quinta-feira, 9 de setembro de 2010

5 - O Novo Testamento é historicamente confiável?

Por Craig L. Bloomberg


O Sucesso do Empreendimento dos Evangelistas

Poderíamos concordar que Mateus, Marcos, Lucas e João pensavam que estavam escrevendo um bom material de historia e biografia, pelos padrões do seu tempo. Mas eles foram bem-sucedidos? Aqueles que respondem negativamente a esta pergunta freqüentemente baseiam a sua opinião em uma ou em todas as três alegações a seguir.

- Interesse Histórico?


Para começar, com freqüência se discute que a primeira geração de cristãos não teria estado terrivelmente interessada em preservar um registro histórico preciso de suas origens. Três linhas de raciocínio, a primeira vista, parecem sustentar essa afirmação. Em primeiro lugar, ha a alegação de que os profetas cristãos antigos falavam, em nome do Senhor ressuscitado, aquilo que acreditavam que Deus estava dizendo as igrejas, por seu intermédio, e que estas palavras teriam se mesclado com os ensinamentos do Jesus histórico. Afinal, era a mesma pessoa que falava em ambas as ocasiões, e os oráculos greco-romanos parecem ter adotado pratica similar. Em segundo lugar, a primeira geração do cristianismo certamente alimentava uma esperança viva do fim do mundo, propiciado pelo retorno de Cristo, dentro do período da sua vida. Sendo assim, quem estaria vivo para ler uma historia sobre o seu movimento? Finalmente, a tendência ideológica dos autores — um comprometimento apaixonado com a teologia cristã — inevitavelmente teria distorcido os seus relatos. Nós devemos considerar estas possibilidades, cada uma por sua vez.

Com relação a profecia cristã, independentemente de possíveis analogias com outras religiões da época, o único dado atual que temos em o Novo Testamento contradiz a declaração de que as palavras de Jesus durante a sua vida estivessem mescladas com o que os cristãos posteriores acreditavam que Ele estava dizendo as igrejas. As três referencias reais em que conhecemos o conteúdo da profecia cristã do século I distinguem claramente as suas palavras das do Jesus histórico. Duas vezes no livro de Atos, Agabo aparece em cena para profetizar — a primeira vez, a respeito de uma fome que viria a Judéia, e a segunda vez, sobre o iminente aprisionamento de Paulo em Jerusalém (At 11.28; 21.11). Uma vez no livro do Apocalipse, lemos que as palavras especificas de João as igrejas locais lhe tinham sido dadas como profecia (Ap 2-3 como resultado de 1.3). Em nenhuma passagem dos Evangelhos estas coisas aparecem como se Jesus as tivesse dito durante a sua vida. A hipótese, pelo contrario, e infundada.36

Com respeito a crença de que o mundo poderia acabar a qualquer momento, e importante observar que esta não era uma convicção exclusiva dos cristãos. Os judeus, a partir do século VIII a.C, tiveram uma sucessão de profetas que declaravam que o Dia do Senhor era chegado (por exemplo, Jl 2.1; Ob 14; He 2.3). Mas os séculos passaram, o mundo continuou a existir na sua forma atual, e os judeus escreveram a pregação destes mesmos profetas em livros que fariam parte do seu Canon bíblico. No período intertestamentario, Salmos 90.4 tornou-se um texto favorito para explicar como o judaísmo ainda podia crer em um imi¬nente dia do juízo: "Mil anos são aos teus olhos [aos olhos do Senhor] como o dia de ontem que passou".37 O que parece ser longo a partir de uma perspectiva humana e muito breve da perspectiva eterna de Deus. Alem disso, a seita dos essênios de Quaram, que nos deu os Rolos do mar Morto, abrigava uma esperança tão vivida como qualquer grupo judeu pela intervenção iminente e apocalíptica de Deus neste mundo, para punir os seus inimigos e defender os seus seguidores. Mas os essênios produziram mais literatura, incluindo obras que permitem que os acadêmicos de hoje apresentem a evolução da sua comunidade, do que qualquer outro grupo judeu que conhecemos nos tempos pré-cristãos. Uma vez que todos os primeiros cristãos eram originalmente judeus, e duvidoso que uma convicção de que Jesus pudesse retornar durante o tempo da sua vida os impedisse de estar interessados em registrar a sua historia.

Quanto a noção de que um forte comprometimento ideológico necessariamente leva a falsificação ou distorção de registros históricos, realmente, as vezes, o oposto e verdadeiro. Não ha duvida de que um programa especial pode distorcer os fatos, mas em certos casos os mes¬mos compromissos ideológicos que levam a registrar uma determinada fração da historia exigem que se conte a historia corretamente. Considere o exemplo dos historiadores judeus depois do holocausto nazista na metade do século XX. Precisamente por causa da sua apaixonada preocupação de que tais atrocidades jamais acontecessem novamente ao seu povo (ou a qualquer outro), os cronistas judeus cuidadosamente coletaram e divulgaram, detalhe apos detalhe, os horrores que o seu povo tinha vivenciado, culminando na morte de seis milhões de pessoas. Por outro lado, foram certos autores não judeus mais recentes, e não pessoalmente envolvidos nos eventos da Segunda Guerra Mundial, que geraram os relatos revisionistas, declarando falsamente que um numero muito menor de vitimas estava envolvido.

A pratica dos autores do Novo Testamento corresponde intimamente a este exemplo dos historiadores judeus modernos. O que distinguia as declarações de judeus e cristãos das declarações de todas as outras religiões no antigo mundo mediterrâneo era a fé de que Deus tinha agido de modo singular na historia, por intermédio de seres humanos reais e recentes, para propiciar a salvação para a humanidade. O que distinguia o cristianismo de suas raízes judaicas era a declaração de que a oferta decisiva, que expiaria os pecados de uma vez por todas, era fornecida pela crucificação do homem Jesus de Nazaré, que foi subseqüentemente justificado por Deus pela sua ressurreição corpórea da sepultura.38 Se essas declarações não forem historicamente precisas, o cristianismo desmorona. Portanto, a mesma teologia que os céticos afirmam que teria deturpado os relatos do Novo Testamento muito provavelmente agia como uma proteção contra tal distorção. Alem disso, ate onde sabemos, os antigos jamais escreveram a historia sem alguma lente ideológica por meio da qual estes eventos eram examinados. A sua atitude, basicamente, era perguntar que objetivo havia em registrar a historia se o povo não pudesse aprender algumas lições disso. Ao mesmo tempo, contrariamente as declarações de alguns acadêmicos modernos, eles poderiam distinguir a boa historia da ma, mesmo considerando propósitos propagandísticos (veja especialmente Luciano, On Writing History).39

- Habilidade para Escrever a Historia?


Podemos admitir que os primeiros seguidores de Jesus estiveram interessados em escrever a historia da fundação do seu movimento. Mas surge uma segunda pergunta. Eles seriam capazes de escrever uma historia confiável? Mesmo se aceitarmos as datas conservadoras para os Evangelhos Sinóticos e o livro de Atos (os anos 60) e se reconhecermos que estes livros dependiam de fontes escritas ainda mais antigas, de testemunhos oculares e da tradição oral, trinta anos parece um tempo longo demais para que tudo fosse preservado intacto. Bart Ehrman fala em nome de muitos céticos quando compara o processo ao jogo infantil do "telefone sem fio".40 Em uma sala cheia com umas vinte pessoas, sussurre uma frase comprida e complicada a primeira pessoa, pega que ela sussurre a próxima pessoa o que ouviu e recorda, e o processo deve continuar ate que a mensagem tenha sido "transmitida" a ultima pessoa da sala. Quando você pedir que esta ultima pessoa repita em voz alta a mensagem, para que todos ouçam, normalmente e cômico, porque a mensagem ficou muito deturpada. Como podemos imaginar seriamente os cristãos preservando, por todo o Império Romano, durante toda uma geração, o enorme numero de detalhes que encontramos nos Evangelhos e no livro de Atos?

A resposta mais simples a essa pergunta e que o processo da transmissão de informações sobre Jesus e a Igreja Primitiva trazia pouca semelhança com o comportamento descontrolado de crianças brincando de "telefone sem fio". O Império Romano do século I continha somente culturas orais. Toda informação importante circulava de boca em boca. A maioria das pessoas que vivia no império era analfabeta. Os homens judeus tinham uma instrução muito maior do que o resto da população, porque muitos deles freqüentaram a escola em sinagogas locais, desde os cinco anos de idade ate os doze ou treze. Eles teriam aprendido o suficiente para serem capazes de ler as Escrituras em hebraico, mas poucos teriam meios para possuir suas próprias copias. Assim a educação acontecia, como também era o caso no mundo greco-romano, por memorização. Muitos homens judeus tinham memorizado consideráveis fragmentos do que nos chamamos de Antigo Testamento. Os aspirantes a rabinos, que se submetiam a treinamento adicional durante a sua adolescência como alunos de reverenciados professores judeus, em alguns casos aprendiam todo o conteúdo das Escrituras. Ha ate mesmo relatos de escribas que concluíam uma copia do Antigo Testamento e então um respeitado rabino a revisava, comparando-a com a versão que tinha memorizado! Meninos que tinham acesso a educação no mundo greco-romano, as vezes, memorizavam a Ilíada e a Odisséia de Homero, parcial ou integralmente. Nesse tipo de cultura, confiar o conteúdo de um livro tão pequeno como um Evangelho a memória teria sido comparativamente fácil, especialmente quando observamos que 80 a 90% dos ensinamentos de Jesus são formulados em forma poética.41

Pode, no entanto, haver objeções de que nos não temos quatro Evangelhos que sejam idênticos, palavra por palavra. A memorização pode explicar algumas das similaridades, embora já tenhamos observado que a dependência literária que um Evangelho tem de outro ou de uma fonte comum provavelmente explique o numero de textos em que aparecem palavras idênticas. Mas o que acontece com todas as diferenças? Uma das respostas a tal pergunta envolve uma segunda dimensão para o costume de memorização das antigas tradições sagradas do Oriente Médio. As tradições sagradas transmitidas unicamente de boca a boca eram narradas, algumas vezes ate mesmo cantadas, por contadores de historias em pequenos vilarejos onde as pessoas freqüentemente se reuniam ao redor de uma fogueira depois de anoitecer, depois do jantar, em um ambiente (sem eletricidade) onde havia pouco para fazer, se não fosse isso. Nestas situações, e principalmente para manter o interesse em historias bastante conhecidas, qualquer contador de historias tinha o direito de omitir ou incluir, de expandir ou abreviar e de inserir comentários sobre os vários detalhes das historias. Mas essa flexibilidade na transmissão tinha limites específicos. Os pontos fixos em cada historia, sem os quais os relatos não poderiam ser compreendidos apropriadamente, tinham que ser preservados com exatidão, e a comunidade tinha a responsabilidade de interromper e corrigir um contador de historias, se estes pontos fixos não fossem adequadamente apresentados. Na maioria dos casos, uma dada "performance" variava entre 10 a 40% da anterior. E interessante constatar que esta porcentagem e muito similar a variação de um Evangelho Sinótico em relação Ao outro, sempre que dois ou mais narram o mesmo episódio. Assim, provavelmente nós precisamos caracterizar “a evolução na tradição oral” além da cópia literária e da edição teológica, como um componente significativo na formação dos evangelhos, da maneira como os conhecemos.42

Dois outros elementos na antiga tradição oral cristã a separam drasticamente da analogia do “telefone sem fio” de Ehrman. Em primeiro lugar, existe evidência de que os rabinos permitiam que os indivíduos tomassem nota depois dos ensinamentos, para facilitar o aprendizado e a memorização. Embora esta noção tenha sido satirizada, não é, de maneira alguma, irracional imaginar alguns dos discípulos de Jesus rabiscando lembretes para si mesmos depois de um dia de exposição ao seu ministério de ensinamento, para ajudá-los a recordar os seus pontos principais. Algo semelhante a isso parece ter sido o processo utilizado em Qumran, para preservar os ensinamentos do seu “Professor de Justiça” anônimo.43 Em segundo lugar, o costume de Pedro, João e Tiago no livro de Atos, e nas epístolas, de realizar viagens ou fazer reuniões para acompanhar a chegada do evangelho a uma nova localização geográfica, mostra que a Igreja Primitiva desejava assegurar a exatidão daquilo que era pregado ou ensinado (Veja especialmente At 8; 15; 21; Gl 1 – 2). A Igreja recém-nascida não era uma entidade amorfa e descontrolada como muitas vezes é retratada; mas, ao contrário, era uma comunidade “impulsionada por objetivos” com uma reconhecida liderança e mecanismos de responsabilidade.44

- Exatidão no produto final?


Nós vimos que os autores dos Evangelhos e do livro de Atos provavelmente estiveram interessados na preservação das biografias de Jesus e da história da primeira geração do cristianismo. Nós observamos que todos os mecanismos estavam funcionando no mundo deles, para que tivessem feito isto com um alto grau de exatidão. A última pergunta desta série, de que devemos tratar agora, é: “Mas eles foram bem-sucedidos nesta tarefa?” Quando comparamos os relatos dos quatro Evangelhos, onde eles são paralelos, ou quando tentamos adequar a informação no livro de Atos juntamente com a informação histórica encontrada nas epístolas de Paulo, percebemos harmonia ou desacordo? Certamente, foram elaboradas longas listas de supostas contradições aqui e em outras passagens da Bíblia.45 Será que estas seriam suficientes para refutar declarações de confiabilidade histórica independentemente dos argumentos mais genéricos apresentados até aqui?

- Os quatro Evangelhos


A única maneira completamente adequada de responder a esta pergunta seria considerar as supostas contradições, uma por vez, o que resultaria em um livro muito mais extenso. Em outros trabalhos, investiguei praticamente todas as famosas supostas contradições, tanto entre os três Sinóticos, como entre os Sinóticos e João, e recomendo que o leitor leia estas discussões completas.46 Uma considerável maioria das aparentes discrepâncias desaparece, quando recordamos os padrões mais livres de narração histórica do mundo antigo (veja o tópico “Os Gêneros dos Evangelhos e do Livro de Atos”). Mas mesmo o nosso mundo moderno e científico preserva convenções similares. Ninguém pensa em acusar o repórter de um erro quando ele declara: “O Presidente Fulano de Tal anunciou hoje que...” quando, na verdade, foi o seu secretário de imprensa que leu um documento, escrito por um roteirista e supostamente apresentado ao presidente, ainda que rapidamente. Assim, não deveríamos ficar surpresos quando Mateus converte a narrativa do centurião gentio que pedia um milagre de Jesus, por meio de judeus intermediários (segundo Lucas 7.6) em uma narrativa em que o próprio centurião vem com o pedido (Mt 8.5). Agir por meio de um intermediário pode ser descrito como agir por si mesmo.

Inúmeros outros exemplos poderiam ser fornecidos. A última Ceia foi celebrada na noite da refeição da Páscoa (aparentemente segundo Marcos 14.12-16), ou antes dela (aparentemente segundo João 18.28 e 19.14)? Provavelmente foi na Páscoa que dura uma semana, ao passo que o versículo 19.14 pode ser interpretado como o Dia da Preparação para o sábado durante a semana da Páscoa (como na NVI). Jesus enviou os demônios aos porcos em Gerasa (Mc 5.1; Lc 8.26, ARA) ou em Gadara (Mt 8.28)? Provavelmente foi perto de Khersa – uma cidade na margem oriental do mar da Galiléia, cuja grafia em grego poderia facilmente resultar em Gerasa – na província de Gadara.47 O que queremos dizer aqui é que nenhum destes problemas é novo. Os pais da Igreja Primitiva, escrevendo no período do século II a VI, estudaram o Novo Testamento o suficiente para reconhecer todas as aparentes discrepâncias no texto que os críticos modernos enfatizam. O famoso comentário de Agostinho, do século V, intitulado Harmonia dos Evangelhos, trata de um grande número destas discrepâncias. Hoje, praticamente qualquer comentário evangélico detalhado sobre um dos quatro Evangelhos ou o livro de Atos incluirá possíveis soluções para estes problemas na sua exposição, passagem a passagem. Nem todas as harmonizações são igualmente convincentes, e muitas “contradições” tem mais de uma solução plausível. Mas a questão é que homens e mulheres cuidadosos e atentos, ao longo da História da Igreja, e plenamente cientes destes problemas, também reconheceram que nenhum deles precisa minar a confiança do outro no que diz respeito à confiabilidade da Bíblia. É muito freqüente que céticos modernos dêem a entender que, se nós conhecemos hoje algo que nossos predecessores não conheciam, isso agora torna indefensável a fé na confiabilidade histórica das escrituras. Essa declaração é simplesmente falsa.
De fato, o que mudou são as atitudes de muitos acadêmicos com relação a harmonização. Como observamos acima, os historiadores clássicos são muito mais confiantes sobre a nossa capacidade de recuperar fatos históricos de antigos documentos, mesmo quando eles parecem conter pequenas contradições, do que o são muitos acadêmicos bíblicos. Um excelente exemplo disso vem da obra do historiador canadentes, Paul Merkley. A travessia de Júlio Cesar do rio Rubicon quando retornava da Gália à Itália em 49 a.C. frequentemente é apresentada como um fato indiscutível da história romana, que também teve importância histórica. Com este ato, Céar se comprometeu com a guerra civil, e o curso da república romana foi alterado, para sempre; ela se tornaria um império. O que frequentemente não é mencionado é que não sabemos, ao certo, a data exata, nem o local desta travessia. Além disso, como acontece com os Evangelhos, nós temos quatro relatos do evento, narrado por historiadores posteriores – Valleius, Paterculus, Plutarco, Suetônio e Appian. Somente o primeiro destes quatro homens nasceu antes da metade do século I depois de Cristo. Todos afirmam ter confiado em uma mesma testemunha ocular, ou seja, Ansius Pollio, cujas obras desapareceram completamente. Os quatro relatos variam aproximadamente da mesma maneira que os Evangelhos, quando seus conteúdos se sobrepõem. Suetônio inclusive chega a introduzir um milagre no seu relato, declarando que a decisão de César foi motivada porque ele viu “uma aparição de tamanho e beleza sobre-humanos” que “estava sentada à margem do rio, tocando uma flauta de pastor”. Mas a travessia de César do Rubicon continua a ser citada como um dos mais BM estabelecidos fatos históricos da antiguidade. Uma confiança similar deve ser transferida para os quatro Evangelhos, que permanecem muito próximos, em tempo e acesso aos eventos que eles narram.48

Em outros trabalhos, mostrei como os historiadores da vida de Alexandre, o Grande, assim como estudantes de Josefo, que comparam os seus vários textos sobre uma dada pessoa ou evento, adotam regularmente uma forma cuidadosa de harmonização de detalhes aparentemente discrepantes. Somente porque algumas harmonizações se mostram não plausíveis, isto não significa que todo o método deva ser descartado. Por exemplo, é improvável que a solução ao problema das várias localidades onde Jesus cura o cego, perto de Jericó, dos Evangelhos Sinóticos (Quando Jesus estava “saindo” da cidade – Mc 10.46; Mt 20.29 – ou quando Ele estava “chegando perto” de Jericó – (Lc 18.35) se dá com a suposição de duas Jericós diferentes, uma delas, o local do Antigo Testamento que está em ruínas, e a outra, a cidade do Novo Testamento, como já foi sugerido algumas vezes. Nenhum ouvinte do século I suporia que um narrador tivesse em mente uma cidade desabitada desde muitos séculos, quando falasse simplesmente de “Jericó”. A expressão grega, traduzid como “chegando perto” pode simplesmente querer dizer “estando na proximidade de”.49 Por outro lado, somente Mateus fala de Jesus curando dois cegos nesta narrativa (Mt 20.30-34). Mês nem Marcos nem Lucas declaram que havia apenas uma pessoa presente, de modo que é natural imaginar que estes dois autores do Evangelho, ou a tradição oral que eles herdaram, tinham simplesmente simplificado o relato e falado somente daquele que interagiu mais diretamente com Jesus e cujo nome foi preservado – Bartimeu. Esse tipo de harmonização “aditiva” é comum em estudos acadêmicos de outros personagens antigos.50

Mas o que acontece com as diferenças muito maiores entre os Evangelhos Sinóticos e o Evangelho de João? Novamente terei que recomendar ao leitor a minha discussão muito mais ampla deste tema, em um livro inteiro sobre o assunto.51 Mas podemos fazer algumas generalizações aqui. Em primeiro lugar, com o risco de declarar o óbvio, uma das razões porque João parece tão diferente é porque ele não depende diretamente de um ou mais Sinóticos, da mesma maneira como os Evangelhos de Lucas e Mateus dependem do de Marcos. Se os quatro evangelistas tivessem escrito, totalmente independente um dos outros, haveria tanta diversidade de detalhes entre os Sinóticos como há entre os Sinóticos e João. Embora usando hipérboles, o comentário final de João, de que “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez”, de modo que “se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem”, certamente se aplica a todos os personagens – principais, complexos e influentes – da história. Se não tivéssemos três Evangelhos tão semelhantes, as diferenças entre João e qualquer um dos outro não seria tão incisiva.

Em segundo lugar, e intimamente relacionado com isso, nós devemos nos lembrar do quanto João e os Sinóticos têm em comum, e não nos concentrar meramente nas diferenças. Uma lista parcial incluiria:


1. O retrato de João Batista como cumprimento de Isaías 40.3 e como percussor do Messias;
2. O contraste entre o batismo de João, com água, e o futuro batismo do Messias, com o Espírito Santo;
3. O espírito ungindo Jesus, como testificado por João Batista;
4. A refeição dos cinco mil/
5. Jesus andando sobre a água;
6. A ordem a um paralítico: “Toma a tua cama e anda”;
7. A cura do filho de um centurião romano, à distância;
8. Curas milagrosas que infringem as leis do sábado, que proibiam o trabalho neste dia;
9. A recusa de Jesus em realizar milagres meramente para satisfazer os seus oponentes;
10. O fracasso das tentativas de prender Jesus, prematuramente;
11. A amizade de Jesus com a reflexiva Maria e a atarefada Marta;
12. A insistência de Jesus na necessidade de um novo nascimento espiritual;
13. A promessa de uma colheita abundante para os lavradores espirituais;
14. A rejeição de um profeta na sua terra natal;
15. O juízo pelas obras dos incrédulos.
16. O Pai revelando o Filho, e ninguém conhecendo plenamente o Pai, senão o Filho;
17. Jesus e os seus discípulos, como “a luz do mundo”;
18. O ensinamento de Jesus, funcionando, em parte, para endurecer os corações daqueles que já o tinham rejeitado, cumprindo Isaías 6.9,10;
19. Jesus como o bom pastor;
20. O verdadeiro discipulado como a atitude de servir;
21. Jesus resistindo à tentação para abandonar o caminho para a cruz;
22. Receber Jesus é como receber àquele que o enviou;
23. Um discípulo não é maior do que o seu Mestre;
24. A promessa de que o Espírito Santo dirá aos seguidores de Jesus o que deverão dizer no futuro.
25. A futura expulsão dos crentes das sinagogas judaicas;
26. A dispersão dos crentes expulsos, por todo o mundo conhecido; e
27. Os discípulos recebem a autoridade para perdoar ou reter os pecados dos outros.52


E a lista poderia ser ainda maior.

Em terceiro lugar, as circunstâncias singulares que conduzem à composição do relato do Quarto Evangelho, pela decisão de João de narrar episódios diferentes da vida de Cristo. Combinando evidências internas e externas, parece que o Evangelho de João foi escrito no final do século I, para as várias congregações de Éfeso e das suas redondezas, para combater desafios semelhantes aos que a igreja daquela comunidade estava enfrentando. Por um lado, o professor gnóstico Cerinto tinha conquistado seguidores entre os cristãos dali, promovendo, entre outras coisas, um “docetismo” que aceitava a divindade de Jesus, mas que negava a sua humanidade. As inúmeras referências, por todo o Evangelho de João, a Jesus realmente se tornando carne, tendo emoções, comendo e bebendo, sendo subordinado ao seu Pai, e não fazendo nada além de realizar a vontade do seu Pai, o que finalmente incluiu morrer uma morte torturante e completamente humana, tudo isso, sem dúvida, está incluído para combater este erro teológico. Por outro lado, no final do século I, a separação entre igreja e sinagoga se fez completa principalmente porque os líderes judeus tinham excomungado o seu próprio povo, que professava a fé em Jesus, como o messias. Assim, uma alta porcentagem das passagens exclusivas de João envolve Jesus pregando a líderes judeus, ou discutindo com eles, para justificar seus atos e suas declarações. A leitura destas histórias deveria encorajar os cristãos judeus de que eles tinham realmente tomado a decisão correta, seguindo Jesus e também dar-lhes “munição” evangelística, para lidar com seus amigos judeus e seus familiares não salvos.53

Em quarto lugar, há inúmeros exemplos fascinantes de integração entre o Evangelho de João e os Sinóticos em que um episódio ou declaração nos Sinóticos faz sentido somente se tivermos informações exclusivas de João, e vice-versa. Por exemplo, João 3.24 faz uma referência breve a uma época em que “ainda João não tinha sido lançado na prisão”, mas em nenhuma outra passagem no Evangelho de João há qualquer referencia a este aprisionamento. Supostamente João estava presumindo que os seus ouvintes tivessem pelo menos ouvido falar sobre este evento, narrado em Marcos 6.14029 e passagens paralelas. Ou, novamente, no seu relato sobre os julgamentos de Jesus. João quase omite completamente a aparição culminante de Cristo diante do Sinédrio, presidido por Caifás. Mas faz duas observações breves que mostram que ele tem conhecimento deste evento, quando escreve: “Anás mandou-o, manietado, ao sumo sacerdote Caifás” (Jo 18.24) e “levaram Jesus da casa de Caifás para a audiência...” (v. 28); Novamente, João deve também supor que o seu público conhecesse a história (ela aparece em todos os Sinóticos – Mc 14.53-65 e passagens paralelas).Enquanto isso, João está interessado em descrever uma audiência preliminar diante do sumo sacerdote anterior, Anás, o sogro de Caifás (Jo 18.13. 19-23).

Em outros casos, a integração trabalha na direção oposta. Os que lêem somente os Evangelhos Sinóticos poderão se perguntar por que os líderes judeus tiveram que para enviar Jesus ao governador romano, Poncio Pilatos (Mc 15.1-3, e paralelas). Se tinham considerado Jesus culpado de blasfêmia, por que simplesmente não o apedrejaram de acordo com a sua lei? Somente João fornece a resposta: os líderes judeus, sob o governo de Roma, não tinham permissão de executar a pena de morte nestes casos (Jô 18.31). De maneira similar, os que lêem somente os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas poderão se perguntar se os primeiros discípulos de Jesus realmente deixaram suas ocupações imediatamente para segui-lo na primeira vez em que Ele os viu. Marcos 1.16-20 e passagens paralelas certamente poderiam ter esta interpretação, sem nenhuma informação adicional. Mas João 1.35-42 deixa claro que vários dos apóstolos encontraram Jesus pela primeira vez quando eram seguidores de João Batista. Cada um deles teria testemunhado o seu batizado, familiarizando-se com o seu ministério, e mais tarde respondeu a um chamado mais formal para se tornar um dos doze que literalmente trabalharam lado a lado com Jesus.54

- O livro de Atos

Finalmente, consideramos um tipo diferente de suposta contradição – no livro de Atos. Como a narrativa do segundo volume de Lucas contém muitas informações acerca da pregação de Paulo, freqüentemente é feita a alegação de que a ênfase teológica que emerge dos seus sermões no livro de Atos não se encaixam bem com os temas principais das cartas incontestáveis de Paulo. Phillip Vielhauer escreveu um clássico estudo, na metade do século XX, fazendo esta alegação. Ele identificou quatro áreas em que acreditava que Paulo do livro de Atos era fundamentalmente incompatível com Paul das epístolas. (1) No livro de Atos, Paulo é favorável com relação à teologia natural ou à revelação geral (a idéia de que as pessoas podem vir a ter algum conhecimento de Deus e até mesmo a salvação, tendo em vista o desígnio na criação – veja especialmente o seu sermão no Areópago, em Atenas (At 17.16,33); nas epístolas, Paulo enfatiza que a lei meramente aponta a incapacidade da pessoa de guardá-la, quando os rituais cerimoniais judaicos agora pertencem ao passado (veja especialmente Gl 3 – 4). (3) No livro de Atos, o Jesus ressuscitado forma o centro da mensagem do Evangelho, em praticamente cada sermão registrado; nas cartas, Paulo se concentra unicamente na crucificação (1Co 2.2). (4) No livro de Atos, a esperança iminente do retorno de Cristo diminui; nas cartas, ela continua vibrante (veja especialmente 1Ts 4.15).55

Nenhuma destas quatro supostas contradições, no entanto, resume bem os dados complexos no livro de Atos ou nas epístolas. Nada, no livro de Atos, sugere que alguém realmente possa ser salvo, separado de Cristo; o texto 17.27 fala apenas das pessoas “achando” Deus em algum sentido não especificado, mesmo quando Lucas emprega o incomum modo optativo com o verbo, sugerindo que Paulo duvida de que isso possa ser feito. Romanos 1.19,20, ao contrário, declara que as pessoas deveriam saber que Deus existe, com base na criação. Quanto à atitude de Paulo com relação a Lei, o livro de Atos pode retratá-lo como o grande defensor da graça (At 13.39), e as epístolas podem mostrar Paulo guardando a lei, para tentar conquistar judeus para Cristo (1 Co 9.20). A questão, tanto no livro de Atos como nas epístolas é se uma determinada lei e apresentada como necessária para a salvação. Paulo ira resistir totalmente a isso.
Voltando a questão sobre o cerne do evangelho, Atos 20.28 ressalta a expiação através do sangue de Cristo, ao passo que 1 Coríntios 15 ensina extensivamente sobre a ressurreição. Esta claro que e uma questão de ênfase e não de contradição, o que leva os textos a destacar um aspecto da obra de Cristo e não outro. Finalmente, as epistolas de Paulo revelam que ele reconhece que pode não viver para ver o retorno de Cristo (por exemplo, Filipenses 1.19-26), ao passo que o livro de Atos retrata Paulo pregando que o seu tempo e o ponto decisivo nas gerações que iniciarão o juízo de Deus (At 17.31). David Wenham habilmente investigou estas questões e outras correlatas, e concluiu que as diferenças entre o livro de Atos e as epistolas de Paulo são suficientemente substanciais para provar que Paulo não escreveu o livro de Atos! Mas as diferenças dificilmente demonstram uma tensão fundamental entre Paulo e Lucas. Cada autor tem suas próprias razoes para enfatizar porções complementares do ministério de Paulo.56

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