios.

9 – Auxiliando enfim a “agência de informações” católica.* É necessária e urgente. Entretanto favoreçamos por todos os meios os nossos periódicos “A Cruz”, “A união” e o nosso suspirado “Diário” católico. E o meu prezado leitor compre e espalhe as dúzias, centenas, aos milhares, estes “Raios de Sol”, certo de que exercerá assim um frutuoso Apostolado e uma grande obra de misericórdia, que lhe merecerá as bênçãos do céu e a gratidão de centenas e milhares de almas, em boa hora por eles iluminadas; faça-se apóstolo e Legionário da Boa Imprensa, não leia e não propague senão a Boa Imprensa.


* A imprensa católica atual é outra, e boa parte da antiga já não existe, mas não é difícil identificá-la.


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Em breve!


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domingo, 14 de junho de 2015

A falsidade absoluta da lenda da papisa Joana

Por Mons. E. Cauly. Curso de Instrução Religiosa, Tomo IV.



Entre São Leão IV e Bento III (855), uma calúnia, acreditada pela ignorância e pela má fé, coloca na Sé apostólica a famosa papisa Joana. Os escritores hostis ao papado pretenderam, sem citar em apoio à sua opinião um só testemunho contemporâneo, que uma mulher, por nome Joana, originária de Moguncia e de gênio distinto, conseguira dissimular seu sexo e entrar nas ordens sob o nome de João da Inglaterra. Alcançando, graças a seus talentos, as mais altas dignidades eclesiásticas, teria sido eleita, como papa, em 855, sob o nome de João VIII. A fábula toma agora as proporções de uma obscenidade grosseira. Durante uma procissão solene, a papisa Joana dá à luz na mesma igreja de São João de Latrão. Nada dizemos da vergonhosa cerimônia da sedia cujos pormenores não podem ser escritos por uma pena honesta.

Durante três séculos, nenhum historiador falou nessa fábula tão ridícula quão inverossímil, de uma mulher elevada ao soberano pontificado. Ainda mesmo que o caso fosse verdadeiro, para a Igreja não resultaria nem responsabilidade nem vergonha. Seria uma surpresa e nada mais. Mas nenhum testemunho sério e contemporâneo autoriza a reconhece-lo como autêntico. Na sua História da Igreja, o cardeal Hergenroether, cuja competência e autoridade são indiscutíveis, contenta-se com dizer: “É uma fábula desde muito tempo reduzida ao nada, que Leão IV tivesse como sucessor a papisa Joana”.

Mas pode-se perguntar: qual foi, portanto, a origem de semelhante boato, e de que modo se pôde propagar? Num trabalho publicado em 1863, o doutor Doellinger, cuja ciência histórica é incontestável, rejeita a opinião que faria remontar ao século XI a origem da lenda, e seria mais verdadeiro dizer que data só do meado do século XIII. Segundo Barônio, a fábula da papisa não seria mais do que uma sátira da indolência de João VIII, particularmente no procedimento de Fócio. O O. Secchi, sábio jesuíta de Roma, não vê nisso senão uma calúnia inventada pelos Gregos. Em suma, as explicações soçobram todas perante o silêncio da tradição, e, apesar dos trabalhos históricos empreendidos em nossos dias, nada se descobriu que remonte além do século XIII. É no livro dos “Sete dons do Espírito Santo”, escrito pelo Dominicano Estevam de Borbone, lá pelo meado do século XIII, que apareceu, pela primeira vez, a notícia da papisa Joana; outro Dominicano, Martinho o Polaco, por muito tempo capelão do papa, propagou-a na sua “Crônica dos papas”. Cita-se também certo manuscrito de Anastácio, o Bibliotecário, onde esta lenda teria aparecido, não no texto, mas na margem e em caracteres diferentes dos da obra, o que revela uma interpolação. A mesma narrativa passou nas diversas Crônicas dos século XIV e XV, redigidas, as mais das vezes, por frades dominicanos ou franciscanos. Os autores da “História literária da França” admiram-se e com razão de que os propagadores mais ingênuos e talvez os inventores de uma história tão injuriosa para o papado, se encontram precisamente nas fileiras de uma milícia tão fiel à Santa Sé.

Em todo o caso, a lenda progrediu muito. No concílio de Constança, João Huss se aproveitou dela a favor de sua doutrina sobre o papado e não foi rebatido. O mesmo João Gerson lembra a história de um papa feminino para mostrar que a Igreja pode se enganar sobre uma questão de fato. O caso parecia portanto admitido sem contestação.

Concebe-se então que, na segunda metade do século XV, os Gregos se valessem dessa fábula; era um achado precioso para os inimigos da Santa Sé e para a causa do cisma. Explica-se do mesmo modo que, no século XVI, os discípulos de Lutero e de Calvino explorassem esse conto com uma animosidade prodigiosa e lançassem mão de tal invenção para dela se fazer uma arma contra o papado.

Contudo, vários dos mais doutos e mais conscienciosos entre os protestantes, tais como Blondel, Casaubon, Bayle, não se demoraram em combate-la. Chamier, Dumoulin, Bochart, Basnage e outros homens instruídos, de diversas seitas, não hesitaram em tratar a história da papisa Joana como pura invenção de copista ou de comentador. O pastor Jurieu a qualifica de fábula monstruosa, e Bayle de simples historieta.

Os escritores católicos, Eneas Sylvius, em seguida papa, sob o nome de Pio II; Onufro Pavini, Belarmino, Florimundo de Rémond, de Launoy, o P. Labbe e muitos outros, refutaram amplamente a velha lenda. Mas desprezam-se essas fontes preciosas de erudição. O século XVIII ressuscitou a questão que foi de novo abafada pela Revolução. Uma monstruosa compilação em nossa época: “Os crimes dos papas e dos reis”. Repetiu e desenvolveu a velha lenda da papisa. Quantos ignorantes e papalvos, em nossos dias, julgam ainda fazer dela um argumento contra a Igreja!
Depois do histórico da questão, vamos às provas de que a pretensa papisa Joana não é mais do que uma fábula insustentável.

1 – Esse fantasma não acha lugar para se colocar entre Leão IV e Bento III. Leão IV morreu em 17 de julho de 855; Bento VIII foi, com toda a verossimilhança, eleito no mesmo mês e sagrado em 29 de setembro do mesmo ano. Então, em que fica o reinado da papisa?

2 – Já dissemos: Nenhum contemporâneo fala de tal papisa Joana; os três séculos seguintes observam o mesmo silêncio a respeito, e é somente no século XIII que esta fábula é consignada por escrito na crônica interpolada de Martinho, o Polaco.

3 – Como todas as fábulas e lendas, a da papisa Joana é diversamente contada. Essa mulher elevada sobre a cadeira de São Pedro, nasce ora em Atenas, ora em Moguncia, ora na Inglaterra. No princípio, não se lhe conhecia o nome e não era douta; ocupava o cargo de simples secretário; em seguida, chamou-se Inez, Gilberta e Joana, este último nome sendo mais parecido com o de João, usado naquela época por alguns papas cuja reputação ficava equivoca ou eivada de fraqueza.

4 – Quanto a famosa pedra monumental de uma das ruas de Roma, com uma inscrição de letras iniciais e enigmáticas; quanto à estátua descoberta na mesma rua em que o cortejo pontifical evitava de passar, estátua representando uma mulher e perto dela um menino, é necessário todo um sistema preconcebido de interpretação para ver nisso tudo uma alusão à papisa Joana, e os arqueólogos indicaram-lhes uma significação histórica e completamente romana fora dessa falsa história.

Para concluir, somos do parecer do ministro protestante David Blondel, o qual, refutando esta fábula, declara que “não se deve aplicar o espírito em pesquisas inúteis sobre um assunto que não merece consideração alguma”. “Os protestantes”, diz Bayle, “puderam objetar legitimamente o conto da papisa enquanto não estava refutado. Dele não eram os inventores; achavam-no em várias obras compostas por bons papistas; mas desde que foi refutado por razões indiscutíveis, tiveram que abandoná-lo.

A questão é, portanto, julgada. Hoje, para qualquer espírito instruído e sério a fábula da papisa Joana não é mais do que uma prova da baixeza a que pode resvalar o espírito de partido eivado de preconceitos contra a Igreja e contra a verdade.



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