sexta-feira, 10 de maio de 2013

A Igreja em face do tempo presente - A. D. Sertillanges


“Deus fez no meio de nós uma obra que, desprendida de qualquer outra causa e só dele dependendo, enche todos os tempos e todos os lugares”17. É nestes termos que Bousset julga poder apresentar aos seus contemporâneos a Igreja eterna. Ele sabe que a Igreja reivindica como fundamento os milagres evangélicos, e que esta manifestação exterior serve como que de selo ao ato do nascimento dela. Mas, depois que esses milagres a fundaram e a sustentaram no seu crescimento, no seu surto de conquista, e na sua resistência aos poderes, ela própria pretende, como manifestação exterior também do mesmo Deus, o mesmo brilho que por ela como por eles se faz reconhecer.
   
Nisso, ela não os suplanta, continua-os, visto como eles já estão nela. Com eles ela revela o divino no homem. Ela é uma síntese de milagres e um milagre a mais.

Propriamente, esse milagre novo consiste na existência entre nós de um organismo social humano-divino e que leva uma vida humano-divina, mostrando portanto Deus em sociedade com o homem e o homem em sociedade com Deus.

Esse organismo, nos seus primórdios, no momento em que todo recém-nascido exerce o mais poderosamente a sua força assimiladora, deslumbra o mundo pagão. A sua unidade, a sua constituição já forte, a evidência do seu fermento intenso, a vida do Espírito nela, brilhavam, e às almas chamadas e predestinadas persuadiam de que a sua pátria ali estava. Como dissemos, isso fez mais para a conversão do mundo do que os milagres particulares relatados nos Atos. Esses “sinais” apagavam-se, de alguma sorte, ante o sinal por excelência.

Hoje em dia, embora o trabalho do Espírito seja menos visível, em compensação são mais visíveis os seus resultados. E a Igreja pretende que esse sinal baste, normalmente, para convencer uma alma atenta e reta. Não nos podemos admirar disto. Se Deus age deveras em cooperação com o homem, e com o homem social, que evolve no visível, isso deve ver-se. Que Deus seja aqui como em toda parte o “Deus oculto” a título de causa invisível em si mesma e que quer ser discreta, isso não impede que fenômenos em que ele desempenha um papel essencial não possam deixar de revelar a sua presença, se já o coração o procura.

É preciso para isso o coração, porque sempre, nas coisas morais, é requerido este ponto de partida, e porque, aliás, sendo a fé uma graça, semente de vida eterna, não se vê que, para se revelar, possa o Bem soberano assim oferecido desprezar as disposições morais de quem se abeira dele. Assente, porém, isto, a convicção deve ser possível, ou melhor, normalmente falando, a negação impossível. “É impossível que os que amam a Deus d e todo o seu coração desconheçam a Igreja, tão evidente é ela”, escreveu Pascal.


A vida divina da Igreja faz-se reconhecer, a quem quer vê-la, pela sua perpetuidade e pelos seus caracteres. A Igreja é a eternidade no tempo, e a eternidade é simultaneamente uma perpetuidade, pois envolve o tempo, e uma superioridade de natureza em relação às nossas durações mutáveis. As durações igualam os seres. Nossas durações, as nossas, são durações fragmentárias e reduzidas às nossas medidas; a duração de Deus é imutável e infinita no seu ser, que é o do próprio Deus. Se, pois, Deus vive deveras com o homem na terra, graças à encarnação continuada e socializada, a vida assim constituída será dotada conjuntamente de uma perpetuidade indefectível e de uma superioridade relativa sempre, visto que o homem faz parte dela, mas suficiente para indicar que o homem, aqui, não está só; que o Autor de seu ser retomou a obra na sua base, para levá-la mais alto.


Perpetuidade, dizemos primeiro. Para quem sabe ver, há aí um fato surpreendente. Pela sua própria definição e pelas suas próprias declarações mil vezes repetidas, a Igreja é obrigada a ser perpétua. Estranha obrigação essa. O profeta que assim se enfeita com o futuro arrisca-se cada hora a ser desmentido. Por isso o adversário, sentindo o lado fraco que contra a instituição e a doutrina uma tal pretensão lhe oferece, apressa-se, ele, a profetizar a morte da Igreja, a declarar iminente essa morte, a mostrá-la, já assente, por assim dizer, nos seus pródomos certos.

A tática é boa. Não há maneira mais segura de arruinar moralmente a Igreja, de que lançar o descrédito sobre toda a sua duração, do que provar –se se provasse – que essa duração terá um termo. Se a Igreja deve morrer, ela nada é. Se a Igreja está não somente no tempo, o que deve ser, porém é súdita do tempo, é que está abandonada ao tempo assim como tudo o mais, e não está suspensa à eternidade. Por outros termos: se a Igreja morrer, se morrer numa data qualquer antes do fim do homem – e o homem, em verdade, não morre-, é que ela é humana somente, é que não é humano-divina, é que não é o que pretende ser, e para encurtar razões, é que não é nada.

Mas a Igreja não se perturba com esse perigo, e já há dois mil anos que escuta calmamente os que a ameaçam dele. Passado tal não seria uma garantia do futuro? Creram-no grandes historiadores, impressionados não somente com o fato, mas com o estado d’alma que o acompanha, com essa prodigiosa certeza por entre tantos reveses, com essa tranquilidade no curso e de períodos históricos movimentados em extremo, diversos e fecundos em surpresas.

Uma tal força psicológica é por si só um fenômeno surpreendente. Um poder tão seguro de si mesmo e do seu futuro, tão decidido no que faz e tão pouco inquieto com as contradições, com os ataques, com os obstáculos, com todas as ciladas que, entretanto, com a sua vasta experiência, ele sabe armadas sob os passos de todas as instituições: é um desafio. Que audácia o pretender assim fazer exceção sozinho!

E, não há dizer, o fato responde; sempre respondeu ao sentimento que a nossa Igreja tem dele, como se esse sentimento houvesse partido do próprio fato. A Igreja circula entre os acontecimentos como o sonâmbulo à beira do telhado. O sonâmbulo não cai, guiado que é por um espírito interior, numa feliz ignorância do perigo que tangencia. Acordai-o, tirai-lhe a sua inconsciente segurança, feita de certeza vital: ele está perdido. Assim a Igreja se perdesse a sua fé. Porém não a pode perder. O seu Espírito interior a um só tempo lhe comunica o sentimento da sua perenidade e lhe dá em toda parte segurança de si.

A Igreja entende sobreviver a tudo o que pretende ser o futuro, e já enterrou muitos dos que lhe meditavam ou aguardavam a perda. Tempestades não lhe têm faltado; mas os tornados no oceano e as tempestades de areia do Saara não afetam a estabilidade da terra. A Igreja esposou a terra; ela é a própria terra encimada pela cruz, a terra viva, santificada por uma Presença invisível, e ela não tem medo. Um dia, a terra morrerá, mais numa apoteose que a Igreja diz sua. Ela não teme esse acontecimento, espera-o. Do lado de cá, profeta de si mesma, projetando o que ela é sobre o que amanhã será, a Igreja diz: O futuro é meu, porque em mim está esse futuro já adquirido com Aquele que o regula. O tempo não me contém; eu, a Igreja, é que contenho o tempo, pelo meu Espírito, seu princípio eterno. Beber na taça do tempo a duração eterna é a sorte de todo aquele que adere a mim e comunga com a minha alma secreta. Muitas coisas me fazem sofrer, mas nenhuma me desconcerta nem me inquieta. A adversidade retempera-me. Um fracasso significa para mim: recomeça; como um êxito significa: prossegue. Por cima da cabeça de meus inimigos e para além dos obstáculos, eu olho uma finalidade visível a mim, mas tão exigente que eu não posso desviar dela meus olhares nem minha marcha. Completar meu Cristo na terra, o Cristo coletivo, a assembleia universal a que ele chamou seu corpo: é esse o meu trabalho. Trabalho de todos os tempos, sem dúvida! E é por isso que eu não morro.

Quer se arrazoe, quer se desarrazoe sobre isso, a força íntima assim manifestada tem algo de único. Supõe, ao que parece, no invisível, fora das nossas durações indecisas e fugazes, uma cumplicidade.

Procura-se a explicação disso num iluminismo feliz da nossa fé, e, por outra parte, em contingências históricas cada uma das quais se presta a explicações naturais. Está bem. Mas o iluminismo da Igreja é muito positivo; a ingenuidade não é coisa dessa avó, que sabe aonde vai, e que impressiona o observador justamente pela certeza imperturbável do que faz.

Explicação indigente é o menos que aqui possa dizer-se. Na verdade, a explicação é nula; por quanto, se a misticidade pode realmente ter seus desvios, a Igreja, que controla a misticidade com um rigor severo, deve ser chamada sobremística, e escapa ao perigo porque deve prevê-lo. Ela não sonha; a sua certeza é serena; é bem em pleno despertar e de posse de toda experiência humana que ela diz: Há em mim algo de sobre-humano; eu, que assisto ou presido a tantas mortes, sei que não morro.

Quanto às contingências históricas, estas existem. Não se trata de negar as causalidades inerentes a uma vida que está na terra, embora não proceda unicamente da terra. Cada um dos casos apresentados por essa extraordinária história é suscetível de explicações que se afiguram suficientes, e que o seriam, tomado à parte esse caso. Mas o que assim se não explica é a repetição indefinida de contigências semelhantes e semelhantemente previstas, de tal modo que a instituição que lhes é objeto possa dizer tranquilamente que elas se repetirão sempre, sem que nada, até agora, desminta.

Difícil é, nestas condições, fugir à observação de Pascal: “E tudo isso se faz pela força que o predissera”. A predição não é muito menos extraordinária que o fato. O fato confirma a predição. Digamos que há aí um só fato ao mesmo tempo espiritual e histórico, profético e efetivo. E segue-se que a explicação da Igreja, quanto à sua perpetuidade, está na própria Igreja. A Igreja é o vivente imortal que seu Cristo predisse ao constituí-la; ela recebeu a imortalidade com o ser, e é por isso que afronta o tempo; é por isso que, por assim dizer, devora os ferozes acontecimentos feitos para devorá-la, e prossegue através de tudo os seus destinos tranquilos. Isso não são hábitos de homem.

Ademais, quando se fala de perpetuidade a respeito de uma sociedade religiosa, não se trata de uma perpetuidade exclusivamente política ou administrativa. Isso seria uma mera conservação de quadros. Para que a Igreja seja verdadeiramente perpétua, é preciso que se conservem, como fazendo parte dela mesma, e sem alteração essencial: o seu pensamento, isto é, o seu dogma; a sua prática, isto é, a sua moral e a sua liturgia; a sua organização, isto é, o seu sacerdócio e os chefes do seu sacerdócio – bispos, representantes dos Doze, Papa, sucessor de Pedro, e lugar-tenente de Cristo. É tudo isso que não deve perecer.

E quantas ocasiões para que isso tenha perecido! Pode-se dizer que tudo é ocasião para isso; porque o histórico se move no acidental. É clássico este adágio: Em história, tudo resulta sempre diversamente do que se previra. De sorte que, se não houvesse aí um princípio interno de indefectibilidade, de continuidade, tudo iria sempre a esmo, quer dizer, ao aniquilamento sem remédio; os dogmas desvanecer-se-iam em opiniões de indivíduos e de grupos (como no protestantismo); a prática moral e os sacramentos, a autoridade e as disciplinas mais essenciais teriam a mesma sorte; nada resistiria dessa contextura imensa, que, ao contrário, idêntica a si mesma vemos atravessar assim os séculos como os azares.

Todas as religiões têm mudado profundamente e têm-se esmigalhado em seitas: a Igreja de Jesus Cristo é fiel à sua tradição unitária, memória onde – sem prejuízo das adaptações que são o sinal da vida e que o serviço exige – se acham consignadas uma vez por todas as confidências de Deus à humanidade e as criações da sua graça.

Bem longe que o tempo deteriore a Igreja, ao contrário, ele lhe traz constantemente materiais novos; aumenta-lhe todos os órgãos e diferencia-os, sem prejudicar a ideia vital. Quem lê hoje S. Paulo reconhece nele a sua fé, a sua regra de vida, a sua prática ritual, o seu sacerdócio, a sua organização essencial; mas que riqueza aumentada! Que adaptação sempre mais perfeita aos problemas novos! Que manifestação obtida para o que o grão continha! Já não é mais o “grão de mostarda”, é verdadeiramente a grande “árvore”.

E, se há crises e atrasos, falhas no funcionamento, não há razão para nos admirarmos; é a parte do homem. Jesus Cristo prometeu Jesus Cristo prometeu à sua Igreja uma duração indefectível; não lhe prometeu uma saúde indefectível; ela tem as suas doenças, “que não levam à morte”. Cabe a nós fazer que ela melhore, pois a saúde, a nossa de fiéis e chefes é que proporciona a dela. Mas não se precisa de nós para que ela viva; ou, pelo menos, se de certa maneira a vida dela depende de nós, o Senhor dos corações aí está para que não falta o “restinho” em que Israel pode subsistir, reserva dos tempos melhores e penhor do triunfo eterno.


Observarei que a vitalidade da Igreja, condição da sua perenidade, é visível hoje mais do que nunca, primeiro porque o seu desenvolvimento interno está mais adiantado, a sua diferenciação aumentada ao mesmo tempo que a sua unidade reforçada (duplo sinal característico do progresso), o seu surfo de penetração no coração das raças desdobrado com vigor novo; mas também porque, por esse mesmo fato e em ração de circunstâncias históricas providenciais, o princípio católico se manifesta mais independente de tudo o que não é ele.

Uma substância reconhece-se melhor quando é isolada. Os concluíos do Império constantiniano, o equilíbrio ofensivo do Sacerdócio e do Império, a aparência de misto político constituído pelo poder temporal, tudo isso pereceu. A Igreja é pura; pode-se ver o que ela é. E que é ela? É isso mesmo: um poder espiritual independente e que, a despeito das aparências superficiais que eu assinalo, sempre o foi. E pensar-se-á que isto não seja nada? Augusto Comte via nisso um fenômeno de primeira grandeza, depois de reconhecer aí uma condição de futuro da sociedade humana. A lua suspensa à noite no céu claro já não nos admira, porém KEPLER, Newton, Laplace ou Poincaré passaram anos a calcular esse equilíbrio delicado, irmão de um sono tranquilo.

A Igreja – tem-se acaso pensado nisto? – é a única sociedade religiosa assim independente que jamais se haja mostrado na humanidade. Não seria isto um prodígio? É um prodígio nisto que uma sociedade espiritualmente independente deve ter em si tudo o que uma autarquia dessa espécie exige para sobreviver, para não se misturar com coisa alguma de dissolvente, para se não deixar absorver por coisa alguma de envolvente ou de insinuante, e assim manter no mundo um poder alheio ao mundo, como seria em física um corpo liberto das forças cósmicas, inacessível às influências que tudo transformam.

As “autarquias econômicas” de que nos falam agora, onde é que se realizam? Unicamente lá onde a natureza proveu a isso, dando ao grupo que a ele aspira tudo o que é preciso à sua vizinhança e sem temor da vizinhança. Se a Igreja pode ser e é uma autarquia espiritual perfeita, é que portanto tem em si, a título independente e garantido contra toda alteração, contra todo desvio, tudo o que uma vida religiosa perpétua e universal comporta. Deve ela poder ir a toda parte sem se misturar em parte alguma; ocupar-se de tudo e influir em tudo sem que nada a contamine; durar sempre sem que à falta de uma condição temporal – entendo entre as que são alheias ao seu próprio funcionamento – possa deixá-la cair. Pese-se um tal requisito.

No curso das idades, acontecimentos não têm faltado para porem à prova essa alta independência e para aboli-la. Ela sempre se mostrou superior a eles. Os poderes têm feito tudo para captar essa força e para escravizá-la; as lutas épicas em razão disso por ela sustentadas são bastante conhecidas: ela tem-se saído delas constantemente vitoriosa. Agora, todos querem tratar com ela; e ela se presta a isso; porque, se ela é independente de todos quanto à sua vida, entende de não ser independente de ninguém quanto à ação; quer dizer que está disposta a uma colaboração universal. Mas, se às vezes os que tratam com a Igreja o fazem no velho espírito de envolvimento de que eu falava, ela tem com que desmanchar e desmancha todos esses ardis terrenos. Aos vorazes, poderá ela abandonar algumas penas de suas asas; mas não interromperá o seu voo.

Em pequenos círculos inteligentes, porém míopes, as pessoas deixam-se levar a dizer que “Musolini meteu no bolso Pio XI”, que “Hitler repete a história”, etc. Isso são palavras pouco sérias. Elevem-se antes esses tais à contemplação deste espetáculo: um soberano sem Estados, investido – por quem? – de um poder ante o qual o universo se inclina, que diz sim, que diz não aos mais poderosos como aos mais pequenos, e que da minúscula “Cidade”, território de teoria, quase irrisório se a irradiação dele não fosse tão solene, marca encontro para o futuro, sobre documentos autênticos, a tantos poderes que a ele não corresponderão.

Quanto durará Mussolini? Quanto Hitler? Quanto os regimes e as combinações políticas que temos sob os olhos?* não sei; mas o Papa aí estava de tal forma antes deles, que, sem se arriscar, pode-se dizer que aí estará depois deles e depois dos que lhe aguardam a herança. Todas essas sortes de poderes têm passado, estendendo a mão a Pedro para engodá-lo, para utilizá-lo; eles têm passado, e Pedro fica. Há aí um princípio de vida, sem dúvida, e no entanto cumpriria dizer qual.


A independência, que é um indício de força e, nas condições em que a Igreja a manifesta, de força propriamente sobre-humana, essa independência poderia conceber-se sem ação conquistadora? Vimos essa ação nos seus primórdios; foi fulminante. É normal que hoje em dia o seja menos, e sabemos o motivo; porém ela é mais evidente do que nunca. O reflorescimento missionário é mesmo assinalado, na ora atual, por um caráter extremamente impressionante e por um grande alcance de futuro: entendo a sua catolicidade intrínseca, se assim posso dizer, pelo acesso de todas as raças de homens ao sacerdócio e ao episcopado católicos, até aqui mais ou menos reservados, não de direito, por certo, mas de fato, só à raça branca.

No interior dos nossos grupos cristãos, a multiplicação das obras católicas deixar-nos-ia estupefatos, se soubéssemos ver. Poderíamos nós supor o menor começo delas, ou mesmo o antegozo, se não fora a Igreja? Não entendo dizer que a Igreja faça tudo; às vezes faz-se melhor do que ela; mas foi ela quem lançou tudo; o que ela mesma não faz, procede dela quanto à origem primeira e quanto às influências que sofre: emulação, concursos, exemplos.

Diversas tanto quanto as necessidades espirituais e temporais do homem, diversas tanto quanto a vida, a que é que se podem comparar as obras de criação ou de inspiração católica? Noutras partes há reflexos delas: da Igreja vem a luz. Há migalhas esparsas: nela está o pão.

Por certo! Muito mais haveria ainda por fazer do que o que a Igreja faz. Somos impacientes, e mui sinceramente podemos ficar impressionados com as lentidões seculares da Igreja mais do que com a sua ação secular. Mas, além de, aqui, intervirem as liberdades, e os acontecimentos, e os meios resistentes, não nos deveríamos precatar contra uma confusão dos valores e das escalas que os medem? Não é no absoluto, é comparativamente que convém julgar, quando se pede à experiência a resposta a esta pergunta: a Igreja é da mesma natureza que as outras potências deste mundo, ou de natureza superior?

No absoluto, tudo é lento daquilo que se move através do humano. O próprio Deus deve evitar os métodos “catastróficos”, inimigos da sua sabedoria, que é “número, peso e medida”. A Igreja, agente da Providência, e bem decidida a com ela se manter em contato, a não precedê-la, procura nos fatos passo a passo seguidos os vestígios de seu Deus, e é assim que ela marcha. A gente apressada censura-lhe isso: mas a gente apressada é a mais apta a perder o tempo que a gente calma utiliza em toda a extensão. A Igreja realiza milagres de atividade precisamente porque não se apressa, não compromete nada, nunca se obriga ao recuo, olha longe e sem impaciência no sentido do futuro; em suma, porque conduz a ação temporal num espírito superior ao tempo.


Falar-nos-ão de tantas misérias na Igreja? Consinto, contanto que se acrescente: e tanta santidade. Pode-se desconhecer a força santificante e purificadora da Igreja sob suas duas formas essenciais: a forma mística e a forma educativa ou moral?

Misticamente, a vida sacramental sublima, purifica e arrasta à obra boa uma multidão de corações. Cristo tem um império ao qual nem de longe qualquer império deste mundo pode ousar comparar-se. A despeito da carne, do mundo e de Satanás, três potências adversas. Ele obtém de seus fiéis efeitos de virtude e de ação espiritual que os meios antecristãos ou não cristãos não podem pensar em conhecer; ou, se a eles chegam, devem-no ainda a Ele pelos caminhos desviados que havemos descrito.

Mesmo onde quer que a lei cedeu, aquilo que subsiste de vida sacramental: batismos, primeiras comunhões, casamentos, ritos funerários, cerimônias públicas e privadas, ainda conserva uma armadura tal qual a uma civilização indecisa; o futuro aí está em expectativa, e bem longe que só haja nisso um legado do passado. Muito errados andaríamos em subestimar esses “restos”.

Moralizadora, a Igreja o é em nome do céu e em vista do céu; mas o terreno de onde se alça o voo para o céu é a terra. O Reino de Deus é temporal, dizíamos, precisamente porque é eterno. Por isso a Igreja é uma educadora de atenção sempre vigilante, e de psicologia admirável, de experiência consumada, utilizando todos os recursos da alma e da vida, envolvendo esta toda, como se, gerado por ela, o cristão nunca acabasse de nascer, e lhe vivesse no amplo seio.

Um dos mais altos e dos mais preciosos caracteres da Igreja, como educadora, é a sua arte de tirar o bem do mal. Ela reergue o pecador e não o desanima; sem pactuar, longe disto! Ela sabe compadecer-se e compreender. Salva e utiliza assim uma multidão de valores que uma sociedade sem alma abandona às forças do mal, e depois rejeita.

Quem dirá o de que assim se privam grupos talvez muito apressados em denegrir e em combater neste ponto a vida católica! Os grandes pecadores que se tornaram santos, e obras como Betânia, o Bom Pastor, ou Nossa Senhora da Caridade, ou as simples capelanias de prisões, sem falar de tantos outros sinais, deveriam no entanto fazer refletir. A Igreja faz beleza com as fealdades, e com a força revirada das paixões faz energias puras. Pedro, sobre o Lago, pede a Jesus para afastar-se dele porque ele é um pecador; mas a Toda-Pureza não tem destes pudores hipócritas; ela só se afasta convidando, como uma mãe diante do filho que tropeça, e todo o surto do arrependimento chama o homem para sobre o coração dela.


Não se quer que a santidade, que o poder santificador da Igreja prove a sua divindade, porque, primeiro, ao gosto do censor não há bastante bem nela, e há demasiado mal. Objeção tal não surpreende; fá-la muitas vezes a si mesmo o crente, e grande necessidade tem então de se lembrar da advertência de seu Senhor: “Bem aventurado aquele que se não escandalizar de mim” (Mt XI, 6). Mas no fundo desta dificuldade, como de muitas outras, há simplesmente isto: Exige-se que a Igreja seja humana ou divina, à escolha; não se quer que ela seja o que é; humana e divina, conjuntamente, com todas as consequências. Se uma vez se consente nesta última situação, compreende-se que, pela sua divindade, deve haver na Igreja grandes efeitos de Graça, e bem cego quem os não vê; mas, pela sua humanidade, deve ela oferecer também todas as misérias humanas, digo todas, visto haver nela todo o homem.

Quanto mais humanidade há na Igreja, tanto mais divindade deve nela haver para que ela sequer subsista; porém, quanto mais divindade há, isto é, sabedoria, respeito do homem, cuidado de deixar à obra um cunho de livre esforço e de responsabilidade, tanto mais imperfeições e taras devem nela encontrar-se.

Sem dúvida, poderia acontecer que esta última condição, a só olhar a ela, abolisse a primeira, e que de alguma sorte o humano afastasse a Deus. Mas isto é uma suposição inteiramente gratuita. A malícia do homem não iguala o poder de Deus. A Igreja tem em si, quando preciso, com que se reformar de dentro, mediante reconcentração do seu Espírito em individualidades que bem se devem chamar providenciais, embora em aparência nascidas do acaso, já que, à maneira da providência eterna, surgem sempre. Sempre o acaso, isto não será a providência?

Quanto a recusar a hipótese, exigindo o divino puro, sob pena de absolutamente não mais ver a Deus, isto é ditar a Deus o seu proceder. Melhor é, sem dúvida, fazer por dentro este gesto simplíssimo, a bem dizer profundíssimo e por isto quase heroico, de se inclinar perante Deus. Então, a objeção se esvai.

Pode ela, é verdade, dar lugar a outra. A santidade, na Igreja, não provaria a sua divindade, porque tudo o que se vê é explicável pelo homem. Mas na realidade, como observava Santo Agostinho, é mais difícil fazer um santo ou converter um pecador do que ressuscitar um morto, o que não é obra de homem. A despeito da audácia de uma tal fórmula, pode-se dizer que é tão difícil fazer um santo como fazer um Deus: um raio de sol ou um sol não são obra semelhante? É ao contato de Deus e do homem que a santidade jorra; reconhece-o um puro filósofo, como Bergson, e é esse, reconhece-o ele mais ou menos também, um dom especial da Igreja. A conclusão está bem próxima.

A santidade da Igreja é divindade latente. Brilha em certos pontos, em certas vidas, brilha amplamente, embora menos sensivelmente para a desatenção, no funcionamento geral da obra. Santidade concentrada ou santidade difusa, santidade brilhante ou humilde santidade, é sempre Deus que aflora, esse Deus que a humanidade procurava, que o seu capricho fabricava, e que um dia irrompeu nela mesma. Perguntava Santo Agostinho: “Que vale Juno em face de uma velhinha que é uma fiel cristã?”. Não é preciso mais do que estar atento a tudo isso para vê-lo; mas é preciso olhá-lo com os olhos da alma, e não com o espírito só.

Tendo-o reconhecido, e tendo-se capacitado de que, para a Igreja, fazer cristãos quer dizer humanos completos, em Deus, e juntos, bem pronto se está para confessar que a Igreja e a civilização são solidárias, de tal sorte que o milagre religioso vem aqui ao encontro do fato humano e nele se reforça.

Não se ignora, conquanto às vezes se goste de esquecer ou se esqueça por inadvertência, o que a Igreja fez no passado. Nenhum historiador recusaria dizer que ela, a Madre Igreja, foi quem carregou nos joelhos a civilização moderna. Mas o que ela fez no passado, está armada para fazê-lo muito mais ainda, desenvolvida como jamais o foi; rica de funções, de pessoal e de obras: capaz de atingir, de alto a baixo da escala dos espíritos, das situações sociais e das almas, todos os elementos humanos em busca de progresso e de felicidade.

O gênio moral que habita a Igreja é o fermento animador e o sal conservador das civilizações. O sentido da vida, as leis do indivíduo, da família, dos grupos profissionais e especialistas de qualquer especialidade, da sociedade nacional e internacional, com todos os seus meios psicológicos e místicos, no terreno moral, fazem parte do seu depósito. Ela nos ajuda a adaptá-los às circunstâncias diversas. A sua ciência moral é uma consequência do seu dogma, e a sua maternidade goza do dom de conselho.

“Alma das nações”, como dizem os Papas da Idade Média, ela pode fornecer aos nossos grupos, no espiritual, todas as suas normas de ação e todas as impulsões que os guiam. Ela consolida o reinado das leis, fazendo-as partir da Razão divina e ir ter aos seus juízos; humaniza-as banhando a justiça no amor. Aos fatos de autoridade ela dá por princípio a autoridade serviço público da parte de Deus; aos fatos de subordinação dá a obediência ao poder como a Deus; aos fatos individuais que preparam a matéria social dá a vida depósito divino e atividade em marcha para Deus. Estão aí bases firmes.

A construção poderá em seguida inspirar-se nas largas vistas de governo que são as da Igreja. A Igreja é eminentemente democrática quanto à definição e à apreciação dos seus valores sociais; canoniza os santos e não os chefes, os humildes virtuosos e não os fortes. É, entretanto, aristocrática pelas suas Igrejas particulares que os bispos governam, e é monárquica em razão de Cristo e da sua representação visível, o Papa. Pode assim dar modelos de governo a todos os Estados, como lhes dita seus fins supremos.

O sentido social é nela tão forte que o cidadão, comungando na sua larga vida, hauriria nela um espírito cívico em harmonia com o que seria então a sua vida espiritual. Numa grande cidade de que a gente gosta, a gente se sente confirmado a um tempo no seu sentimento social e na sua personalidade; oceano e remeiro harmonizam-se; no seio da Igreja universal animada de caridade e agrupada em torno de Cristo, cada um se tranquiliza na sua própria força e na força coletiva; é um em si e um com todos; sente a humanidade dentro e fora, com Deus em toda parte.

Como então, em particular, a eucaristia, que é como que a encarnação de Cristo em todos nós, poderia não nos unir? Grande é a inconsciência humana; todavia, não se podem negar os vastos efeitos desse sacramento no conjunto das sociedades cristãs. Não seria preciso mais do que fidelidade para reforçar essa ação e combater o esfacelamento, os antagonismos criados no corpo social pelo choque dos sentimentos e dos interesses, privados dos seus limites e do seu freio. É certamente no dogma, na moral e no culto católicos que o acionamento desse freio e o sentido desses limites são incomparavelmente mais bem assegurados.

Afirmando o Deus vivo, e pondo-nos com ele em vida comum; reintegrando-o, se assim posso dizer, em todas as suas funções, em relação a tantas religiões e filosofias que o dissolvem – Deus criador, Deus legislador, Deus providência, Deus justo e remunerador, Deus amor, - o catolicismo está em força para estabelecer a criatura na sua consciência e na sua solidez interior, nas suas atividades autênticas e nas suas relações verdadeiras. É o fundamento da vida que doravante é firme.

Trata-se da vida internacional, que a civilização deve considerar hoje em dia como por assim dizer idêntica a si mesma? A Igreja é competente pra isso tanto em relação ao princípio como do ponto de vista dos meios de realização. Pode-se dizer que, aos olhos da Igreja, a sociedade internacional é o fim dos Estados, a título de síntese humana em Deus e em Jesus Cristo, na razão que nos liga e no destino sobrenatural que são agora obra dos melhores! Penetre em toda parte e impregne tudo a cidade cristã, “alma das nações”, e a cidade universal está feita.

A comunidade internacional é para a Igreja um fim, pela boa razão de que é um começo, e de que sempre os princípios e os fins se correspondem. É da comunhão dos homens em Deus e em Cristo que tudo parte na vida católica. Se tudo parte disso no empreendimento e na intenção, a isso não deve tudo chegar na execução? Unidade espiritual, unidade moral, unidade jurídica, unidade política sob uma forma qualquer: pode isto dissociar-se sempre? Abordando o homem na sua unidade, o homem total, a Igreja ao pode deixar de querer a livre realização, pelo homem, do cosmos humano, como pela sua providência Deus realiza o cosmos universal.

O grande obstáculo à união dos povos está, de um lado, na materialização das almas, que multiplica as competições pela partilha das riquezas deste mundo, e, de outro, nos desvios do próprio ideal, que muitíssimas vezes se extravia, ou se particulariza, ou se exacerba. O exemplo das guerras de religião ou de prestígio aí está para nos mostrar que o idealismo nem sempre trabalha pela paz. Talvez que a catolicidade tenha aqui censuras a se fazer. Porém, fiel ao seu princípio de justiça e de amor, elevando e unificando ao mesmo tempo os homens, como a gente se aproxima em galgando um píncaro, a Igreja tem tudo o que é preciso para preparar o futuro do verdadeiro gênero humano, da sociedade humana definitiva.


Em suma, a Igreja em toda parte faz dominar o espírito, e, por via de consequência, a unidade de espírito, ligando-nos ao Espírito supremo.  Ora, é uma verdade essencial, por demais desconhecida das nossas febres “soi-disant” realizadoras, que todo trabalho civilizador tem origem no espírito. As simples técnicas, sabemos o que delas se faz; elas dão força à barbaria tanto quanto aos valores humanos. Das nossas multidões materializadas tendem elas a fazer uma massa de indivíduos que, espiritualmente, já não são pessoas. A Igreja desejaria fazer deles pessoas sagradas, de boa mente diria com Bergson: deuses.


E não é essa uma razão para que ela despreze as técnicas. Nunca a ouviremos maldizer das invenções, das organizações, das máquinas, dos processos e dos engenhos quase milagrosos que, pelo contrário, ela gosta de glorificar benzendo-os. Porém ela sabe e repete que todos esses valores, servos do espírito, e do espírito santificado, não o substituem; os efeitos deles dependem deste mais do que deles mesmos; pois sem ele, através da ruína do homem, eles só redundam no nada de si. Dividem o indivíduo de si mesmo corrompendo-o; dividem-no de outrem pela inveja, mesmo quando já não é pela necessidade.

Não se diga, pois, que por sua missão a Igreja, suposto que faça um trabalho útil, só o destine à salvação eterna. É verdade que a Igreja tem este escopo e não tem segredos para a organização deste mundo; mas a organização deste mundo depende dela porque depende dos homens, e, nos homens, depende justamente dessas virtudes, desses valores morais que os devem conduzir à salvação eterna.

“As coisas que vemos não foram feitas de coisas que se veem”, diz a Epístola aos Hebreus (XI, 3). A civilização visível tem fontes invisíveis; reside nos corações; a forma dos nossos pensamentos, dos nossos desejos, das nossas ações individuais, das nossas relações, das nossas reações mútuas em todas as ordens e em todos os cenários será a forma dela. A Igreja, que age sobre tudo isso na medida em que se lhe é fiel, trabalha em tudo, se bem que por si mesma se mantenha fora dos nossos trabalhos. Ela é a eternidade no tempo, dizemos nós incessantemente, a eternidade que anima o tempo, sem que a meçam os nossos relógios.

Nos nossos dias de perturbação e de progressos materiais em tão violento contraste, não é inútil relembrar estas coisas. O mundo moderno é um instrumento admirável, mas desafinado; os sons individuais persistem belos e possantes, porém a música peca.

Muitos não veem a cauã dos nossos males e atribuem-na a algum erro de método ou de organização. Pelam para os peritos, e muitas vezes estes procuram simplesmente meios para favorecer e exasperar a loucura dos homens. Sem dúvida há em nós defeitos de organização, defeitos de método; mas por detrás disso, e pela razão mesmo de haver isso, há outra coisa. Há os apetites desencadeados, uma febre absurda de vida a toda velocidade, como de quem se persuade de ter apenas um curto instante para gozar. Há os nossos laços afrouxados pela ausência das virtudes sociais: justiça, amor, que por sua vez dependem das nossas virtudes individuais.

Tornando-nos bons, nós nos tornamos um bem de todos; a solidariedade, que se estabelece pela boa vontade mútua, não é então uma cadeia de elos ocos, assume valor ao mesmo tempo que coerência. De nada serve estar ligado a outrem se nada lhe trazer de benéfico! – talvez infligindo-lhes taras! – nem amar o próximo como a si mesmo, tal como o quer o Evangelho, se nada se tem de si que amar.

Abdicação ou absurda presunção, isto é, abdicação retardada e cataclisma: tal é a alternativa imposta a um mundo que recusa as leis da vida e que, por uma extensão que o fato consagra tanto quanto a fé atesta, recusa as suas próprias leis sobrenaturais.

A medida que o sentimento de Deus e o sentimento da nossa unidade espiritual em Deus, tal como a concebe e a organiza Igreja, se vai enfraquecendo, vê-se proporcionalmente baixar o sentimento dos homens da unidade interior e da comunidade moral. Não há mais, dentro e fora, senão forças esparsas ou bloqueadas para fins utilitários. Não há mais senão funções.

É em Deus criador que se acham originariamente a ideia do homem, a ideia da humanidade, a ideia do universo, território e matéria de civilizações: é aí que cumpre reencontrá-las, e o caminho normal dessa ascensão, desse retorno espiritual, é a Igreja. O olhar para a matéria vem depois. O estatuário pensa em bloco; mas pensa primeiro na forma de arte da estátua e na forma do monumento que ele decora.

É por isso que Cristo homem, iniciador e chefe permanente da Igreja, Cristo na sua pessoa e na doutrina que a exprime propondo-a, é o ponto de partida ideal da civilização; a sua perfeição domina-a toda desde as mais antigas idades; ela é sua regra também para o futuro. Graças ao Homem-Deus, a Igreja casa em si o ideal e o real, o terrestre e o celeste. Obriga segundo Deus e convida segundo o homem, cuja imagem autêntica apresenta; é assim inspiradora perfeita do trabalho humano, e o seu socorro mais eficaz. É preciso céu e terra para a germinação do que quer que seja, planta ou homem.

Por seu turno, esses espelhos vivos de Cristo que se chamam os santos são, em nome dele, modelos e agentes de civilização que se não deveriam desconhecer. Que não deve a humanidade a homens como S. Paulo, Santo Agostinho, S. Bernardo, S. Francisco e S. Domingos, Santo Inácio e S. João Batista de La Salle, S. Francisco de Sales e S. Vicente de Paulo?  O que eles trazem nem sempre é brilhante e mensurável a título imediato; mas é um trabalho de fonte, e na medida em que a fonte lhes recebe a mensagem, torna-se, por igualdade de valor inato ou técnico, um elemento de verdadeira civilização.

Os chefes de estado que foram santos, como S. Luís, ou chefes militares como Sonis, como Foch, filósofos como Alberto Magno e S. Tomás de Aquino, artistas como Haydb, sábios como Linné ou Newton, não foram sublimados, em igualdade de gênio ou de poder, pela sua fé ativa e pela retidão da sua vida? Assim, generalizando, uma sociedade cristã é sublimada em todos os seus valores de civilização temporal, além da salvaguarda proporcionada ao que constituía esse fundo.

Felizmente, resta-nos muito daquilo que a Igreja verteu nas almas de nossos pais. A nossa civilização é um lençol d’água cuja superfície mostra uma triste escuma que terá sempre suas camadas inferiores; mas entre as duas, circula uma corrente pura e forte, formada das altas consciências cristãs e dos herdeiros, talvez inconscientes, do passado cristão.

É por isso que não há razão alguma para desesperar; mas é preciso despertar os dorminhocos e reconduzir os transviados, para que o milagre de Deus no meio de nós não seja vão, justamente no momento em que a sua oportunidade e as suas possibilidades de manifestação mais se patenteiam.

Quanto mais a humanidade dura, tanto mais necessidade tem daquilo que lhe permite tomar valor, começando por se desprender de si mesma. Quanto mais tempo há, tanto mais empréstimos à eternidade se fazem mister; quanto mais humanidade há, tanto mais divindade se torna mais necessária hoje do que nunca. Cumpre que ela nos batize, se não somos batizados, que nos confirme, nos faça comungar juntos e com Deus, nos ordene, nos perdoe também, nos case de um casamento puro e fecundo com a natureza santificada, e, se preciso, visto que as nações e as civilizações morrem, nos unja antes da paz do túmulo e da vinda a lume dos séculos novos..

Mas também, sempre mais necessário, a Igreja está sempre mais disponível. Ela é forte; pode carregar as desventuras do mundo e suas culpas, tanto quanto as suas virtudes e as suas venturas.


Quer se queira quer não, deve-se pois convir que as suas afirmações relativas a si mesma são justificadas; ela é “o estandarte levantado sobre as nações” de que fala o Concílio de Trento, e pelo qual a construção divina se reconhece. Só o dogma da Igreja explica o fato da Igreja. Fora isso, não há explicação pertinente. A gente dos primeiros séculos estava segura disso. Quando sucede duvidarmos disso, é que nossos olhos estão menos frescos. Deus queira que acontecimentos mais graves não nos refresque, mostrando-nos tragicamente aquilo que nos falta depois que acreditáramos tê-lo. Nossos pais, mais humildes, compreendiam que não o tinham.

   


17 – Bousset, Oração fúnebre de Ana de Gonzaga.
* - Pergunta que foi formulada ao tempo em que foi escrito este livro. A resposta, ao tempo em que aparece esta tradução, já está dada pelo desfecho da grande guerra. (Nota do Tradutor).

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