segunda-feira, 6 de maio de 2013

A Igreja em face dos césares - A. D. Sertillanges


A Igreja em face dos séculos antigos para se prender neles, em face de si mesma para se constituir, em face do seu meio natural para nele se apoiar, para se distinguir dele na medida necessária e com isso conquistá-lo: tal é a visão de que até aqui penetramos os nossos olhares.

A que reservávamos para sob este título: A Igreja em face dos Césares, deve mostrar-nos a obra de Cristo em luta com as potências deste mundo de que ela mais poderia ter que temer, se algo de sobre-humano não estivesse nela, prontinho a medir-se com o humano levado ao máximo – e armado – representado por esta palavra tradicional: César. Insistindo sobre o sentido ampliado, e de alguma sorte simbólico, deste termo, poder-se-ia dizer: a Igreja não esperou estar em face dos Césares para experimentar César. Um César domestico faz-se ver apressado, desde o tempo de Jerusalém, a zombar da familiazinha heroica, depois de lhe haver matado o Mestre.

A Paixão foi antes de tudo um crime judeu; o Império só indiretamente tomou parte nela, trazendo-lhe uma cumplicidade administrativa, se assim posso dizer, cobrindo com sua assinatura uma sentença imposta por outros. A Paixão continua sob as mesmas responsabilidades enquanto o judaísmo continua sendo a moldura política do cristianismo nascente. Nascida na cruz do Rei dos Judeus, a Igreja aí fica. Predisse-o o Salvador: “O servo não está acima do amo”. “Se eles assim trataram a lenha verde, que farão da lenha seca?” (Jo XIII, 16; Lc XXIII, 31).

Sob Herodes Antipas, João Batista e Jesus pereceram. Sob Agripa Iº, Estevão, Tiago, filho de Zebedeu, e Tiago, o irmão do Senhor, perecem por sua vez. Outros são flagelados. No ano 34 aproximadamente, a perseguição é bastante forte para dispersar o rebanho – que, como vimos, aproveita isso para enxamear, especialmente em Antioquia.

As razões da atitude adotada pelo sinédrio para com a seita nova não são todas elas religiosas, nem judias. A política romana já entra aí por alguma coisa. Acaso Caifás não disse, perfidamente é certo, mas apoiado em aparências plausíveis: “É melhor que morra um homem do que todo o povo?”. Desde esse momento, pois, temiam-se dificuldades da parte dos Romanos. A sinceridade religiosa e a independência ardente dos discípulos de Cristo fazem deles uns perturbadores, ao olhos de uma administração já sobrecarregada de querelas e maçada com as combinazioni judaicas.

Quando, pelo fim do século I, o êxodo da Igreja for consumado, Jerusalém destruída e todo poder político de Israel abolido, as pequenas dificuldades locais cederão à grande tormenta cujas causas temos de dizer.


Em principio, entre os Antigos, o homem que pratica uma religião diversa da do seu país está em situação daquele que se põe a serviço dum exército estrangeiro ou que muda de pátria. Mas a fusão dos Estados ou suas combinações políticas, por meio do direito de cidade diversamente praticado, leva a compor, em religião como em tudo o mais. Estabelece-se uma larga tolerância, que não é um progresso religioso, que é um ceticismo disfarçado nos dirigentes e uma superstição agravada nos outros. Os que creem na pluralidade dos deuses não se incomodam com a existência de mais alguns. Desde que o interesse e o instinto social se acham postos a coberto, a introdução de divindades novas excita apenas uma curiosidade benévola, ou um sorriso indiferente, ou um vago temor reverencial.

Num sistema mitológico complicado, em que os censos são sempre provisórios, há sempre uma porta aberta; ninguém se admira de ver passarem a ele divindades novas – que aliás muitíssimas vezes só são novas de nome. Que importa seja Deméter chamada Ísis pelos Egípcios e introduzida em Roma sob esse vocábulo estrangeiro, como uma filha que volta a habitar na casa dos pais depois do casamento?

Os judeus e os cristãos têm princípios inteiramente outros e estados de espírito inteiramente diversos. Aos olhos deles, a Divindade não é um patrimônio nacional, nem tão pouco – menos ainda – uma confederação indeterminada em número e em forma. O Deus deles é Deus; os outros são meros demônios ou sonhos, cujo culto é pura impiedade e puerilidade, excitando sucessivamente ou ao mesmo tempo a risota e a indignação virtuosa.

Compreende-se a reação hostil que tais concepções devem provocar, e a solidariedade que deve estabelecer-se entre os cultos pagãos mais divididos, quando se trata de troçar semelhante intolerância. Plínio e Tácito chamam os judeus uma raça célebre pelo seu desprezo dos deuses, e que considera como profano tudo o que os outros têm como sagrado14. Em regime pagão, e dada a confusão permanente do espiritual com o temporal, isso quase não se perdoa.

Todavia, acha-se jeito de arranjar-se finalmente com os judeus. A não ser que se tornem cidadãos romanos, caso em que as dificuldades sobrevém e se resolvem de diversas maneiras assaz arbitrárias, eles beneficiam da tolerância geral. As perseguições consistem pra eles, as mais das vezes, em imposições de tributo. O dinheiro é o preço da sua liberdade. Tudo se compra junto a gente para quem o espiritual é antes de tudo negócio temporal, negócio de Estado. A irreligião só é perseguida a título de anarquia: já não se é anarquista quando se paga para a administração da ordem. Os judeus tornam-se excelentes servidores de Júpiter Capitolino, desviando em proveito dele o didracma que os Ben-Israel pagavam ao Templo antes da destruição do santuário. Vespasiano, em todo o caso, assim decide.

Mas o cristianismo não é por muito tempo confundido com sua mãe, a sinagoga. Mãe desnaturada, esta retoma muitas vezes à sua conta o papel de Judas. Interesseira, odienta, ela não quer ligar a sua sorte política à de gente que a abandona cada vez mais, que goza dos seus privilégios e a compromete pelos seus excessos de zelo. Sucede serem judeus os primeiros a denunciar os cristãos às autoridades romanas.

Isso não é muito necessário. Para desvantagem deles, cedo se discerne gente tão extraordinária como esses cristãos. O seu gênero de vida separado, intenso e tão oposto ao século, expõe-nos às represálias de sentimentos melindrados e de malevolências exacerbadas por toda sorte de interesses comprometidos. Toquei neste último ponto a propósito das conquistas da Igreja.

Calúnias atrozes circulam. Os ritos mais sagrados, que se julga bom manter secretos por prudência, tornam-se por esse fato ocasião de acusações infames. Os ágapes noturnos são convertidos em saturnais capazes de fazer corar as saturnais; a eucaristia vira antropofagia: é uma criança que degolam para comerem.

Essas invenções odiosas e tolas acham crédito junto às massas como nos nossos dias o anticlericalismo. Deus sabe o que se chega a fazer engolir, mesmo alhures! Conheci um astrônomo persuadido da existência de uma comunicação subterrânea entre um convento de homens e um convento de mulheres, em seu país. Haviam-lhe dito isso. Sem dúvida haviam colhido isso nos astros. Gente mui grave, como Tácito, como Suetônio, são os astrônomos daquele tempo15. Consideram os cristãos como dignos de todos os castigos, por motivo político sem dúvida alguma, mas também por causa de vícios privados acreditados sobre a autoridade dos dizem. O dicuntur e o ferunt dos Romanos não têm menos poder do que os nossos parece, dizem.

Essas calúnias são bastante espalhadas para que S. Justino diga que consagra a sua apologia “àqueles a quem o gênero humano inteiro odeia e persegue”. O gênero humano é o mundo romanizado que eu descrevi, e é certo que nossos primeiros pais, com suas ideias tão diferentes em tudo, tão definidas, tão nobremente intransigentes, devem fazer aí uma figura difícil de olhar a sangue-frio. Ou as pessoas se rendem, ou se opõem, o que quer dizer que ou são hostis ou são odiadas, sem matizes intermediários.

Pensai que a vida social, impregnada de paganismo, é quase impossível aos fiéis. Viver é apostatar: não há senão esquivar-se ou morrer – a não ser que se vença. Os nascimentos, os casamentos, as festas de família, os atos da vida agrícola: semeaduras, colheitas, vindimas, tudo, na ordem privada, serve de pretexto a atos religiosos: libações, incenso oferecido aos deuses ou banquetes mais ou menos rituais. Quando vos convidam à sua mesa, num dia de festa, escrevem-vos, como achamos num papiro do século II: Tomai lugar “à mesa do Senhor Serápis, a 16 do mês”.

Caráter semelhante têm os divertimentos populares. As instituições civis e militares supõem juramentos religiosos; as funções inauguram-se ou correm risco de inaugurar-se de maneira ritual. Recusar-se a tudo isso, é irritar o gênero humano em grau verdadeiramente insuportável.

E a misantropia complica-se aqui de rebelião, visto como, ao mesmo tempo que se recusam as ações cotidianas, recusa-se a participação nos serviços públicos, que têm o caráter de um dever. Todos os cultos cedem ante a vida romana; todos com ela se acomodam fácil ou respeitosamente; só o cristianismo se enrija: convida a que o quebrem.

Por outro lado, a sobriedade das suas crenças faz os cristãos passarem como racionalistas aos olhos de pessoas que porfiam em complicar e em subtilizar. A ideia nítida que eles têm o Deus uno fá-los passar por ímpios – como Sócrates, - nisto que o Deus que eles adoram só parece definir-se pela  negação dos outros. Afirmar uma coisa sobre mil não é, “grosso modo”, negar tudo? Desprezar o panteão inteiro, salvo um Deus, é uma impiedade manifesta. É bem ruim o caso dos cristãos.

É tão ruim o caso deles, que eles são acusados de maneira a não acharem saída senão para o túmulo. A tolerância romana, tão ampla, tão universal até então, chega a dizer: sede tudo que quiserdes, menos cristãos.


A partir de que época o cristianismo é considerado juridicamente como religio illicita, não se sabe bem. Isso pode ser muito cedo. Em todo caso, no tempo de Tarjano (98-117) a questão não se presta mais a dúvida. O simples fato de ser cristão basta ao juiz. Não há necessidade de articular outra acusação. Magia, incesto, infanticídio, lesa-majestade ou sacrilégio, todas estas imputações absurdas ou atrozes com que o povo os agrava já não têm mais que se justificar no pretório. “Que é que recitais nas vossas tabuinhas? Clama os juízes o veemente Tertuliano. Fulano, cristão? E por que também não: e homicida?” Poder-se-lhe-ia responder: é inútil; os cristãos, como tais, estão fora da lei do Estado, lei que é religiosa ao mesmo tempo que política, porque é política.

Isso não é de admirar. E será abusivo? Sim, evidentemente, em si, visto que se persegue a verdade. Ao invés de sacrificar o cristianismo a um dogma social inferior, a atitude correta seria escutar, convencer-se, visto haver de quê, e render-se. Mas isso de maneira alguma prova que tal magistrado, tal imperador não possa estar, ele “subjetivamente”, muito em regra com a sua consciência.

O cristianismo instaura uma revolução: deve esperar pela sorte dos revolucionários, isto é, pela oposição não somente das pessoas mal intencionadas, mas também dos homens de ordem no sentido estrito do termo, dos conservadores e dos sectários políticos que ele não tiver conseguido imediatamente converter. Quando os homens de ordem são Nero ou Domiciano, devem-se ver coisas piores!

Coisa surpreendente: é sob um sapientíssimo imperador, Marco Aurélio, que os tempos se tornam os mais duros para o cristianismo. As cenas horríveis e gloriosas dos mártires de Lião, as de Cartago, datam do fim desse reinado. Há para isso razões gerais e razões locais; porém os preconceitos do Imperador, tanto mais inextirpáveis quanto são refletidos, a recusa de examinar os fatos, pois a teoria acalma a consciência, a aplicação cega das leis do império, devem entregar os cristãos, sob esse imperador, aos rigores de uma serenidade sem entranhas. Só depois desse alto filósofo, e, ó ironia! Sob um dos imperadores mais odiosos que Roma teve, Cômodo, é que a tranquilidade volta.

Para compreender isso, importa obervar que, a respeito de semelhante problema, os imperadores não são tudo. Um imperador nunca é tudo. Mesmo um Estado centralizado ao máximo, a centralização só relativa pode ser. Entre nós, a sorte do pequeno editor ou do funcionário não depende tanto do governo como do prefeito, dos “comitês” locais, do deputado, até mesmo de um intrigante sem mandato. A política local pesa sobre o indivíduo mais do que a política geral do Estado, e o tirante é mais de temer do que o tirano.

Quando há contra vós, notadamente, isso a que se chama “as leis existentes”, nunca estais em segurança, porquanto, tivesse o poder central intenção de deixar dormir o instrumento de suplício, desde o momento que ele não pode ou não quer suprimi-lo, a gente se arrisca sempre a ver o cutelo desprender-se, mesmo quando a mão dele permanece inerte.

Portanto, mesmo com bons imperadores, os cristãos vivem sob a ameaça constante, e, periodicamente, sob a ação do martírio. Quando César esquece a razão de Estado ou acha nela motivo de tolerância, o que sucede, nem por isso nossos pais deixam de ficar sendo uma caça perseguida, em todo caso disponível, visto como não merece aos olhos de quem quer que seja, no mundo político, a menor benevolência. Ao primeiro sobressalto de ódio popular, graças ao menor incidente local, ou em razão de uma malevolência individual um pouco poderosa, tudo é posto novamente em questão, e a morte trabalha.


Isso explica suficientemente os fatos até o fim do século II. Depois, intervém um elemento moral inteiramente novo: o medo. As pessoas se lembram das palavras de Domiciano: “Eu preferiria suportar um rival em Roma a suportar um bispo cristão”. Semelhante sentimento mostra o quanto está mudada a situação entre a Igreja cristã e o Império. A Igreja tornou-se uma potência. A arrogância serena de um Marco Aurélio ou a segurança de um Adriano já não são admissíveis. A Filosofia acaba de mostrar o que vale. O sincretismo religioso desacredita-se, e, sob os olhares da autoridade romana, o rebanho de Cristo estende-se de maneira a mais inquietadora. O tempo vai chegar em que o perseguido de ontem será o vencedor; o leãozinho, que fora tomado como caça vulgar, mostrar-se-á o “leão de Judá” e pulo irresistível. Antes disso, deve ser tentado o esforço supremo. Tentam-no, e a perseguição de Diocleciano, a que se chamou a era dos mártires, datando a 9 de Agosto de 284, é o ponto culminante desse período.

Não se põe nela, aliás, grande continuidade; procede-se por acessos. Quanto ao resultado, este dá razão à palavra de Tertuliano, tão ousada, tão consciente do milagre na sua forma mais trágica, senão mais alta: “Sanguis martyrum sêmen christianorum; o sangue dos mártires é semente de cristãos”.

Cumpre relembrar as leis dessa germinação cruenta, dizer por que as crueldades dos Césares resultam às avessas, como é que não descoroçoam o lealismo dos cristãos, mas do que nunca afeiçoados ao Império à medida que dele sofrem, e que atitude enfim sabem guardar heroicamente homens em quem o ódio devia produzir naturalmente o ódio, mas em quem, ao contrário, produz o amor e o triunfo social do amor.


II


As razões do triunfo dos vencidos, na luta desigual da Igreja com o Império, são antes de tudo de ordem sobrenatural. Aqui, como também quando se tratava de um extraordinário crescimento – as duas questões, ademais, são conexas – não se pode afastar o milagre. Quem quer que pense nisso com o sentimento do real e do possível humano parece dever consentir nisto. Não é necessário e não é eficaz, aqui, raciocinar; basta ver, mas ver com os olhos da alma.

Todavia, o sobrenatural tem seus meios naturais, que nem por isso são as suas causas; ele segue uma marcha; para agir num plano superior ao homem, toma seus pontos de apoio no homem. Há, pois, razão para inquirir das causas humanas que intervieram aqui, o que redunda em perguntar que caminhos seguiu a Providência em favor do seu miraculoso.

Bem parece que as razões de vitória devem ser buscadas antes de tudo nos sentimentos que a perseguição excita, quer nos expectadores generosos – e isto, já o dissemos – quer nos próprios perseguidos. Milagre de generosidade em ambos os casos, milagre de graça, com a cooperação da natureza.

Os que desdenham os sentimentos, ligando orgulhosamente toda a marcha do mundo a sistemas políticos, ou, baixamente, a fatalidades econômicas, recebem aí um desmentido. O martírio, dominante dos sentimentos inebriados e cantantes da alma cristã primitiva, desempenha um papel capital na harmonia pautada por Cristo; e, admitido o ponto de partida, concebe-se que essa harmonia seja destinada a expandir-se em ondas cada vez mais longas no concerto, embalde dissonante, deste mundo: “O exemplo da morte dos mártires nos toca, escreveu Pascal, porque são nossos membros”.

O martírio é o heroísmo do amor, e, após as nítidas declarações do Salvador, o amor aparece como o centro da doutrina e a pedra de toque da prática. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos”: esta palavra do Mestre, que ele aplicou a si mesmo, aplicam-na a si os verdadeiros cristãos. Prontinhos a lhe provarem o sabor delicado e áspero, eles haurem nelas esse sentido do supremo que favorece o estado nascente de todos os grandes movimentos humanos, e, com maioria de razão, de uma obra antes de tudo divina.

Do ponto de vista da “salvação”, isto é, do êxito pessoal da vida, de que nenhum de nós tem o direito de se desinteressar, visto que a vontade providencial coincide aqui com o mais decisivo interesse, visto que cada um recebeu o encargo de si mesmo antes de ser encarregado de outrem – deste ponto de vista, digo, pessoal, mas não egoísta, o martírio é o meio por excelência. Ele une a Cristo na morte, e portanto na vida ao máximo, constituindo um ato último, de todos os mais vital; e por isso mesmo nos une a Cristo na sua ressurreição, já que, para nós como para ele, a morte é uma mera passagem.

A teoria do batismo de sangue, que é primitiva, e que parece ser considerada no início como uma evidência, estabelece o candidato ao martírio na segurança de uma glória celeste imediata e fá-lo repudiar o medo. “Não temais os que matam o corpo e depois nada mais têm a fazer”, disse o Senhor. Esse sublime “nada mais”, esse “depois disso” dizem muita coisa sobre o desdém daquilo que passa em relação àquilo que fica. Que é matar o corpo, se não é libertar a alma, que os seus pecados passados e os seus receios de futuro oprimiam?

Tem-se o direito de pensar que a glória humana religiosamente encarada, isto é, como uma nobre emulação para o bem e como uma alegria de, a título de herói, existir no pensamento de seus irmãos, na lembrança perpétua da Igreja, não é estranha a esse apetite de morrer. Chama-se aos mártires os bem-aventurados, os benditos, os atletas, os magnânimos. Invocam-nos; eles conferem indulgências por meio do bilhete de paz (libellus pacis); conservam-se os seus restos mortais; visitam-se-lhes os túmulos; erigem-se altares sobre suas ossadas; celebram-se-lhes os aniversários; poesias, como as de Pindaro sobre os atletas dos jogos, eternizam esses atletas da alma. Tudo isso torna-se um apelo magnífico aos grandes corações.

O amor ao risco, de que nos têm falado eloquentemente, e de que um esporte novo, como ontem a aviação, basta para exaltar os voos mais belos do que os de engenhos toda via admiráveis, acha aí matéria bem diversa. A cada instante e como pelo efeito de um contágio irresistível, veem-se guardas de prisão ou algozes juntar-se ao rebanho de suas vítimas, e declarar que também querem morrer.

Essa persuasão de que morrer é um lucro, quando é por Cristo, torna mais fácil sem dúvida a nossos pais o cumprimento, mesmo nessas circunstâncias extremas, do preceito evangélico: Amai os vossos inimigos; fazei bem aos que vos perseguem. Quando, no dizer dos Atos (V, 41), os apóstolos sofreram o suplicio do flagelo, logo no inicio do seu ministério em Jerusalém, “lá se iam alegres por terem sido julgados dignos de sofrer o opróbrio pelo nome de Cristo”. Quando se nutrem tais sentimentos, a cólera já não tem lugar; pensa-se tranquilamente no algoz; pensa-se nele tristemente, pelo seu erro, se é de boa fé, e, no caso contrário, pelo seu crime.

Os dois casos aqui se apresentam, e não o ignoram os cristãos. No conjunto, estes atribuem a resistência do mundo ao poder de Satanás, artífice de malícia e de erro no meio dos homens. Estes últimos são vítimas dele, antes de serem seus colaboradores. É, pois, sobre ele que se faz recair a detestação. Digamos mais simplesmente, como o dirá mais tarde Agostinho: o cristão odeia o mal amando quem o faz.

César, isto é, o Estado, se beneficia desse sentimento. Sente-se que ele é escravo do Maligno, já que a idolatria – essencialmente diabólica para nossos pais – é a lei social; mas ama-se a César como criatura de Deus, de Deus que fez os governos, tendo feito os povos; ama-se como benfeitor temporal, visto como, fora da religião, ele protege e desenvolve a vida coletiva, de que os cristãos não entendem de se abstrair. Ama-se também a César instintivamente, como se ama o seu meio natural, o seu berço ampliado, a sua pátria de corpo e de alma.

Daí esse lealismo, que é bem impressionante em homens perseguidos de morte, e que não se desmente. S. Paulo disse: “Submeta-se toda alma aos poderes superiores, pois não há poder que não venha de Deus... Aquele, pois, que se opõe aos poderes resiste à ordem de Deus” (Rm XIII, 1). É verdade que ele assim falava num período de calma; mas era no dia seguinte às atrocidades de Nero, e o epistoleiro incomparável poderia ter visto sua página iluminada pelas tochas vivas em que se consumiam seus irmãos. Pedro, por seu turno, repete: “Temei a Deus, honrai o rei” (I Pe II, 17), esse rei que ia crucificá-lo.

Tertuliano faz notar que nunca os cristãos estiveram metidos nas sedições; que jamais os conspiradores, os Albinos, os Cássios, os Nigros, os tiveram por cúmplices. “César, escreve ele fortemente, é mais César para nós do que para os outros romanos, tendo sido, como foi, constituído César por nosso Deus”16. Estas são grandes palavras; são e serão sempre de tradição na Igreja.

Mas isso não impede que se seja oprimido pelo Império romano como por um poder satânico ao mesmo tempo que divino. Ele é divino como emanado d’Aquele que tudo rege, e como executor das suas vontades relativas à ordem social; é satânico porque mistura à justiça de suas exigências políticas a injustiça das suas pretensões religiosas e dos seus furores.

Estes dois pontos de vista são em toda parte reconhecíveis na atitude cristã das origens. A ele se liga uma teologia que causa estranheza a certos espíritos e que, no entanto, é das mais racionais. De um lado se diz: obedecei aos chefes políticos por causa de Deus; em certas circunstâncias se diz: “é melhor obedecer a Deus do que aos homens” (At V, 29). Isto não se contradiz. Há objetos a cujo respeito a consciência individual está ligada a Deus por intermédio do poder social. Outros há em que ela mesma é juiz, sentindo Deus dentro – como é o caso da lei natural – ou encontrando-o numa autoridade de ordem à parte, como a autoridade religiosa, que o representa diretamente, sem ter de passar pelo estado.

Essas competências diversas fazem a diversidade da atitude cristã. Onde quer que César seja juiz, obedece-se a César. Onde quer que a consciência seja juiz, obedece-se à consciência. E esse dualismo é tanto mais acentuado quanto há aí uma oposição mais completa entre o que a consciência exige e o que é reclamado abusivamente por um poder opressor, que nem por isso decaiu dos seus direitos.

A política cristã sabe assim conciliar tudo: o indivíduo e o Estado, Deus e o homem, insistindo no sentido do estado quando este está apegado aos seus deveres e é respeitador dos seus limites, e pendendo para o lado da consciência quando o Estado abusa, e exige fora do direito. Este último termo da alternativa é o que nos ocupa; é por isso que essa época de sofrimento e de ardor é o ponto de partida histórico disso a que se tem chamado, depois, os direitos do homem. O indivíduo imortal, filho de Deus e cidadão da cidade eterna, erguendo-se humildemente em face das forças coletivas que a palavra César representa aos nossos olhos, foi o cristianismo primitivo quem criou essa grandeza.

Não a conhecia a antiguidade. As suas ideias covardes sobre a natureza do ser humano e sobre os seus destinos não lhe permitiam fazer dele outra coisa senão uma abelha subordinada à colmeia, ou um pato selvagem elemento do triângulo enterrado no céu azul. Exceder em relação ao seu grupo; fazer bando à parte no espiritual e reservar o seu “quanto a mim” mesmo no caso em que o espiritual parece tocar no temporal e por este motivo interessa uma autoridade ciosa e exclusiva, é uma ideia que se não tolera numa sociedade ou materialista ou, em todo caso, mal segura dos porvires humanos, como é o caso de toda a antiguidade.

Se o homem não passa de um átomo pensante, destinado a desvanecer-se amanhã no grande todo em cuja obra a vida efêmera colabora, quem ousará conceber que esse serzinho se erga contra o todo representado pelos poderes sociais, e diga “não” ao que fica, ele que passa? Ao que é quase infinito em amplitude, em relação ao que ele pode justificar de existência? Dir-se-á a esse vermezinho: Submete-te! Se a tua consciência protesta, deixa-a formar pela consciência do grupo, que não é menos teu educador do que tua fonte, visto que dele emanaste em corpo e alma.

Diversamente sucede na hipótese espiritualista, e sobretudo cristã. Sucede mesmo, direi, ao inverso, visto como então já não é o indivíduo que passa, é o grupo; já não é o indivíduo que é pequeno, é esse corpo social constituído de nossos pós, vivificado por um tempo pela vibração de nossas almas, mas que deve esboroar-se mais cedo ou mais tarde, no mínimo quando o planeta arrefecido rolar, féretro triste, em volta do seu sol inútil, contemplando-o as almas de longe, do alto de sua glória.

A dignidade do indivíduo, tal como o cristianismo concebeu e impôs ao mundo, é fundo da política moderna, na medida em que esta é ciosa do progresso e não sonha com retrogradações opressivas.

Logo no inicio, não parece esperar-se semelhante conversão do mundo. O pequenino rebanho, tão heroico espiritualmente, ainda não sonha com uma ação política de que a sua vida espiritual seja a alma. A grande máquina romana parece dever durar sempre e oprimir sempre os eleitos. É uma condição a que as pessoas se submetem como a uma vontade providencial. Faz-se o melhor que se pode para ser um bom cidadão, sendo cristão; mas se, apesar disso ou por causa disso, é preciso sofrer, sofre-se, e se é preciso morrer, morre-se. Faz-se como quando se tratou de gozar saúde por dever e se cai doente. Os que suportam melhor a doença são os mesmos que melhor sabem usar da saúde. Assim os cristãos fiéis às leis e os melhores servidores do Império, como dizem incansavelmente os apologistas, são os mais resignados a esse paradoxo atroz que faz deles uns pretensos revoltosos.

Só mais tarde, quando a sociedade cristã toma corpo e nela se introduzem elementos pertencentes a todos os setores, ao exercito, à política, à magistratura, tanto quanto ao povo, que forneceu os primeiros subsídios, só nesse momento, isto é, a partir do século III, surgem esperanças novas.

Desde o tempo de Marco Aurélio, um Meliton sonhava com uma espécie de aliança entre o cristianismo e o Império, encarregando-se o primeiro, em troca de uma proteção sincera, de fornecer ao segundo os valores morais que aumentariam imensamente a prosperidade. Orígenes retoma este tema uns cinquenta anos depois, com muito mais razão de alimentar esperanças, o que não impede que ele mesmo, torturado em 249, por ocasião da perseguição de Décio, possa perceber que os tempos ainda não estão maduros.

Pode-se mesmo imaginar que tais estados de espírito não entram por pouco na recrudescência das perseguições. Porque o que, no fundo, eles oferecem ao Império é lhe infudirem uma alma nova. Ora, o Império não quer saber disto. A sua alma lhe basta. Ele crê que ela corresponde às suas origens e ao seu fim. A Igreja, se o orgulho dele lhe permitisse levá-la em conta, parecer-lhe-ia aos que estão contentes com este mundo que fecham os ouvidos aos gritos de apelo que nos vêm de lá de cima

A Igreja não é deste mundo, e por esta razão age sobre este mundo a fundo, tentando arrancá-lo a si mesmo para fazê-lo chegar a mais alto do que ele. Para isto é preciso abalar-lhe as raízes. É a epopeia do Cedro na Légende dês siècles:

Et frissonnant, brisant Le dur rocher de marbre,
Dressante ses Brás ainsi qu’um vaisseau ses agres,
Fendant la vieille terre aicule dês forêts,
Le grand cèdre, arrachant aux profondes crevasses
Son trone, et as Racine, et ses ongles vivaces,
S’envola comme un sobre et formidable oiseau.

E, trêmulo, quebrando a dura rocha marmórea,
Erguendo os braços qual nau que ergue os seus maçames,
Fendendo a vetusta terra avoenga das matas,
O grande cedro, arrancando às rachaduras fundas
O tronco, e a raiz, e as suas unhas vivazes
Evolou-se qual ave lúgubre e formidanda.


Isso vai bem nos poemas; mas quando se trata da vida de um Estado, as raízes existem, o solo também, e o selvícola, César, é sempre tentado a bradar, como João no poema:


Joveaux Venus, laissez La nature tranquille. (Recém-vindos, deixai tranquila a natureza.)


Mas sim! O paganismo, aos seus próprios olhos, é “natureza”.

Não importa; a perturbação salutar lançada nos Estados pagãos, primeiro pela existência e depois pela ação social da Igreja, terá o seu resultado. Despertando as consciências retas, agrupando-as, a Igreja criará um Estado no Estado. No espiritual, entende-se! Porque no temporal seria uma grave censura; nós não somos separatistas. Mas no espiritual, é verdade; um grupo cristão num Estado pagão ou paganizante, é um Estado no Estado, e esse Estado, mais ativo se é fiel à alma que traz, tende a encerrar o outro, a envolvê-lo com sua influência para enriquecê-lo de seus dons, para que, tendo posto à frente das suas preocupações “O reino de Deus e a sua justiça”, tudo o mais lhe seja “dado por acréscimo”.

É o que o mundo novo, que vai suceder ao Império, experimentará pouco a pouco, no positivo, e também, ai! Quanto a contra prova. Mil desfalecimentos, de fato, limitarão constantemente os efeitos de uma política cristã difícil de conceber após o longo reinado dos preconceitos, mas difícil ainda de aplicar a uma matéria sempre parcialmente rebelde. É por isso que as lutas que acabamos de descrever não cessarão com as circunstâncias em que as vimos desenrolar-se. Elas são de todos os tempos. E, como já várias vezes insinuei, há outros Césares em luta com a Igreja que não os soberanos ou os ditadores; os poderes coletivos também intervém, e esses imensos poderes anônimos que são as civilizações. Em toda parte onde a Igreja encontra isso a que o seu Fundador chamava o mundo, isto é, não somente as potências do mal, mas o que praticamente dá no mesmo, de ver que as culturas humanas pretendem orgulhosamente bastar-se, os laicismos de todos os jaezes, quer se abriguem nas Sorbonas, nos tribunais, nas bancas, nas ofic
inas ou nas escolas, quer inspirem os sistemas filosóficos, sociais, econômicos, literários, artísticos, etc., a Igreja ergue-se como adversária, porgue vê em conflito o temporal e o eterno, o insuficiente e o Único Necessário. Então, é a batalha; em todo caso, é a divisão, visível ou latente. “A procissão – Escreve Ernesto Hello – passa levando a cruz, e as criaturas dividem-se à sua passagem. As criaturas dividem-se e nem sempre sabem que é a cruz que as divide”.

Não importa, o mundo não está acabado, e a esperança é sempre possível. O reino de Cristo, por mais combatido que seja, subsiste. O que os seus inícios nos fizeram é ver ampliado sob nossos olhos e pode aguardar com confiança o futuro.

A que ponto chegamos sobre isto? E que testemunho traz o tempo atual em favor da Igreja cristã, consideradas as suas aquisições e as suas carências, as suas provações e as suas necessidades?


É a nossa última questão.


14 – Plinio, Hist. Ant., XIII, 4; Tácito, Hist., V, 2, 5, 13.
15 – Cf. Tácito, Anais, XV, 44.
16 – Tertuliano, Apologeticum, 33.

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