Se é verdade que Cristo é o centro e não o começo da história cristã; que tudo gravita em torno dEle – o passado para prepará-lo, o presente para recebê-lo, o futuro para utilizá-lo; de tal sorte que a obra inteira seja sem corte, realizando a palavra de S. Paulo: “Tudo é para os eleitos” -, se esse plano religioso do mundo é o verdadeiro, manifesta é a consequência. Cristo deverá vir no momento em que mais necessidade se tem dele e em que dele mais se pode aproveitar.
Isso supõe que a sua época será ao mesmo tempo rica e pobre: rica em recursos e pobre em realizações; pobre também em esperança, se fosse abandonada a si mesma. E isso dá a prever que a obra cristã consistirá, não em desdenhar o passado, desdenhando-se de si mesma, visto como ela reina sobre o passado tanto como sobre o presente e sobre o futuro, - e tão pouco em copiar o passado, em subordinar-se a ele, em servi-lo, o que seria uma inversão dos papéis; mas em fazê-lo realizar seu fim. Para isso, deverá ela apoiar nele a sua obra histórica assim como, para crescer, o vivente se nutre daquilo que o solo produz. Não se há de esquecer, aliás, que andar é repelir para trás o solo em que a gente se apoia, e que nutrir-se é destruir o alimento enriquecendo-se da sua substância.
Esta concepção a priori precisa ser confrontada com os fatos, para se ver, primeiro, se os fatos a comprovam; e, em seguida, como.
Foi de moda, outrora, ver em Cristo e nos primeiros obreiros da sua obra não sei que iniciados que, quais abelhas diligentes, teriam recolhido o suco das tradições, o pólen das organizações anteriores, para com eles sabiamente comporem esta cera e este mel: a Igreja e o Evangelho. Toda originalidade e toda transcendência seriam assim recusadas à religião de Jesus; ela seria um ensaio de sistematização partindo de dados adquiridos; não seria mais a Boa Nova, o Dom de Deus. Já não haveria “milagre”.
Assim tal qual, esta concepção está morta hoje em dia; nenhum crítico, por pouco sério que seja, ousaria sustentá-la. Tudo nos demonstra que os primeiros obreiros do Evangelho foram estranhos à cultura que semelhante ecletismo suporia; que de modo algum pensaram nisso.
Ao próprio Jesus os puros críticos não emprestam, tão pouco, essas intenções, que destoam de tudo o que se sabe dele. Quanto a nós, é evidente que ainda muito menos dispostos estamos a semelhante atitude. Sabemos que não foi assim, por fora, adventiciamente ou por colheita de elementos estrangeiros, que Jesus se propôs compor sua obra; foi por dentro, pelos meios da vida, e a partir de um germe divino.
Esse germe, que ele trazia, é o seu Espírito, cuja comunicação é simultaneamente intelectual, pelo dogma, e prática, sob a forma de sentimentos, de moções, de meios essenciais de ação. Tal era a alma do seu grupo. Isso é que era o “vinho novo”, que, dizia ele, não se devia conservar em odres velhos. Por essa expressão, ele mostrava bem a que ponto era estranho às vistas do ecletismo. Fazia coisa inteiramente nova, que era ao mesmo tempo coisa eterna, nisto que todo o passado colaborara nela a titulo de preparação, nisto que todo o presente devia servir-lhe de meio nutriente e todo o futuro de matéria para seus progressos. Nunca seria de mais repetir estas coisas.
Portanto, se há semelhanças – e as há numerosas – entre a religião de Jesus e as religiões do passado, não é por empréstimos que cumpre explicá-las primeiro, é por esta consideração simplíssima: que as religiões antigas foram criadas pelo instinto para corresponderem às necessidades do homem, às suas aspirações e às suas reflexões em face do destino. Na medida em que instintos, aspirações ou juízos estavam desviados, as antigas religiões foram também desviadas, e uma religião divina, como o cristianismo não devia assemelhar-se a elas; mas onde quer que as necessidades fossem reais, que as aspirações fossem legítimas e as reflexões sensatas, as religiões concluíam acertadamente, e a religião definitiva devia assemelhar-se-lhes nisso, embora excedendo-as, visto como as suas reflexões, hauridas de lá de cima, transcendem a amplitude sempre limitada de um olhar de homem.
É preciso capacitar-se de que, em religião, o divino é precisamente o mais humano, não tendo a religião outro papel senão rematar a vida do homem, mesmo quando a excede. O divino autêntico deve, pois, coincidir parcialmente com o humano autêntico, e isso não será um empréstimo, mas um encontro, motivado por um mesmo ponto de partida e por uma finalidade comum.
Deus dá o pão supersubstancial; os homens procuram fabricar o outro, e nem sempre têm falhado na sua fabricação. Deus dá a água que jorra até a vida eterna; mas já havia outras águas. Os que bebiam delas ainda tinham sede; ver-se-á bem isto pela solicitude deles quando jorrar a fonte divina; porém, mesmo assim, eles tinham achado nelas refrigério.
Destarte se explicam os traços comuns que com tanto comprazimento têm sido salientados – no intuito de fazer deles objeções – entre o cristianismo e o budismo, as religiões persas, gregas, Roma,as, etc., como se não fosse um elogio, em relação a uma religião que se pretende sem lacuna, o dizer-lhe: Não esquecestes este e aquele valor descoberto antes de vós por outras religiões. Chamem ao cristianismo, tanto quanto quiserem, “um microcosmo religioso”! É um grande louvor.
Todavia, historicamente esta resposta não é suficiente; pois não negamos que tenha havido empréstimos essenciais, empréstimos destinados a constituírem a religião, ao invés de servi-la. Por isto teremos de tornar à questão das utilizações do paganismo pela religião cristã. Mas, por enquanto, temos de repetir uma segunda forma da opinião, que faz do cristianismo um fruto natural do passado e do presente religioso a que sucedeu.
Muitos, com efeito, afastando os disparates que fariam de Cristo e dos apóstolos uns ajuntadores de noções e de devoções esparsas, nem por isso deixam de dizer que, para se formar, a Igreja herdou – apenas sem o saber, e sem o saberem os seus iniciadores – aquilo que aquela época compósita, cuja fisionomia exata tentamos dar mais acima, continha.
O cristianismo não passaria de um dos movimentos espontâneos de renascimento religioso que se ensaiavam no tempo de Jesus, e Jesus não teria feito senão determinar a cristalização num certo ponto, em certas formas, formas que aliás se alteraram, ao que dizem, pela influência dos cultos que não tinham sido bem sucedidos no mesmo esforço, e que ele entendia de suplantar.
Esta teoria tem por si os traços comuns que aproximam o cristianismo dos estados de espírito reinantes no momento em que ele nasceu, e das doutrinas ou dos ritos próprios às religiões ambiente. É assim que o universalismo e a interioridade, que figuram entre os sinais mais característicos do cristianismo, já se fazem adivinhar no sincretismo, que representa o meio imediato em que a Igreja teve de se formar.
Basta, porém, olhar nisso para verificar que essas tendências, se podiam servir para preparar as almas, de modo algum podiam, por si mesma, sugerir-lhes os pontos de vistas cristãos, porque destes àqueles há um abismo.
Bem verdade é que no tempo de Jesus os cultos outrora locais tendem a universalizar-se. Parecem agora abertos a todos. São-no realmente, salvo o mitraísmo. Mas é somente pelo seu lado exterior, o lado menos religioso; poder-se-ia dizer nada religioso; porque o exterior nada é, se não manifesta uma alma.
As bacanais, as procissões delirantes da Grande Mãe, em que os eunucos triunfam entregando-se a transes de epilépticos: eis o que se franqueia a todos. Desde que se trata da vida interior, mística e verdadeiramente moral, recai-se na estreiteza da iniciação. Considera-se como ímpia uma manifestação comum da doutrina e dos divinos arcanos. O número é uma profanação. O exclusivismo faz parte das alegrias do iniciado, neste mundo e no outro.
Os partidários da mentepsicose, pouco numerosos relativamente, ainda têm esta pálida desculpa de só desprezarem a multidão provisoriamente; ela renascera mais perto de nós, se disto for digna, e subirá algum dia ao Olimpo onde as nossas alegrias estão bem próximas. Mas os que terminam na morte o ciclo das preparações religiosas não se mostram lá muito universalistas, quando dizem equivalentemente: Que se arranje a multidão humana!
Aproximei isso destas grandes palavras: “Ide e ensinai todas as nações, ensinando-lhes tudo o que eu vos mandei”; “Não se acende a lâmpada para escondê-la debaixo do alqueire”; “Não há nada oculto que não deva ser manifestado”; “O que eu vos digo ao ouvido, pregai-o de cima dos telhados”: e verificareis a diferença.
Correlatamente, a tendência universalista do sincretismo comportava uma tendência para a interioridade, tendência que as religiões políticas das épocas anteriores desprezavam. Neste sentido, havia grande progresso. A salvação do Estado cedendo à preocupação da salvação da alma; o indivíduo imortal suspeitando o seu valor e, a despeito de monstruosas aberrações, elevando-se à ideia de sacrifício: aí já era o excelente. Os mistérios assinalavam esse estado novo da opinião religiosa. Mas julgai de perto essas manifestações, e capacitar-vos-eis da ilusão que haveria em aproximá-las da vida interior tal como compreendeu o misticismo cristão. A aparência de certos termos pode enganar; a realidade é muito menos nobre.
Que é que se pede ao iniciado para participar dos favores místicos? A pureza, o que poderia fazer crer por isto se entende o que o Evangelho entenderia. Mas, lendomelhor, percebe-se que se trata de coisa inteiramente diferente. Em matéria de pureza, pede-se-vos não serdes nem “ímpio”, nem “celerado”; é uma boa precaução contra as batidas policiais ou as raízes de objetos piedosos; mas como pureza interior é pouco, quando se pensa que a profissão de cortesã permite à iniciada conservar o que seus sacerdotes chamam de “mãos puras”.
Mais tarde, a iniciação do cristianismo já desenvolvido levará essas religiões a macaquearem o nosso misticismo; elas chamarão seus deuses – coisa nova – os “guardiães da alma e do espírito”, e as suas inundações de sangue de touro serão consideradas como tendo o efeito do batismo; mas, por seu próprio movimento, essas religiões não levam à vida interior; a pureza de que elas falam na sua catártica é uma pureza legal, semelhante à do Judeu que não comeu porco e está com as mãos limpas.
Notai que, entre os Judeus, esse formalismo, pelo fato de se substituir à ideia moral, era uma degenerescência; di-lo bastante o Salvador. Aqui, é o caso normal. Não se trata de deplorar as próprias faltas e de converter o próprio coração, mas de tomar um banho que vos liberta das lamas da existência à maneira de uma lavagem mecânica.
A pureza pagã é uma medida prudente contra as doenças, as enfermidades precoces, os acidentes, os desarranjos de mente e do corpo vindos dos deuses descontentes. E descontentes por quê? De modo algum porque o nosso coração está longe deles – o que, de resto, merecia às vezes louvor! – mas porque certos atos ou certas omissões nos tornaram para eles um objeto de horror.
Consegue-se dobrar os deuses por meio de encantações materiais. Para isso não basta uma consciência fiel; é preciso uma voz justa. O bárbaro, que não sabe pronunciar o grego, é excluído pela mesma razão que o ímpio ou o celerado. Assim traz o ritual. Tudo isso é pura magia, e não religião ou moral.
Apresso-me a observar, como já mais de uma vez o fiz, que essas críticas atingem as religiões antecristãs tomadas em si mesmas, e não sempre, e em tudo, os SUS fiéis cultos. É por isso mesmo que, aparecendo-lhes o cristianismo, eles se precipitam nele em multidão. A partir desse momento, a situação inverte-se, e, em vez de serem superiores à sua religião, eles serão esmagados pelo novo ideal, a ponto de se declararem servos inúteis, mesmo após heroicos esforços. Mas não se trata de indivíduos, trata-se dos próprios cultos e daqueles que os vivem tais como eles são. Esses acham-se entregues a práticas em que a magia ocupa um lugar inteiramente absorvente. Corre-se a toda parte para lhes ter o duvidoso lucro; mas isto mesmo prova que não lhes dá senão um mero sentido supersticioso. Não contente com a própria religião, pratica-se a dos outros, porque não se sabe de quem é que se pode ter necessidade. Não vale por dizer que a Divindade verdadeira, a que vê o coração, vos ficou alheia?
Conhece-se um certo Faventino que, no seu epitáfio, se gaba de ser ao mesmo tempo áugure da velha religião romana, Pai e arauto sagrado no culto do sol invicto (Mitra), arquibúcolo no culto de Baco, hierofante de Hécata, e sacerdote de Ísis. A gente pensa nesses magnatas da finança que fazem parte de trinta ou quarenta administrações.
E, quando os deuses tão ecleticamente desservidos dão mostra de resistir às súplicas dos seus fiéis, pretende-se possuir meios de forçá-los: prova nova da nulidade moral desses ritos. Não é, porventura, escandaloso que certas fórmulas ou simplesmente a invocação de um nome secreto, coloquem o poder de Deus à disposição do fiel, sem que a retidão de intenção entre nisso pelo que quer que seja? Que outra coisa é então esse Deus, se não é um daqueles Olimpianos de Homero que uma fatalidade domina, ainda quando se chamasse Júpiter, e que pode enganar-se ou enganar, a quem se pode enganar, a quem se pode forçar, se, por uma hábil manobra, se lhe consegue virar o poder?
A Igreja está tão pouco disposta a imitar esses ritos pretensamente santificadores, que os afasta com horror, acusando-os, pela boca de Paulo, de só terem a “satisfazer melhor a carne” (Cl II, 20-23), sem dúvida em razão do fim todo carnal colimado ao submeter-se a eles, mas também, o que não parece lá muito duvidoso, por não sei que sadismo de sensibilidades “détraquées”, como o indicam as estranhas histórias edificantes contadas nos Mistérios. Só se fala aí de violência e de luxúria, e, diz Gaston Boissier, “verdadeiramente parecia haverem-nas reservado para o segredo dos mistérios porque quase não se podia exibi-la em plena luz”, essa plena luz que via tantas!
“Bem aventurados os corações puros, porque verão a Deus”: é o contraste absoluto entre o cristianismo e essas falsas purezas legais.
Se desses pontos de vista gerais passássemos à minúcia, ainda muito menos justificada acharíamos a pretensão de fazer sair o cristianismo do meio compósito em que nasceu. Não basta dizer, por exemplo: a morte e a ressurreição do deus fazem parte de vários cultos; os ritos da iniciação assemelham-se ao batismo; os repastos sagrados pelos quais se comunga com Dionisios ou com Mitra são como que uma cena eucaristia; o iniciado de Átis come a carne de um animal divino e bebe o sangue do touro sagrado para se identificar com seu Deus; Orfeu e Cristo são aproximados pelos próprios primeiros cristãos; a linguagem ritual é às vezes idêntica no cristianismo e alhures, tal, por exemplo, o “refrigério” desejado aos mortos, o qual se julgaria tirado dos cultos de Ísis; o ascetismo cristão e o ascetismo pagão têm parentescos manifestos; os carismas, ou manifestações do Espírito, lembram os transes místicos dos cultos gregos ou orientais; a disciplina do arcano, ou proibição de revelar fora tais crenças ou práticas cristãs, é um caso particular nos Mistérios; os catecúmenos e os batizados representam os profanos e os mistes, etc.; tudo isso não basta para demonstrar uma filiação entre o cristianismo e cultos anteriores e contemporâneos.
Uma multidão de confusões insinuam-se nas aproximações estabelecidas. Há umas autênticas, e daqui a pouco direi a razão disso; porém a maioria são superficiais ao ponto de aproximarem apenas uma máscara de um semblante ou um retrato de uma caricatura. De sorte que, se não se tomar cuidado, salientando-as incide-se nesses “mais ou menos” que são uma espécie de trocadilho, como sucedeu a esse grande erudito que é Salomão Reinach, em punição dos “parti pris” que fizeram do seu Orpheus o último dos panfletos inspirados pela questão Dreyfus.
Para todos, por exemplo, é certo que a ceia eucarística, que se quereria fazer sair das divagações mitológicas, se apresenta historicamente como uma continuação da Páscoa judia, seu símbolo claramente invocado pelo próprio Jesus, e que portanto não há sombra de empréstimo, mas sim desenvolvimento voluntário, aliás transcendente, visto como a Páscoa judia era e sabia que era um símbolo, ao passo que a Páscoa cristã é uma realidade.
A liturgia da missa é igualmente judia: é a cerimônia do “sabbat”, na sinagoga, simplesmente aplicada às novas concepções e às realidades novas. Isto por aí mesmo se compreende, dada a composição dos primeiros grupos cristãos, que eram judeus e mui longe ainda de quererem ir buscar o que quer que fosse aos cultos pagãos. “Que pode a luz ter de comum com as trevas?, dizia S. Paulo, que acordo é possível entre Cristo e Belial?”
A gente se pergunta também o que é que a morte de Jesus sob Pôncio Pilatos, em plena claridade histórica, e consignada por Tácito nos seus Anais, pode ter de comum com a morte de Átis, da qual se confessará que é bastante dizer: é um símbolo. Os que a ela se uniam misticamente, assim bem o entendiam, pelo menos os melhores. Os que refletiam poderiam ter dito ao seu deus, tão pouco edificante e tão longe de toda realidade histórica:
Bem creio, cá entre nós, que não existes.
E, isso dizendo, ter-lhes-iam feito honra.
Quanto à ressurreição, é historicamente, e não misticamente, que ela faz parte do sistema cristão, especialmente no seu ponto de partida. Ela é o grande fato, a prova irrecusável, pela qual os Doze “se fazem degolar”, dirá Pascal, como por uma coisa que eles viram, que demonstra a missão de seu Mestre, e que portanto é para a doutrina deles um fundamento de realidade, e não um símbolo.
Acrescentemos que o símbolo de que se fala, os apóstolos cristãos não o conhecem provavelmente no inicio; eles quase não o apreciarão, vendo nesses pretensos mistérios meros “contos de velha” (I Tm IV, 7). Que significa, destarte, a ideia de empréstimo? Não se pede emprestado a símbolos, fossem eles sublimes – e com a maioria de razão se são julgados pueris – coisa com que afirmar historicamente e de que morrer.10
E assim sucede com tudo o mais. Tomais uma após outra todas as semelhanças que se procuram salientar: ou elas são inventadas, ou se mostram muito mais ainda diferenças, porque o seu espírito é inteiramente outro; e que é o gesto ou a palavra sem espírito? Este é que é a verdadeira realidade religiosa. De sorte que, depois de haver mostrado os cristãos e os pagãos agindo em comum desta ou daquela for,a dizendo isto ou aquilo, nada mostrastes, se diversa é a alma das palavras e das coisas.
Em toda a extensão da sua vida comum com as civilizações pagãs, a alma da Igreja cristã mostra-se antagonista a fundo, e não devedora. No início, ela se opõe às imitações mesmo mais inocentes. E isto, repito, não quer dizer que não haja aí pontos comuns. Deve haver. Mas há diversidade de espécie, porque há diversidade de origem, diversidade de espírito inspirador, diversidade de fim. A Igreja é inconfundível.
Estabelecido isto, resta ver como, tendo feição própria, a Igreja utiliza sem pestanejar tudo o que o passado lhe legou, tudo o que o presente lhe oferece, e antecipadamente se adapta a tudo o que o futuro lhe promete.
II
A caducidade religiosa do mundo, por ocasião do advento do Salvador, era bastante semelhante ao húmus que se amontoa, sobe as juncadas de folhas mortas, ao pé dos veteranos da floresta. Inerte por si mesmo, o húmus aguardava apenas um germe para irromper em brotos novos. A Igreja não tinha, pois que trazer tudo. Trazia a essência cuja definição fornecemos, alma permanente que ela deveria para sempre salvaguardar, mas que seus primórdios encarnavam num corpo rudimentar, destinado a progredir em todos os sentidos: doutrinalmente, praticamente, administrativamente, já que o tempo e o meio natural condicionam tudo o que vive.
Fidelidade a si mesma e intransigência no que respeita à sua essência íntima; mas também plasticidade e adaptação utilizadora a respeito de um meio providencialmente destinado à sua vida: tais são os dois deveres da Igreja. O segundo é menos necessário, se se quiser; mas essas questões de grau no indispensável não têm nenhum interesse prático.
S. Paulo chama as doutrinas pagãs, leigas ou religiosas, os elementos deste mundo (Gl IV, 3); quer dizer, sem dúvida, as letras do alfabeto ou os rudimentos de palavras com que se constrói o discurso. São elementos; conservam o seu valor de elementos; só são rejeitados se pretendem ser por si só o discurso. Se consentem na absorção, são louvados e utilizados.
A razão fundamental pela qual a Igreja tem essa aptidão e assim procede, é que, divina, isto é, filha do Criador de todas as coisas, é irmã de todas as coisas; é fundada na natureza, e admite a natureza não somente nos seus elementos profanos, mas também nos seus elementos morais e religiosos, que não são menos natureza do que o resto. É essa, para ela, um sinal de catolicidade, “nota” da sua verdade e da sua origem divina. “Só a igreja, escreveu Newman, conseguiu rejeitar os elementos maus sem rejeitar os bons, e fazer entrar na unidade da sua síntese coisas que em qualquer outra parte são incompatíveis”.
A Igreja utiliza, assim, principalmente três coisas: o senso do sublime, tirado do Oriente; o senso do belo e do razoável, especialidade dos Gregos; o senso do justo e do útil, próprio à civilização romana.
O Oriente chega à Igreja, para lhe enriquecer as concepções, por um canal todo indicado: a Bíblia. A civilização judaica, nas suas épocas clássicas, já era uma síntese depurada do Oriente religioso e uma síntese aproximada, já sofrivelmente rica, do Oriente político, filosófico e social. A dispersão, pondo o judaísmo em contato com as outras raças, amplia-o e, uma vez assimilado ao cristianismo, torna-o mais apto ao papel de nutrício que ele é chamado a desempenhar por sua parte, a respeito da vida nova.
O Oriente infiltra-se assim nas veias da Igreja como um sangue quente e brilhante cujo encarnado se reconhece facilmente hoje mesmo. Os espíritos estreitos a quem chocam os nossos ritos pomposos, as nossas tiaras e as nossas formulas por gosto enfáticas, acham nisso matéria para censura: mas o cristão desprendido de si pensa nos séculos e nas raças com que é solidário, na unidade feita de diversidades que a vida católica realiza, e sente-se ufano de aderir a uma sociedade integralmente humana.
Não menos úteis à vida da Igreja deviam ser os maravilhosos contributos da civilização grega. Eram-no ainda mais a certos respeitos. A filosofia, tão necessária para sistematizar a doutrina, para torná-la coerente com o espírito, proveitosa à investigação e defensável a respeito de adversários bem armados, da Grécia é que virá.
Separada da religião, ou posta a serviço de religiões falsas, pueris ou insuficientes, a filosofia não tinha servido de nada para a vida. Só dava o incerto, não assegurava da verdade e ainda menos da sua realização prática. Nada de trilha humana traçada, unicamente especulações, porque a autoridade faltava, se não faltavam o saber e a eloquência. Aquele que puder dizer: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” estará em condições de fazer a filosofia atingir seu escopo como faz atingir seu escopo tudo o mais. “Restaurar tudo em Cristo”, a filosofia terá o benefício desta palavra, e aquele que nem sequer lhe pronunciou o nome, aqueles que posteriormente falam uma língua de aduaneiros e de barqueiros, serão os verdadeiros salvadores dela.
Na época de Jesus, o classicismo está em via de dissolver-se nas loucuras místicas ou míticas em moda. Bem longe dos espíritos claros da Hélade, uma quantidade de pretensos pensadores degeneram no mágico, no curandeiro banal e no adivinho. Pelo órgão daqueles a que nós chamamos seus Padres, seus Doutores, a Igreja recolhe as tradições de Sócrates, de Platão, de Aristóteles; completa-as e compreende-as por assim dizer, melhor do que eles próprios, nisto que leva a fundo aquilo que eles apenas haviam esboçado, endireita o que eles haviam deformado, harmoniza com verdades novas o que eles tinham deixado sem nexo. Mais tarde, fá-los-á reinar, com seus êmulos, em face da sua própria apoteose simbólica, no próprio palácio do Vaticano. A Disputado Santíssimo Sacramento, de um lado, e a Escola de Atenas, do outro, decorando a Stanza della Segnatura, interpretam o “selo do pescador” como uma aceitação de todo o humano incorporado a todo o divino, para que Deus seja tudo de todos, e de tudo.
Não é segredo para nós que a Revelação é a salvação da razão, e que a luz que ilumina todo homem que vem a este mundo, se tem o seu foco divino no pensamento evangélico, sabe reconhecer-se também nos achados dos homens. De uma religião nada sistemática em si mesma, e de uma filosofia (a de Aristóteles) arreligiosa no fundo, mas em que o pensamento grego atingia o ponto culminante da sua força e da sua luminosa harmonia, a Igreja, representada pelo maior de seus doutores, fará a Suma Teológica, a obra filosófica mais religiosa e a obra religiosa mais filosófica que jamais tenha aparecido.
O que eu digo da filosofia aplica-se, sem que seja necessário demorarmo-nos nisto, a todos os aspectos, tão variados, da civilização helênica. A arte de nossas catacumbas e de nossas basílicas outrora não é senão a arte grega, degenerada, é verdade, mas aceita tal qual, e admitida ao batismo, enquanto aguarda ser confirmada, alimentada com o sangue de Cristo, absolvida de suas taras, casada com a divina Esposa, à qual dará esta gloriosa filha: a arte cristã. Prova de que o Espírito criador, servido pelo gênio do homem, não é menos artífice de beleza do que de prosperidade em qualquer domínio, de verdade e de virtude.
Enfim, eu disse que ao gênio romano a Igreja toma emprestado o seu espírito de governo, o seu senso do legal, a sua capacidade de reger a um tempo larga e firmemente as realidades humanas. O direito canônico, desde o inicio, enceta a larga curva que ainda não está fechada, que nunca o estará; sem pestanejar, vai buscar as suas mais precisas determinações à ciência jurídica de Roma. Submete-as, bem entendido, à sua matéria e aos seus fins – às vezes não o bastante, talvez: mais de uma vez, ao longo da história, notar-se-iam reminiscências da dureza romana a respeito de súditos regidos pela lei de amor; mas, no conjunto, a utilização segue sempre a mesma regra: envolvimento assimilador, entrada de tudo sob uma lei de vida que se endereça a tudo, querendo fazer realizar seus fins o homem todo.
Por si mesmo se concebe que a recíproca devia também ter lugar. O direito canônico influenciou todos os pensamentos jurídicos da nossa era; ele olhava de mais alto, e, daí, a mais profundo: devia-se recorrer a ele para julgar das maiores causas. Pena é não se fazer isto ainda mais nestes nossos tempos de dispersão de espírito!
E, se se trata dos elementos propriamente religiosos encontrados pela Igreja no momento do seu nascimento e no curso dos seus primeiros desenvolvimentos, já não sucede com eles inteiramente o que sucede com os produtos da civilização geral. Os empréstimos, aqui, reclamam prudência. É preciso não se expor a incorporar germes mórbidos, e aquilo mesmo que mais tarde será nutriente pode ser mórbido no estado nascente.
Já lembrei que o primeiro cuidado da Igreja deve ser diferenciar-se, a fim de se definir. Uma vez bem reconhecido o que ela é, poderá ela entregar-se sem perigo a um trabalho de adaptação, em mira a um enriquecimento dos seus quadros.
É no começo do século II que a Igreja, conquistando todo o escol social, tem com que se fazer julgar tal como é, e pode pois tranquilamente apropriar-se de elementos úteis sem se arriscar a ver-se confundir com cultos doravante vencidos. Nesse momento, aliás, estando encerradas as perseguições, a dilatação da Igreja e o seu estabelecimento pacífico criam necessidades novas, que os contingentes estranhos ajudarão a satisfazer.
É assim que Gregório, o Taumaturgo, seguido nisso por todos os seus colegas, introduz em Neo-Cesareia costumes religiosos tirados do paganismo, mas que, bons em si mesmo, em todo caso indiferentes, podem adaptar-se às crenças cristãs. Festas, banquetes simbólicos, datas consagradas por longos usos são batizados, após serem cuidadosamente expurgados ou explicados. Dá-se com eles o que se dá com os edifícios religiosos dos pagãos, que são mudados de destinação, conservando-se. A intolerância necessária mostra-se assim isenta de fanatismo e de mesquinha impertinência. Ao mesmo tempo ostenta-se a liberdade do espírito religioso a respeito dos ritos acessórios, quando no paganismo o rito é tudo, e a interioridade ad libitum.
A liturgia acha, assim, como progredir no sentido da amplitude e do senso estético. A clareza majestosa e a bela ordenação gregas juntam-se à vida interior de que a Igreja tem o monopólio. O exterior poderá corresponder ao interior; o gesto secreto assumirá a amplitude de um gesto de multidão, para que a Igreja também ore, e pelo seu corpo tanto quanto pela sua alma.
A terminologia sagrada segue um movimento paralelo: vemo-la enriquecer-se de termos figurados tirados da poesia antiga, veiculados por meio de religiões rejeitadas, mas não inteiramente perversas. Os exorcismos solenes, as lustrações de água benta, as velas, as túnicas brancas, as procissões à imitação dos Panateneus, tiram daí sua origem.
A Festa de Natal, que faz coincidir o nascimento de Jesus com a festa do Sol invicto (Natalis invicti), lembra a cristãos recentes que o Senhor deles, nascendo em Belém, é que é o verdadeiro sol dos homens.
Agir assim não é pactuar, é ligar-se a tradições purificadas, a utilidades psicológicas ou sociais, a recordações, a valores de arte que, já não sendo veneno, se tornam alimento. O que os povos mais artistas ou mais religiosos do universo tinham achado não podia ser inteiramente vão. Não eram esses os odres velhos, o vestido velho em que o remendo novo do Evangelho não devia ser cosido; era o receptáculo eterno dos sentimentos humanos; era a veste de natureza que não se podia tirar fora sem dilacerar o homem, sem mutilar a história, que representa as etapas da vida do homem.
Essa adoção dos costumes pagãos, regulada com prudência, permitiu a utilização dos sentimentos e instintos que sustentavam os cultos locais; com isso, ela fornece À penetração evangélica uma grande força. O culto dos mortos, o culto dos demônios ou espíritos dos mortos que tinham sido piedosos, o culto dos protetores domésticos: penates, lares, genius, etc., representavam as mais antigas devoções conhecidas, e por isso as mais tenazes. Expulsá-las sem substituí-las era difícil, e aliás não se devia. O culto dos santos e dos mártires lá estava para auxiliar a substituição; ele compensava no espírito das multidões a perda das pequenas divindades populares. Quando se tira a uma criança a chupeta, ela depressa se consola se em lugar da chupeta lhe dão pão.
É bem conhecido o caso daquele bispo do Gévaduan, de que Gregório de Tours fala na sua Glória dos Confessores. Após vãos esforços para desarraigar o culto idolátrico do monte Helànus, que consistia em atirar oferendas numa lagoa e em se lhe banquetear nas margens para se tornar favoráveis os seus gênios, teve ele a ideia de fundar no lugar um oratório a Santo Hilário de Poitiers, com suas relíquias. Os campônios afluíram, e aquilo que atiravam no lago consagraram-no de então por diante às caridades do novo santuário.
Isso se fazia mais ou menos em toda parte, e mui sensatamente, pensem o que pensarem alguns. O culto dos nossos santos, bem compreendido, não é a idolatria que o protestantismo pretende; significa intercessão, união universal dos homens em Cristo e solidariedade nesse Vínculo, isto é, depois da ideia de Deus, a mais alta das ideias religiosas. Digamos melhor, ele evoca toda a religião, se o encararmos do lado do homem.
Produziram-se abusos; produzem-se ainda; a veneração e a adoração nem sempre foram bem distinguidas, mormente no inicio, por homens rústicos, e o egoísmo mais de uma vez invadiu o terreno dos sentimentos religiosos; mas isso não era culpa da Igreja. A grande construtora constrói; admite o risco. Paris espiritual não se constrói, tão pouco, num dia. Antes de exigir de todos a perfeição cristã, era preciso ligar as massas ao princípio cristão.
Melhor não posso concluir, nem acentuar uma última vez o caráter assimilador, ao mesmo tempo que separador, atribuído à nossa Igreja, senão por estes textos de um dissidente que podemos plenamente fazer nossos:
“A religião cristã, diz Harnack11, apresentou-se desde o começo com um caráter de universalidade em virtude do qual pôs seu cunho sobre a vida inteira, com todas as suas funções, com suas alturas e profundezas, seus sentimentos, seus pensamentos, seus atos. Só afastou a desonra e o pecado. Construiu-se com tudo o que ainda era capaz de viver, e isso graças ao seu poder de organização. Fora dela, quebrou tudo; em si mesma, tudo conservou. Podia isso, porque – sem dúvida ninguém o dizia e ninguém o sabia, mas cada alma piedosa o realizava em si mesma – porque, considerada na sua essência, era alguma coisa de simples, digamos antes de universal, ou católico, que podia unir-se a todos os coeficientes, que os reclamava mesmo”.
Duvido que qualquer autor católico tenha apresentado um argumento de apologética interna mais impressionante e em termos mais fortes.
“Ela, continua Harnack, permaneceu exclusiva, atraindo entretanto a si todo elemento estranho que tinha um valor qualquer. Foi por este sinal que ela venceu; pois sobre tudo o que é humano – eterno ou transitório – ela colocou a cruz, e desde então submeteu tudo ao além”12.
Donde esta conclusão naturalíssima: “Se o houvessem traduzido (o cristianismo) perante um tribunal, para lhe perguntarem com que direito admitira tantas novidades (e acrescentarei: pilhara tantos adversários), ele teria respondido: Não sou culpado; só fiz desenvolver os germes que haviam sido depositados em mim desde o inicio da minha existência”13.
É bem e sempre a mesma imagem, a mais expressiva das que se podem aplicar à Igreja. A Igreja é um germe que se desenvolve às expensas do seu meio, vivendo do seu meio sem lhe pertencer nem se comprometer nele.
Intransigência e plasticidade são os seus dois caracteres complementares; eles explicam toda a sua história; explicam mui primeiramente o seu início.
O que, nas possantes evoluções que lhe compõem o destino, se transforma, não é ela – ou, pelo menos, as suas transformações são as do grão, que evolui na mesma essência; - o que se transforma, verdadeiramente, é aquilo que ela vive, sendo uma desnaturação enriquecedora a condição imposta seja ao que for para ter acesso à substância.
Ela absorve e não é absorvida. Só aceita as luzes terrenas como matizes de transição para conduzir ao seu sol ou para acompanhar o seu sol – sublime halo que o astro divino, seu centro, irisa nas nuvens da nossa atmosfera; claridade suave que transforma em joias as agulhinhas de gelo do nosso ar e tamisa no entanto o esplendor obcecante; clarão difuso, clarão cambiante, que leva a irradiação mais longe e coloreia de beleza terreal a inacessível vibração da pura luz dos céus.
“Instaurar tudo em Cristo”, em Cristo socializado que é a Igreja; divinizar assim tudo o que é do homem e humanizar tudo que é de Deus: este é o programa. É ao que tendem todos os empréstimos que, sem que jamais se esgote o seu poder e envolvimento e de vivificação, o Evangelho eterno fez e há de fazer à eterna e universal civilização.
10 – A sei dos Naassênios, é verdade, ousou confundir Átis com Jesus; mas com isso só excitou o horror e a risada cristãs.
11 – Op. Cit., I, III, conclusão.
12 – Ibid, tomo II, p. 285
13 – Ibid, p. 206
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