segunda-feira, 29 de abril de 2013

O Milagre da Igreja: As primeiras conquistas - A. D. Sertillanges


As primeiras conquistas da Igreja coincidem com o seu nascimento. Todo nascimento é uma conquista da ideia vital sobre um meio sempre resistente por um lado, passivo por outro, socorredor também, mas com a condição de que esse socorro seja socorrido, de que o germe ativo ajude a natureza a ajudá-lo, visto que toda vida é uma permuta e gira em círculo.

Mais tarde, como o nascimento terá sido um crescimento começado, o crescimento não passará de um nascimento continuado; as condições dele serão as mesmas.

Todavia, há diferenças acidentais que são interessantes de considerar. O estado nascente tem graças particulares tanto em história religiosa como em química.

A primeira graça é uma atividade devoradora que se parece com a febre, e que é saúde ao máximo, de vez que a nova vida corre para a existência plena como o nada correria para o ser, se soubesse a sua miséria infinita e a divindade daquilo que é.

A criança cresce num mês mais do que crescerá depois em dez anos. A sua vida está toda tendida para aquisições sem as quais ela mesma nunca existiria. É bem o nada que corre para o ser. Assim a Igreja tende para a sua própria constituição por conquistas iniciais que em verdade são uma criação, tão relativos são esses termos nascimento, começo ou crescimento, de que somos obrigados a servir-nos.

A Igreja, divina, começou em Deus desde a eternidade. Humana, começou desde sempre também, mas desta vez o sempre do tempo, nisto que suas preparações remontam ao início da história do mundo.

Por ocasião do êxodo de Abraão, a Igreja começou de novo pela separação do seu germe hebraico.

Em Belém, começou na Pessoa por assim dizer única, que é corpo humano-divino.

A Paixão levou ao máximo a significação e a eficácia do fato, e nela a Igreja se renovou como o meio-dia renova o dia. Por isto dizemos, na linguagem mística, que Cristo esposou a humanidade na cruz, dando assim nascimento à Igreja.

Em Cesareia de Filipe, no momento da entrega dos poderes, mesmo antes, no dia da vocação dos Doze, e mais tarde à beira do Lago, após a Ressurreição, no momento da Missão dos Apóstolos, a Igreja começou como realidade social inserida na história.

No Cenáculo, ela foi confirmada nesse inicio pela descida do Espírito Santo e pelas graças de difusão universal que a acompanham.

No concílio de Jerusalém, ela começou em razão de se haver distinguido nitidamente do judaísmo, o que pudemos comparar à ruptura do cordão vital.

Em certo sentido, pode-se dizer que ela começa sempre, visto como é nova toda vida que acaba de sofrer uma mudança, e visto como, humanamente, a Igreja muda sem cessar, sempre obrigada e intimada a retomar seus destinos.

No ponto em que estamos, falando das primeiras conquistas, devemos dizer: a Igreja começa, nisto que assimila elementos que contribuirão para estabelecer seus quadros completos, para formar seus órgãos. A este respeito, o nosso estudo atual coincide com o precedente. Não pudemos falar de desenvolvimento sem subentender o crescimento, e, falando de crescimento, veremos aí um desenvolvimento. Todavia, isto é outro estudo.


A primeira propaganda em favor da Igreja foi feita na Galiléia, pelo próprio Salvador. Poder-se-ia dizer que ela redunda num fracasso, se fracasso foi haver colhido os Doze Apóstolos. Quando, no fim do ano, o lavrador colhe apenas com que semear o seu campo para o ano seguinte, está triste; mas não perdeu seu tempo. O Salvador terá assim enceleirado a sua semente, embora, mesmo mais tarde, depois do esforço dos obreiros evangélicos, o “Ai de ti, Corozaim, ai de ti, Betsaida” e a sentença “Ninguém é profeta em sua terra” devam conservar seus efeitos. Haverá cristãos da Samaria, cristãos da Judéia; não haverá comunidade galiléia, salvo os doze.

E é sempre o mesmo pensamento. Jesus não procurou ser bem sucedido por si mesmo. A sua ação pessoal não parece ter para ele interesse especial, a não ser para preparar o futuro. O que os outros fizerem, será ele ainda quem o fará; a sua ação histórica é mero germe.

Em Jerusalém, a situação é inteiramente outra. Após a hostilidade que os eventos da Paixão tragicamente revelam, produz-se uma reviravolta popular que os relatos da Ressurreição explicam sem dificuldade. O fato anunciado tivera lugar. O grande argumento que será o fundo da pregação apostólica sustenta-a desde o inicio. Tornado a subir ao céu pelo seu poder, Jesus prova que de lá descera, e que portanto é ele quem tem as palavras de vida eterna (Jô VI, 69).

Não que as oposições não se façam logo sentir; teremos de narrá-las; mas uma certa reserva das autoridades poupa entretanto o jovem rebento evangélico, ainda fraco demais para a tempestade. Gamaliel dizia ao Sinédrio: “Se essa obra vem dos homens, perecerá por si mesma; mas, se vem de Deus, não a podereis destruir” (At V, 39). Não se podia raciocinar melhor, e o cristianismo aceitava-lhe o augúrio.



A difusão do Evangelho tem lugar primeiro “in loco”, como as semeaduras que se produzem pela queda do grão no solo. É um dos processos da natureza. Os insetos acrescentam a isso o seu papel de carregadores, e o vento, por seu turno, dissemina. O vento, aqui, seria a perseguição, e as colaborações viajoras seriam as excursões apostólicas.

“In loco”, os meios de conquista ampla não faltavam. Jerusalém prestava-se muito a isso. Cidade de pouca importância no mundo, de modo algum comparável a Éfeso, a Antioquia, e a fortiori a Roma, era admirável como foco de propaganda judeu-cristã. Para poupar a transição e passar harmoniosamente da Judéia ao universo, como do antigo ao novo Testamento, não havia nada melhor do que essa cidade a um tempo cosmopolita e judia.

Estamos lembrados de que a inscrição da cruz, documento administrativo, era redigida em três línguas, e que isso significava, como hoje na Bélgica ou na Suíça, a divisão da população em vários grupos étnicos. A versão hebraica dirigia-se à gente da terra que falava o hebraico ou o aramaico. O latim visava a guarnição romana, e a colônia assaz numerosa que não podia deixar de cercá-la. O grego convinha aos que chamamos de Helenistas, isto é, os judeus de origem que habitavam as colônias gregas do Oriente: Síria, Egito, Acaia, Mesopotâmia, Capadócia, Ásia, Chipre, etc., onde quer que a dispersão lançara os filhos de Israel.

Jerusalém era, com isso, uma cidade universitária e sacerdotal, toda de escolas e sinagogas, tendo por potentados doutores e sacerdotes, por população principal devotos e peregrinos. A população fixa era de cerca de setenta mil almas; mas, por ocasião das grandes festas, mais de um milhão de peregrinos acampavam na cidade ou nos arredores, e depois, tornando a partir, difundiam ao longe, por toda parte, as idéias da cidade doutoral e o perfume da cidade santa.

Essas condições eram excelentes. O Evangelho aproveitá-las-á largamente. Desde a sua primeira pregação, Pedro conquista três mil almas. Após a cura do paralítico na porta Bela, os Atos computam cinco mil. O Salvador tivera razão de dizer: “Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e as fará maiores” (Jô XIV, 12). Os lances de rede do nosso pescador de homens são verdadeiramente milagrosos.

É verdade que, em geral, é essa uma gente sem importância social, daqueles de quem os Sinedritas diziam: “Quanto a este povo, que não conhece a lei, não passam de uns malditos”. Mas esses amaldiçoados pelo formalismo estagnado, pelo orgulho e pela presunção sabichona, é que serão os primeiros benditos do Evangelho eterno.

Eu já disse que não há nisso nenhum exclusivismo. Vê-lo-emos amplamente. Mas estréia-se, e, como o dirá S. Paulo com um orgulho às avessas que reserva ciosamente tudo ao céu, “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir os sábios. Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir os fortes. E Deus escolheu as coisas vis do mundo, aquelas que se desprezam, aquelas que não são nada, para reduzir a nada aquelas que são, a fim de que nenhuma carne se glorifique diante de Deus”i (I Co I, 27).

Desde esse momento, e em razão do que eu disse do caráter cosmopolita de Jerusalém, em razão da perseguição de Estevão, que dispersa e que semeia ao longe os fiéis da Cidade Santa, em razão também do zelo ardente que se manifesta por toda parte, nessa primavera espiritual da Igreja todas as regiões próximas, as províncias da Arábia, da Síria, da Cilícia, da Galácia, da Capadócia, da Bitínia e do Ponto, da Ilíria e da Dalmácia, têm em breve suas comunidades florescentes. Antioquia, em particular, torna-se como que uma nova metrópole, como que uma Roma provisória.

Não está longe a Roma verdadeira. Quanto o cristianismo houver plantado nela a sua tenda, o seu proveito novo e decisivo, será achar-se por esse fato no coração do mundo; ele terá apenas que seguir as pulsações deste, terá, como ele, de lançar por todos os canais geográficos e administrativos secularmente preparados o seu sangue e a sua alma. O Império está tão fortemente centralizado, estende-se a tão longe, que uma religião romana é facilmente universal. Seja-o! dir-se-á, e a história, sem se perturbar, completando esse vago esquema, salientando todas as circunstâncias de fatos, de pessoas, de meios, explique-o, sem ir julgar-se obrigada a apelar para o “milagre”.

Com efeito! Tomadas de um certo prisma, as nossas próprias observações precedentes e as que lhes vamos aditar podem servir de argumento em favor do caráter natural, naturalíssimo em aparência, da difusão evangélica.

Onde quer que filhos de Israel vivessem longe da sua terra e longe do Templo, constituíam uma sinagoga. Reuniam-se nela para o sábado; liam nela a Bíblia, que um dos assistentes comentava. Se algum estrangeiro notável lá se achava, convidavam-no a dizer o seu pensamento a propósito do texto, diríamos hoje a fazer uma homilia ou a pregar. Orava-se em comum, e em seguida as pessoas ocupavam-se dos negócios da comunidade local, dos negócios espirituais primeiros, e depois dos outros.

Os apóstolos cristãos aproveitam-se mui simplesmente dessa organização. Sabem que a salvação vem dos Judeus, como disse o Salvador, mas que sai deles. Chegando a uma terra nova, atacam-na pela sinagoga. Dirigem-se à cerimônia do sábado; falam; começam por Moisés e terminam por Jesus, servindo-se, como degraus, das profecias cada vez mais explícitas. O plano religioso do mundo faz o plano da sua pregação.

Achando a sua obra preparada pelo conhecimento do verdadeiro Deus, pelos símbolos da lei judaica e pelas esperanças messiânicas, eles se apóiam nisso. Quando tornam a partir, infalivelmente uma pequena comunidade é estabelecida, separada da judiaria local, tendo à sua frente, sob o governo longínquo deles, os presbíteros que eles lhe colocaram à frente.

Os Helenistas assim convertidos dirigir-se-ão doravante não já somente aos seus iguais, mas aos pagãos, e o método do Mestre terá sido obedecido: primeiro as ovelhas da casa de Israel, depois as ovelhas que não são deste redil, mas que importa que sejam reconduzidas, a fim de que haja um só rebanho e um só pastor (MT X, 6; Jo X, 16)

Muitíssimas vezes, consideráveis são os grupos assim formados; por vezes também são exíguos: que importa!. “Onde quer que haja trÊs, aí há uma Igreja”, Dirá Tertuliano; ubi três, ibi Ecclesia. A grande idéia da unidade em Cristo, da fraternidade que não teme as distâncias  porque se coloca fora do espaço e do tempo, embora prontinha a agir no espaço e no tempo, essa idéia solda uma cadeia que nada mais quebra. Os apóstolos entretém nela o fluido por contatos tão freqüentes quanto possível. Quando preciso, suprem-nos as suas cartas; elas são atos apostólicos e atos de governo.

Deste último ponto de vista, Jerusalém conserva a sua preeminência. A conquista não se torna anarquia. O mais ardente dos missionários, Paulo, volta lá como que para se retemperar na fonte. Diz que quer estar seguro de não haver pregado no ar, in vanum. E não é para os Doze coletivamente que ele se dirige, é para Pedro (Gl I, 18). Especifica que só viu o próprio Tiago ocasionalmente; não viu nenhum outro; mas passou quinze dias com Pedro, porque tem o sentimento de que lá é o centro da tradição, e de que já ele escreveria a fórmula lapidar: Ubi Petrus, ibi Ecclesia; onde está Pedro, aí está a Igreja.


Assim iniciada, a conquista cristã não tem mais razão de parar até a conversão do mundo, suposto que esse mundo de livres humanos consinta nisso. Não sucede com o fermento evangélico como sucede com um desses poderes limitados, qual a alma humana, que organizam sua matéria própria e deixam a outros princípios o cuidado de organizar alhures. A alma cristã é o Espírito de Cristo, Espírito universal, alma de toda alma, destinada a renovar, a criar de novo toda criatura pensante que o quer realmente. “Envia o teu Espírito, dissera o profeta, e eles serão criados, e renovarás a face da terra” (Sl CIII, 30).

Os primeiros apologistas tiveram a percepção desse esforço criador desde que, decorridos dois ou três séculos, puderam olhar de longe e do alto a corrente de vida que se derramara sobre o mundo. E não era uma imaginação. O crítico dos tempos modernos não pode senão entrar-lhes no sentimento. “A impressão que tiveram os Padres do século IV, um Arnóbio, um Eusébio, um Agostinho, de que a fé se propagara de geração em geração com incompreensível rapidez, essa impressão, escreve Harnack, ainda subsiste com justa razão. Setenta anos após a formação em Antioquia da primeira comunidade de pagãos convertidos, Plínio descreve com as expressões mais fortes a expansão do cristianismo na longínqua província de Bitínia, e já vê ameaçada, nessa região, a existência dos outros cultos. Setenta anos mais tarde, a questão pascoal mostra-nos uma confederação das Igrejas cristãs que se estende desde Lião até Edessa, e que tem seu centro em Roma. Setenta anos mais, e o imperador Diocleciano declara preferir suportar um rival em Roma a suportar um bispo cristão. Apenas setenta anos se passam, e a cruz é fixada nos estandartes romanos”6

Estas palavras do grande crítico não significam que, no seu pensamento, a propagação da Igreja seja propriamente milagrosa. O que realmente pretende é que, no final das contas, as coisas se passaram como deveriam passar-se. Mas há aí um equivoco que talvez venhamos a dissipar dentro em pouco. Quando se fala em difusão milagrosa do Evangelho, nem sempre se sabe bem exatamente o que se diz, e, quando ela é contestada em nome da natureza das coisas, nem sempre fica sabendo isso melhor.

Por enquanto, consigno o fato. Desde o fim do primeiro século, o cristianismo está difundido por toda parte no Oriente. Pelo fim do reinado de Marco Aurélio, aos cento e cinqüenta anos de idade aproximadamente, ele está difundido em todo o Império: Gália, Espanha, Germânia, África, Egito, Eufrates, e além. “Somos apenas de ontem, exclama Tertuliano, e já enchemos todo o vosso Império: as cidades, as ilhas, as praças fortes, os municípios, as assembléias, os próprios acampamentos, as decúrias, o palácio, o senado, o fórum. Só vos deixamos os templos”. Este último dito não é sem ironia!

Pelo ano 170, um apologista pode afirmar que os cristãos são mais numerosos do que os Judeus. Cristo saiu do seu presépio, e a sua Igreja sobrepuja a sinagoga. Enxertada numa minúscula história, a sua obra desde esse momento fez ligação com a história universal.

O caráter dessa conquista, do ponto de vista social, é importante de notar. Logo no início, a conquista é popular. Mui depressa torna-se uma conquista do escol, e, daí, parte um novo movimento de conquista popular, para uma penetração mais completa da multidão, onde o paganismo local e doméstico resiste longo tempo.

Pode-se dizer que o escol do mundo civilizado se aliou ao cristianismo desde que o cristianismo foi verdadeiramente conhecido, isto é, no início do século III. Até aí, ele permanecia enterrado sob os preconceitos; não o olhavam, e nem ele mesmo nem seu Deus tinham feito coisa alguma para que o olhassem.

Cem anos após esse período, todos os grandes nomes da civilização eram cristãos. Eram nomes de bispos. Chamavam-se Basílio, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Jerônimo, Ambrósio, Agostinho. Era o triunfo intelectual, na persistência do triunfo popular.

Porém, é mais fácil reconduzir um gênio ou um coração simples, quando escutam, do que um inconsciente entregue a rotinas e a superstições seculares. A massa propriamente dita está entregue À inconsciência. A sua conquista lentamente obtida será, pois, a última obra; fechará o círculo de expansão. Religião dos simples; religião do escol social; religião de todos: tais serão as etapas.

E o dilema subsiste: fatalidade histórica ou vontade providencial? Deus ou natureza?

Deus ou natureza, digo eu! Deus e natureza, talvez? Deus na natureza; Deus fazendo uma síntese do que ele é e do que nós somos, para formar o que ele quer que sejamos?

Se tal fosse a solução, haveria aí ao mesmo tempo milagre e realíssima evolução histórica.

É o que vamos ver.


II


No momento em que o Evangelho se propunha ao mundo civilizado, o meio greco-romano tinha saído da crise de livre pensamento que sofrera havia dois séculos. Augusto acreditara concorrer para isso poderosamente; mas a sua ação oficial quase não havia provocado – diretamente pelo menos – senão hipocrisias e literatura banal. Esnobismo religioso e culto político ou administrativo, era tudo o que podia sair de uma iniciativa demasiado interesseira para ter uma ação profunda.

Entretanto, enquanto Jesus pregava nas margens do Lago, enquanto S. Paulo vinha perorar no Areópago, produzia-se uma imensa efervescência religiosa. Aquilo a que se chamou o sincretismo, amálgama de doutrinas em que se uniam o Oriente e o Ocidente, atingia seu auge7. Havendo a filosofia provado o seu vazio, e ainda não estando proclamada a grande plenitude, o homem enganava a sua fome com os cultos de Ísis, de Baco-Dionísios, ou da Grande Mãe, com os passes de Simão o Mago,ou de Apolônio de Tiana, e com as adivinhações caldaicas ou as feitiçarias tessalonicenses.

Valia isso mais do que o livre pensamento? Sim e não. Isso se passava mais em baixo, e a este título valia menos. Mas isso também era mais humilde e valia mais porque fechava menos os caminhos do que o orgulho suficiente do racionalista. “É bom ser cansado e fatigado pela inútil procura do verdadeiro bem, escreveu Pascal, a fim de estender os braços ao libertador”.

O gênero humano fatigava-se assim em vãs procuras que tinham ao menos a vantagem de deixar o problema formulado, em vez de supô-lo resolvido pela negativa. Nessa efervescência, os ritos sublimes e as práticas obscenas misturavam-se; a exploração impudente e o devotamento profundo, o misticismo contemplativo e o charlatanismo caricato vizinhavam: “Quem quer morrer a si a fim de renascer?”, dizia o sacerdote de Ísis. “Quem quer saber o dia da morte do seu proprietário?” clamava aos escravos descontentes o astrólogo caldeu.

Morta a religião oficial, morto o diletantismo cicerônico, morto o epicurismo, procurava-se outra coisa. Os homens apaixonavam-se e extraviavam-se. Lançavam-se a fundo, com o inconveniente apenas de soçobrarem na alucinação, no ridículo ou no vício “soi-disant” religioso.

A razão desse movimento parece dupla. Razão negativa: a usura “sur place” do livre pensamento, que nunca vai longe. Razão positiva: a chegada profusa de todos os cultos do universo ao ponto em que a civilização greco-romana se ostenta. O Império fortemente centralizador, auxiliado por meios de comunicação até então desconhecidos, faz do meio mediterrâneo uma cuba onde tudo se precipita para fermentar.

Os cultos de outrora eram estritamente locais; a pátria e a religião confundiam-se: volta-se atrás dessa estreiteza, e consente-se em alargar paralelamente as concepções temporais e os pensamentos religiosos. Ao mesmo tempo que Roma deixa de ser propriedade exclusiva dos Romanos, com maioria de razão deixa Júpter Optimus Maximus; com maior razão ainda, segundo as idéias do tempo, Zeus para os Helenos ou os Baals para os Sírios. A religião universal vai aproveitar esse espírito acolhedor.

O mesmo sucederá com a religião íntima constituída igualmente pelo Reino de Deus, ou religião do coração. A política dos Imperadores desgostou da vida pública dos cidadãos. Quase já não há, para se envolverem nela, senão os arrivistas e os criados rasteiros. As almas nobres procuram onde refugiar-se; mas que outro refúgio têm elas probabilidade de encontrar senão elas mesmas, único asilo, numa sociedade fora dos eixos, para quem deveras deseja viver?

Mas aí, no seu coração que ele escuta bater, o homem desanimado do exterior arrisca-se a só ouvir soar o vácuo. Se o divertimento, no sentido de Pascal, lhe é vedado por um meio hostil ou nulo, que poderá realmente achar na vida interior uma alma profunda, na ausência de alimento que a possa sustentar?

O pessimismo lá está pertinho. O taedium vitae, o tédio de viver, é a doença desse tempo. Os próprios moralistas incitam a ela pelas suas declamações desiludidas e pela ostentação do seu pesar. Os suicídios multiplicam-se. Tal é o termo das soberbas doutrinas que haviam ensinado a contentar-se consigo e achar a felicidade nos bens que nascem de si. “Ut sis contentus temetipso et ex te nascentibus bonis”, escrevia Sêneca antes de abrir as veias. Sobre o que, Pascal, verificando que esses pensadores acabam por aconselhar, em palavras ou em fato, àqueles a quem este mundo não contenta, deixarem-no sem trombeta.8, escreve com a sua ironia cruel: “Oh! Que vida feliz, de que a gente se livra como da peste!”.


Procura-se, pois. O “si forte attrectent eum,, se se pudesse atingir a Deus!” assume em muitos uma significação trágica, e na massa um sentido que raramente tivera no curso da história, se jamais o tivera. Na paz e na prosperidade romanas germina o sentimento de que nada basta, e procura-se levantar o tampo azul sob o qual a frágil humanidade se consome de insuficiência, desde que as necessidades da vida e a febre de agir já não a angustiam mais.

“Oh! Se os céus pudessem abrir-se!” exclamara Platão. O mundo grita também. Grita como um surdo, e é bem o caso de dizê-lo; porque mesmo o que de Deus se ouve só na consciência, ele o ouve mal; S. Paulo censurar-lho-á com dureza. Mas o que o ouvido do homem não ouviu(I Co II, 9), isto é, o dom de Deus secreto e livre, se ele podia ainda menos ouvi-lo, não deixava de esperá-lo sem o saber.

Quando ele se elevava a meia altura para o Olimpo, não achava aí senão divindades decorativas, ou vícios personificados, ou então Imperadores, dos quais alguns se chamavam Calígula ou Nero. Havia razão de fugir para longe dessa região pretensamente etérea, porém na realidade mais baixa o que a outra. Quem abriria o largo do céu para a descida de Deus e para a subida das almas?


Compreende-se o efeito que numa sociedade assim feita devia produzir o Padre Nosso que estais no Céu, e também a pregação de um Deus humano ao mesmo tempo que transcendente, como Cristo, de uma doutrina de pureza, de generosidade e de amor com o Evangelho. Uma terra que tinha tamanha sede devia beber avidamente o orvalho divino da cruz. Os largos gritos que dela desciam achariam um eco bastante largo também para abalar poderosamente todas as almas. Não se haveria de rir disso como se ria de Juno confusa ou de Baco ébrio.

O fracasso do sincretismo redundou duplamente no triunfo do cristianismo: pelas suas insuficiências morais ou racionais, e pelos seus bons lados, que eram uma preparação. O lado mau foi perder-se na heresia e desvaneceu-se por si mesmo.

Em suma, tal como era, esse meio compósito foi para o desenvolvimento do cristianismo nascente o que foi o meio úmido e quente da época carbonífera, pai das gramíneas gigantescas.

Ao que, de novo nos dizem: Pois bem! Então está tudo explicado, e não há aí milagre.

Mas a tal observação muito há que dizer.

Mostrei o cristianismo abrindo a sua carreira à maneira da criança, que cresce em algumas semanas, dizia eu, como mais tarde não o saberá fazer em dez anos. Mas, se a criança assim cresce, é porque há nela alguma coisa; há esse não sei quê que uma palavra vazia recobre: a vida! Que é então a vida? Não sei, mas o que bem sei é que, para explicar o crescimento da criança, não basta me dizerem que há à volta dela tudo o que é preciso para crescer, que a temperatura é boa, o meio é são; que ao lado há uma ama, há leite, pão, um assoalho livre para ela ensaiar os primeiros passos, e em seguida todas as estradas abertas para ela correr. A vida é uma assimilação a partir de um germe, e o germe, o germe caracterizado, definido, ativo numa linha dada, evolutivo segundo uma certa fórmula, e já contendo na sua definição o essencial daquilo que ele deve vir a ser, isto é que é a explicação verdadeira.

Se o cristianismo não tivesse achado todas as condições necessárias ao seu desenvolvimento, não se teria desenvolvido, e é por isso, aliás, que Deus lhe prepara essas condições; provê a elas pelo curso ordinário dos fatos, sem que haja ainda aí que falar de milagre. É uma providência, eis tudo. Mas, houvesse Deus assim disposto tudo, ou, para falar uma linguagem profana, houvesse a história fornecido o meio ideal de um tal desabrochar, restaria ainda achar e definir o germe de vida.

Que é essa força invisível que une o grupo de barqueiros, que lhes anima a palavra e dá a esta uma eficácia sobre-humana? Que é essa chama que corre no colmo, consoante a comparação do Salmista, e que provoca um incêndio maravilhoso? A humanidade era uma lenha seca? Bem! Mas, se sobre a lenha seca lançais apenas outra lenha seca, isso se amontoa; se lhe lançais água, ela apodrece. Onde está aqui o fogo?

“Forçoso era que algo se houvesse passado”, diz Claudel. Forçoso é também que algo se passe ainda, que alguma coisa de efetivo subsista, uma sobrevivência real, coisa diversa de um passado extinto, que, por mais formidável que fosse, apesar de tudo interessaria apenas a memória, e por si só não explicaria aquilo que, pense-se o que se pensar, se deve realmente chamar um soerguimento do gênero humano.

Concedemos tudo quanto a Igreja achava de socorros no seu meio de desabrochamento; mas esses socorros eram passivos, se assim posso dizer, e bem longe, ainda, que ela só achasse socorros.

O cristianismo tinha contra si uma multidão de obstáculos: suas humildes origens humanas; suas ligações com o judaísmo, facilmente desprezado pelos pagãos; a sua pregação da cruz, que era ridícula a um ponto impossível de nos representarmos hoje. O patíbulo divino está, para nós, cercado de uma auréola; então ele era o vil pelourinho, reservado aos malfeitores de baixa extração e aos escravos.

O exclusivismo insolente de que a nova religião dava prova amotinava contra ela não somente as religiões oficiais ou públicas, mas também, o que era muito mais grave do ponto de vista da sua penetração das massas, as pequenas religiões locais e os cultos íntimos cuja ação tenaz da vida privada daquela época as lousas funerárias e os papiros mágicos nos revelam.

Questões econômicas juntavam-se aqui ao obstáculo religioso. Os cleros de toda natureza, os estatuários, os ourives, que formavam uma corporação poderosa, tal como S. Paulo perceberá em Éfeso, todos os comerciantes e artífices que viviam do paganismo deviam resistir com a cólera do interesse ameaçado ou com a aspereza da fome. Sabemos até onde vão semelhante resistências.

Não faltarão as perseguições, que no fundo serão úteis, porque suscitarão os altos entusiasmos de que falei; mas, quando os entusiasmos são a tal preço e tão numerosos, seria fácil demais considerá-los como simplíssimos. Vemos nisso um milagre de graça, e o objetante sincero não dirá facilmente o que nisso vê. É certo, em todo caso, que as perseguições deterão no limiar muitos hesitantes. Os heróis não são multidão. E, acima de tudo, a perseguição interior que a verdade move contra os instintos desviados, contra as tendências desenfreadas por um longo relaxamento moral, tem o perigo de afugentar aqueles que mais necessário é atrair, de fazer fracassar aquilo que é mais capaz de ter êxito.

É esse sempre o grande obstáculo. Será esse o obstáculo eterno. A Igreja tem vivido em todos os tempos no meio das contradições, e, no fundo, não é outra coisa; e por essa razão, as contradições dos seus primórdios devem ter sido tanto maiores quanto ela como nunca ameaçava e ainda não adquirira com que se defender.

O cristianismo, poder-se-ia dizer, tinha contra si aquilo mesmo que tinha a seu favor, porquanto o seu valor sem par não podia utilizar-se senão à custa de sacrifícios, de renúncias que o estado geral da natureza humana, e mais ainda as circunstâncias do seu próprio inicio, queriam heróicas.

A Igreja conseguiu tudo isso, por quê? Porque, se os seus destinos pareciam assim circunvalados numa contradição inelutável, exigindo a sua grandeza o impossível, e anulando-lhe esta impossibilidade praticamente a grandeza, havia no circulo fatal um corte; o elo tinha um engaste. O divino inseria-se nas aparências humanas contraditórias, e Deus sabe conciliar tudo, tornando possível, pela sua presença nas almas, o que impossível seria em razão da sua presença demasiado exigente nos fatos.

A transcendência do objeto é aqui vencida pela transcendência do sujeito embebido de Deus. E dupla será a efusão do Espírito anunciado por Cristo: na Igreja, para torná-la divina e por conseguinte humanamente inacessível tanto quanto útil, tanto quanto atraente; fora da Igreja, para vencer amorosamente o coração dos predestinados, homens ou povos, e pô-los ao nível daquilo que salva.

Sem a sua graça imanente, a Igreja não seria o que é, inaceitável humanamente tanto quanto indispensável. Sem a graça imanente às almas sobre as quais ela age a Igreja debalde seria o que é, visto que não aceitariam.

De sorte que o milagre aqui – pois em verdade há milagre – é aquele que Santo Agostinho fala quando diz: A conversão de um pecador é coisa mais difícil do que a ressurreição de um morto. E esse milagre é duplo na sua unidade, interior e exterior à Igreja. Do milagre exterior à Igreja, interior às almas e que as dispõe para o Evangelho, dissemos o que dele pode exprimir-se, e é no fundo o segredo de cada consciência. Do milagre interior da Igreja, que faz da Igreja um objeto divino, há sinais que não escaparam aos homens daquele tempo. Eles valem sempre; mas nós estamos acostumados com eles e temos outros obstáculos; eles, os homens daquele tempo, tinham o olhar novo, e, em vez de obstáculos, tinham atrações. Por isso foram impressionados até se renderem.

Primeiramente a doutrina, a que poderíamos chamar um milagre de luz, tanto a sua coerência e a sua adaptação a todos os casos humanos bastam para lhe fazer a prova. Admiravelmente rica, ela pode resumir-se em algumas palavras quanto ao essencial; a salvação em Deus Pai, por Cristo mediador, conjunta e eternamente. Misturada ao humano, ela é capaz de renová-lo a fundo, confirmando-o com a sua autoridade e engrandecendo-o infinitamente com o seu contributo. Ela está ao alcance de todos; os pardais podem beber nela e os elefantes banhar-se, dirá Gregório Magno. Síntese de vida, ela entra em relação fecundante com tudo. Atrai e retém por toda sorte de razões. O sábio vem a ela por causa dos seus arcanos, o simples por causa da sua lucidez; o autoritário por causa das leis que ela dita, e a alma mística porque ela excede toda a lei. Como quer que a loucura da pregação, como diz Paulo (I Co I, 21), e a sabedoria de Deus  que a ela se mistura, abordem a alma por diferentes lados, em ambos os casos Deus se fará reconhecer a ela.

O universalismo que atribuímos ao Evangelho e que faz dele uma religião primitiva restaurada, um judaísmo aperfeiçoado e uma religião inteiramente nova, dará a impressão de que ele julga a história universal, a contém e a explica, o que é a verdade. Os grandes espíritos acharão nessa consciência universal, tornada consciência cristã, uma suma atração.

Aliás, por si mesmo se concebe que, se a doutrina atrai, é sobretudo na medida em que se encarna nos fatos. Filosofias, têm-se visto tantas! Bem se querem ver outras ainda; mas depois de examiná-las curiosamente, torna-se a colocar o “bibelot” na sua vitrine.

A vida! A vida! Eis o que converte. É a força interior do Espírito; é a corrente divina, que, passando, arrasta o que lhe é semelhante. Aquele que pode dizer: “Para mim, viver é Cristo” (Fp I, 21), esse conduz os homens a Cristo. A verdade irradia na virtude. Ora, a Igreja, nesse momento, mostra bastante virtude para deslumbrar as consciências mais exigentes.

Notável é que os próprios apologistas não sejam convertidos pelas apologias dos seus antecessores, mas pela vida cristã que se lhes impõe à consciência. Uma vez cristãos, eles fazem o que sabem fazer e explicam o porquê daquilo que os conquistou; mas o fervor que eles põem nisso e a sua própria participação na vida religiosa que pregam têm mais influência do que os seus dizeres. Há nisto uma lição para os modernos apologistas.


A constância dos mártires parece ter sido o argumento mais empolgante dessa graça imanente da Igreja. A serenidade deles diante da dor, por causa do que eles tinham sob o olhar interior e do que diziam ter no coração, impressionava infinitamente as almas religiosas. A vida com Deus era, pois, uma realidade? Podia fazer superabundar de alegria no meio das tribulações (2Co VII, 4)? Eternizando o mesquinho ser humano, dava ela então razão àquele que dizia: “A nossa vida é no céu, conversatio nostra in coelis” (Fp III, 20)? E, nessas condições, a própria morte podia ser então um ganho: “e mori lucrum” (Fp I 21)? Marco Aurélio, o filósofo, não compreendeu nada disso; talvez o trono o afastasse demais da humilde vida nova; porém os que viam de perto, ou que não tinham os olhos vendados por um sistema, compreenderam.


A vida com Deus tinha, nos primeiros cristãos, um reflexo que não podia deixar de ferir os olhares. Viver com Deus era para eles viver juntos em Deus. Ora, num mundo em que mais do que nunca se podia dizer: o homem é um lobo para o homem, homo homini lúpus, esta vida em comum na caridade não demonstrava uma irrupção do céu na terra? “Eles se amam quase antes de se conhecerem”, dizia o pagão Cecílio. Sem dúvida! As pessoas se conhecem antecipadamente quando habitam em Deus por Cristo. “O fundador deles, escrevia Luciano, meteu-lhes na cabeça que eles são todos irmãos”9. Zombava disso, e de que era que ele não zombava? Mas outros sentiam essa imantação e agregavam-se à vida divina.

Tanto mais quanto essa caridade cristã não era puramente sentimental; era organizada; era uma vida em comum que criava todas as virtudes sociais, e antes de tudo a virtude social por excelência: a justiça. A justiça das palavras, justiça dos contratos, justiça das relações domésticas, políticas ou econômicas, era esse o tronco no qual florescia isso que correntemente chamamos caridade. Sustento das viúvas e dos órfãos, cuidado dos doentes, socorro aos indigentes, visita dos prisioneiros, hospitalização dos viajantes, sepultura dos mortos, vinham em supererrogação e constituíam uma espécie de culto estreitamente entremeado ao culto. “Os doentes são o tesouro da Igreja”, dizia S. Lourenço. Os pagãos desviados não eram desta opinião; mas “a alma naturalmente cristã” era, e reconhecia sua pátria naquela reunião de irmãos.

Quanto aos políticos clarividentes, estes também poderiam ter visto, naquele grupinho nascente, o início evidentíssimo de uma ordem social nova. Por pouco que irradiasse nas instituições do futuro, a justiça fraterna não podia deixar de fazer fundir, no fogo da caridade, assim os grilhões dos oprimidos como os cetros brutais dos sátrapas.

A nova religião limitava os poderes do Estado erguendo diante dele a consciência, isto é, o indivíduo, isto é, o Direito do homem. Atacava a escravidão: coisa impressionante entre todas, impressionante sobretudo ao olhar do homem moral, porque procedia moralmente, abordando o social pela raiz, sem nenhuma revolução destrutiva, sem sequer formular a questão teoricamente, contente de inserir nos corações o princípio da sua solução. Era o Febo divino que triunfaria de Bóreas, o vento das palavras ou o furação das violências.

Pode-se fazer notar que a atração exercida pela nova doutrina, em razão da sua beneficência, sobre as mulheres e os escravos, ajudou muito a sua propagação. A influência moral da mulher é imensa, uma vez assegurado o seu devotamento efetivo, e os escravos preceptores muito podiam para cristianizar as novas gerações.

Da ordem social nova assim engrenada, as comunidades cristãs, onde o espiritual se misturava ao temporal ainda não diferenciado, já ofereciam um esboço. As cristandades funcionavam como pequenos Estados, ao mesmo tempo que como famílias, como tribunais, como agências de colocação, sindicatos, caixas de socorros. Permutavam, de uma religião a outra, as notícias e os bons ofícios, os conselhos fraternais e, se preciso, as admoestações. Nelas a autoridade não passava de um serviço, as classes de um sistema de degraus para derramar sem abalo aos bens comuns, que só eram propriedade do céu.

Em suma, tanto quanto o permite a fragilidade humana – pois havia aí misérias – realizava-se essa divinização da vida que é a essência do Evangelho. E os pagãos, acostumados às belas máximas abandonadas (Probitas laudatur et alget, dizia Juvenal, a virtude é louvada e enregela-se) estavam estupefatos. E os que, dentre eles, aguardavam o reino de Deus, como o velho Simeão, acorriam.

Lacordaire escreveu: “A humanidade crê em Deus porque o vê agir”. Tal é a explicação literal da conquista religiosa de nossos pais. Acrescentando, entretanto, que eles não teriam crido em Deus a agir fora, se, com o seu consentimento, Deus não houvesse agido neles. Mas Deus agia em toda parte. Decidira renovar a face da terra. E nesse milagre de Deus difundido absolutamente não se opõe ao caráter humano, e à continuidade histórica da sua obra.

Esses bons críticos que, no intuito de afastarem aqui o milagre, procuram razões humanas, e as acham, não desconfiam até que ponto são pouco filósofos. É certo que, pesado tudo, a Igreja devia desenvolver-se como fez, e isso por motivos observáveis. Porém o observável às vezes tem fontes que não o são, e que, não fazendo parte do complexo das causas naturais, invocam uma causa sobrenatural.

Se se dissesse: um homem desarmado, em face de um leão, deve ser devorado pelo leão, exprimir-se-ia uma coisa simplíssima. Mas isso não serviria para provar que o leão é miraculosamente forte em relação ao homem? Ora, esse miraculosamente, que aqui não passa de uma metáfora, para o cristianismo era uma realidade. O mundo greco-romano, em face da Igreja, devia ser conquistado pela Igreja; era fatal; mas por quê? Porque a Igreja, em relação a ele, era uma força irresistível. É nessa força que, aos nossos olhos, reside o milagre, porque, conhecendo pela experiência de todos os tempos a força do homem, nós nos dizemos: é uma força de Deus.

O milagre não consiste em não sei que manejo dos acontecimentos por alguma mão exterior. Aqui não há nada de exterior, mesmo que fosse Deus; porquanto o próprio Deus está dentro. O seu Espírito é que é a alma da Igreja, e esse Espírito é bastante poderoso para vencer o mundo, que ele penetra igualmente, e que livremente aciona. “Tende confiança, dissera o Salvador, eu venci o mundo” (Jô XVI, 33). Mas esse poder, como todo poder anímico, exerce-se por dentro; dentro da Igreja, dentro das almas, e utilizando, não fazendo senão orientar, o que as almas e o mundo apresentam de recursos.

Há nisso o mesmo qüiproquó que na oposição do vitalismo e da interpretação físico-quimica dos elementos vitais. O vitalismo diz: “Há uma força vital que dirige, contém e, se preciso, combate as forças físico-quimicas”. E o sábio responde: Não conheço essa força; toda ação ou reação orgânica é mensurável, e depende da observação físico-quimica. Um filósofo intervém e diz: É verdade; no corpo há física e química, a título executivo; mas a finalidade orgânica vem-lhe da alma.

O milagre do  organismo animado é que ele utiliza tudo, até mesmo o que parece estranho ou hostil, para realizar a sua idéia diretora. Mister se faz apenas que ele seja bastante forte, do contrário aquilo que poderia nutri-lo o mata. Ora, nada matou a Igreja; tudo lhe serviu. Mas, se nada a matou, a razão disso não está numa proteção exterior – salvo os milagres particulares, que não se trata de negar; mas falamos do conjunto. – E o que lhe serviu não sérvio em razão de piparotes exteriores. A verdade é que o Espírito de Cristo, vivendo nela, imprimia aos seus elementos humanos uma direção e uma impulsão vital capazes de vencer as hostilidades do meio, de captar as forças úteis, de animar os elementos neutros, e dessarte, de incorporar a si o mundo. É um milagre isso; é o milagre da vida, e, na espécie, o milagre de uma vida divina.

A Encarnação, que criou o gênero humano-divino; o Espírito de Deus, que penetra o Cristo homem, e por ele o núcleo primitivo da Igreja; esse mesmo Espírito que pela graça trabalha a matéria exterior a assimilar, e que, circulando do sujeito ao objeto, do objeto ao sujeito, dá testemunho a si próprio e serve a si mesmo: tal é o milagre.

Para assimilar o mundo e a vida, ao menos tanto quanto eles a isso queriam prestar-se, era preciso um germe igual ao mundo e à vida; era preciso o Homem universal: Cristo; e o Homem universal só é universal pelo Espírito que o penetra e que é o Espírito universal: o Espírito Santo.

As profundezas do homem e da vida do homem, assim como a amplitude do espaço e do tempo que os mede, não podiam ser envolvidas e conquistadas pela Igreja senão com a cumplicidade, digamos melhor, pelo trabalho do eterno, universal e supremo vivente: Deus.


6 – Harnack, Die Mission und Ausbreitung dês Christentums in den ersten drei Jahrhunderten, Leipzig, 1906.
7 – Para a análise desse movimento, neste capítulo e no seguinte, fomos buscar uma quantidade de aspectos ao belo trabalho de nosso confrade o R. P. Allo: L’Évangile em face Du Syncrètisme paien. Paris, Bloud, 1910.
8 – Cf. Sêneca, Ep LXX; Epicteto, IV, 10.
9 – Luciano, A Morte de Peregrinus, 13.

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