sexta-feira, 21 de julho de 2017

O Ídolo Contemporâneo - Parte II

Por
Rev. Padre Jacques-Marie-Louis Monsabré

Diz-se aí, senhores, que as palavras Deus, Providência e Imortalidade são velhas e intoleráveis; nada mais verdadeiro. O ídolo contemporâneo, submetido à pressão das ideias e dos atos que por um lado nos representam a Deus, e por outro lado a alma humana, cai por terra, quebra-se, esmigalha-se, e protesta contra as temerárias pretensões dos seus fabricadores. Antes de vos dar os pormenores desta consoladora catástrofe, não vos impressionou, como a mim, este fato singular, a saber: que temos a ideia precisa de seres, essencialmente diferentes da matéria, a ideia de forças superiores à matéria? Seja qual for a origem desta ideia, como a poderíamos alcançar, se nada existiu e nada existe além da natureza? É-me absolutamente impossível admitir, que um ser possa nunca formar ideia do que não existe, ideia que, na hipótese de se formar, deveria por fim ser rejeitada quando a inteligência fosse esclarecida pela verdade. E, pois, que nos dizem que somos o ludibrio de uma ilusão, afirmo que a ilusão é improdutível, e que é absolutamente impossível que possamos formar ideia de coisas, cujos elementos não existiram, não existem, não existirão nunca. Estudai as quimeras que o espírito humano concebe, e vereis que se compõem de elementos realmente existentes na natureza: mas na hipótese de que a matéria é o único ser atual e possível, como poderia eu conceber as quimeras, Deus e a alma, se a essência que lhes atribuo está fora de tudo que existe ou pode existir? Não sei, senhores, se vos apresento bem esta dificuldade que o senso comum desde logo opõe ao materialismo; mas eu vejo-a, compreendo-a, e sinto que dissipa completamente do meu espírito todas as dúvidas. Analisemo-la, porém, e deste modo compreendereis melhor a sua força. Deus representa para nós o necessário, o infinito, a suprema perfeição, o motor de todos os mundos, o ordenador inteligente de todos os mundos, o Criador e Senhor da nossa vida. Se Deus não existe, é absolutamente necessário que a matéria corresponda a todas estas ideias, porque é impossível suprimi-las sem dar um desmentido ao espírito humano e sem cair no mais espantoso caos. Não é este o intento dos fabricadores e dos pontífices do grande ídolo; sentem, já vo-lo disse, a fatalidade que atribui à matéria tudo o que se nega a Deus. Logo, a matéria deve ser necessária, infinita, a perfeição suprema, a onipotência inteligente. O peso destas perfeições esmaga e aniquila a matéria. Como seria necessário o ser tantas vezes divisível e diviso, suscetível de aumento e diminuição, incessantemente mutável, o ser que posso imaginar como não existindo, ou existindo de um modo diferente, aumentar, diminuir, mudar, consoante apraz ao meu pensamento? Dominado pela minha potência avassaladora, só por meio dela é que esse ser lograria a ter consciência de si. É um ser necessário! E não possui meio algum de manifestar a sua necessidade, e não a conhece senão sob uma forma contingente e mediante fenômenos contingentes! Estranho ser necessário! Como seria infinito? O infinito não se concebe senão suprimindo simultaneamente o limite e o número. Ora, a matéria está sujeita aos números. Na matéria não só se multiplicam seres distintos, mas cada ser e cada parte do ser se resolve numa inumerável quantidade de seres que escapam à observação experimental. A soma de todas estas quantidades finitas, não produz senão um número finito. Repugna à inteligência um número atualmente infinito, composto de unidades sucessivas. Afirmar a possibilidade de tal número seria o mesmo que destruir os fatos, porque um número infinito na matéria produziria o pleno absoluto, o pleno no seu máximo de densidade; e nesta hipótese o vácuo seria um absurdo, o espaço uma quimera, as formas confundir-se-iam, os movimentos estacionariam, o mundo não seria mais do que uma grande massa informe, uma noite, um repouso imenso. As mesmas dificuldades com referência à perfeição. É impossível admitir a perfeição suprema no ser do qual posso afirmar o mais e o menos, no ser onde não vejo senão mudanças contínuas; e o meu espírito busca um ser no qual, segundo a expressão da Escritura, não há nem sombra nem vicissitude. Dir-me-ão: a matéria está sempre em ação; seja. Mas por mais que atue, nunca logrará elevar-se às regiões sublimes onde o meu espírito contempla a suprema perfeição. À medida que a matéria for aperfeiçoando, o meu espírito subirá mais acima; e, se eu mesmo não sou mais do que matéria, lançar-me-ei, em nome dum ser impossível, a uma luta perpétua. Como admitir perfeição suprema num ser essencialmente contraditório? Se ainda não vedes claramente, senhores, como são profundos os golpes que estas grandes ideias abrem no ídolo, descei das esferas da metafísica às humildes regiões do senso comum, e ponde a matéria em presença do movimento universal, da imensa variedade dos seres e da ordem do mundo. Se Deus não existe, é forçoso que seja a matéria a causa de todas estas maravilhas, e, todavia, a matéria, segundo a confissão dos seus adoradores, é originariamente indiferente e cega. Quando “por um esforço inato, a matéria organiza os seus elementos dispersos, e adquire propriedades e perfeições que não tinha” , escrava de leis fatais que a impelem a progredir, sofre a tirania de todas as circunstâncias fortuitas que determinarão as suas formas. “Singular causa, diz com razão um crítico moderno, que viola todas as leis da lógica, e que está em perpétua contradição consigo mesma: ininteligente, produz uma obra que revela inteligência; cega, realiza a harmonia; imprevidente, a tudo prevê; fortuita, cria a ordem; inconsciente, restabelece a solidariedade; fatal, opera como se fora dotada de vontade própria; inanimada, produz a alma e a vida; privada de razão, de entranhas e de sentimentos, opera prodígios de gênio e de amor”. A matéria é tudo, a matéria pode tudo, a matéria faz tudo; eis aqui, senhores, as proposições mais incompreensíveis que se podem conceber, se não é que as explicações com que pretendem justificá-las não são ainda mais incompreensíveis. Como é que a matéria move o universo? Nada mais simples: o movimento, dizem, é essencial à matéria. Quer dizer, senhores, afirma-se, sem provas, o contrário do que o espírito naturalmente concebe quando une estes dois elementos: matéria e movimento; o contrário precisamente do que a experiência ensina e comprova. Naturalmente concebemos que a matéria é movida; experimentalmente apenas observamos séries de movimentos, cujo princípio escapa à ação dos sentidos. Nestes movimentos observamos uma diminuição contínua em proveito da estabilidade dos corpos, de onde se segue que, se nos é lícito determinar a essência da matéria, apoiados na observação das suas tendências, nunca devemos dizer: o movimento é essencial à matéria, mas sim: o estado estático é essencial à matéria. Sobre este ponto os melhores físicos estão de acordo com a tendência natural do nosso espírito a admitir na matéria um movimento adquirido. Segundo eles, a inércia da matéria é o resultado principal da experiência e o fundamento da mecânica: a física deve sempre fazer entrar nos seus cálculos a matéria como coeficiente da inércia” . E de mais, senhores, já vistes, quando desenvolvíamos as provas da existência de Deus, como era absurda a consequência logicamente deduzida do movimento essencial da matéria: cada átomo deveria possuir, como primeiro motor, o plano harmônico de todas as evoluções do movimento; o infinitamente pequeno tornar-se-ia, por esta vasta concepção do todo, num infinitamente grande . Quereis unir a força e a matéria? Pois bem: o que é a força? É uma série de movimentos produzidos por outros movimentos? É a mesma questão. É uma qualidade inerente à matéria? Mas na matéria há uma qualidade que tende ao repouso e que é a negação daquela. É o calor, a eletricidade, o magnetismo? Estes fenômenos são efeitos do movimento e não causas. É um axioma, uma fórmula, uma abstração? Isto não significa nada . É um ser distinto da matéria? De duas uma: este ser ou é múltiplo como os elementos, ou é único. Se é múltiplo, é forçoso que seria determinado e ordenado ao movimento do todo por uma força superior; se é único, é simples, imenso, inteligente, onipotente; o materialismo não o pode admitir sem se contradizer, sem renegar o seu ídolo. Logo, a inércia é essencial à origem de todo o movimento: primeiro mistério. A indiferença e a uniformidade produziram a imensa variedade dos seres: segundo mistério. Diz-se, senhores, que tudo começou por um período atômico e que a mecânica presidiu à origem das coisas. Abster-me-ei de perguntar ao átomo primitivo e à mecânica original de onde procedem: esta pergunta poderia embaraça-los. Estudemos, pois, aqueles seres tais como nos são propostos. Os átomos constitucionais são idênticos e indiferentes à mecânica indeterminada. Pergunto: a conclusão natural que o senso comum deduz destes princípios não é porventura que devem produzir seres perfeitamente semelhantes, na hipótese de que alguma coisa produziram?E digo, na hipótese de produzirem alguma coisa, porque a afinidade eletiva que se supõe nos átomos, está em manifesta contradição com a semelhança completa e indiferença que se lhes atribui. Não tem ao menos o mérito dos átomos de Epicuro, com os quais se pode conceber uma certa variedade nos seres. De mais, a indeterminação original da mecânica não se pode converter por si em determinação. Ponhamos, porém, de parte esta dificuldade. Admitamos que as causas primordiais, cuja apresentação acabo de fazer-vos, produzem todos os seres orgânicos. Eis a vida; essas causas não vão mais longe. “Não há nada semelhante à vida, senão a mesma vida” . Nasce sempre, e por toda a parte, de m gérmen vivo que se alimenta de um blastema, gerado também por um ser vivo. Para o seu desenvolvimento, a vida necessita ainda de princípios orgânicos que possa assimilar; as substâncias inorgânicas, elementares no estado de indiferença química, não a podem sustentar . Diz alguém “que uma garrafa com carbonato de amoníaco, cloreto de potássio, fosfato de soda, de cal, de magnésio, de ferro, de ácido sulfúrico e sílica é, de um modo ideal, o princípio vital completo” . Desafio a quem quer que seja a que faça passar esse ideal à realidade. Mas as gerações espontâneas? Não as estudei de perto, senhores, mas apelo para as experiências decisivas que enterram para sempre aquela hipótese ; apelo para o testemunho de sábios conscienciosos que me afirmam “que a matéria sem espontaneidade nada pode gerar” , “que a geração espontânea é impossível” , “que todas as experiências rejeitam tal hipótese” , que as forças físico-químicas estão condenadas a uma esterilidade absoluta; “que é necessário admitir, em todo o ser vivo, uma ideia que se desenvolve e manifesta pela organização” . Há mais, senhores; não só todo o gérmen protesta contra o átomo primitivo e contra a mecânica primordial, mas os próprios gérmens protestam contra os gérmens. Com efeito, estes gérmens são todos determinados em espécies distintas que nunca se confundem . Ideou-se, bem o sei, um romance científico, abundante em hipóteses, onde a luta pela existência e a seleção natural exercem um papel extravagante, e onde se infere a possibilidade das variedades nas espécies, a possibilidade das suas transformações sucessivas e, da possibilidade das transformações de uma espécie em outra, a possibilidade das transformações de um reino em outro . Mas a experiência bem longe de justificar estas afirmações audaciosas, pelo contrário, desmente-as. Na verdade, diz-nos a experiência que a seleção artificial só produz variedades; que os esforços livres, inteligentes e calculados do homem para um fim indeterminado desfazem-se constantemente contra a imutabilidade da espécie; que a natureza caprichosa reconduz sempre ao primitivo tipo os produtos da arte humana, desde que a arte humana os abandona. Daqui concluímos, com a experiência, que a seleção natural, resultado de circunstâncias fortuitas, não pode operar nenhuma transformação radical, que os tipos são irreformáveis, que o “plano da organização é invariável na determinação dos limites da espécie, que a espécie não sai da espécie” , numa palavra, que o poder soberano dos átomos idênticos e da mecânica indeterminada são contos que servem para conciliar o sono. Estamos, senhores, na presença de um terceiro mistério de onipotência não menos ininteligível e repugnante que os precedentes: o mistério da harmonia produzida pela ininteligência. Não negamos que a matéria possa tornar-se inteligente; isto seria negar o homem e as suas obras; mas para isto é necessário que a matéria se eleve, por uma longa série de transformações, até ao cérebro humano, produtor do pensamento. Antes de examinar o proceder deste órgão maravilhoso, pergunto ao materialismo se as obras do homem não são precedidas de uma obra inteligente, se não existe uma harmonia preexistente aos nossos atos intelectuais. Não, responde-me o materialismo pela boca dos seus mais conspícuos doutores; a natureza procede cegamente, sem desígnio e sem ordem; ao lado das coisas que parecem manifestar um plano, há as exceções e as monstruosidades; “a harmonia é um ideal do homem que aplica ao universo o seu modo de ver as coisas” . É fácil responder a estas afirmações mais que audaciosas. Se há exceções e monstruosidades na natureza são evidentemente desprovidas de valor em comparação dos fatos precisos e determinados nos quais se manifesta um desígnio meditado; quando muito, aquelas exceções provam o limitado alcance do nosso espírito que não pode explica-las. Aos olhos do verdadeiro sábio, a exceção confirma a lei; a monstruosidade faz sobressair os esplendores da ordem pelo poder do contraste. Quanto ao dizer-se que nos enganamos afirmando a inteligência onde vemos a ordem, é impossível, porque somos obrigados, não pela imaginação, mas pela força analógica do senso comum a reconhecer uma inteligência onde quer que vejamos a harmonia e a ordem. É escusado repetir aqui, senhores, o que já ponderei acerca da harmonia do mundo e dos desígnios superiores que ela nos revela. É necessário fechar os olhos de propósito, para não ver coisas tão evidentes, e para não compreender que, se trabalhamos a fim de que as nossas obras sejam realizadas com número, peso e medida, nada mais fazemos do que imitar essa obra admirável na presença da qual todo o homem reto e sincero tem o sentimento do seu nada. “Analisai a molécula. É um modelo de simetria que apresenta um tipo geométrico; os corpos simples para que formem os compostos não se podem combinar senão em números proporcionais determinados e invariáveis” . Uma potência matemática preside a toda a combinação , o sábio descobre-a no infinitamente pequeno, o povo contempla-a no infinitamente grande. E nos seres vivos “um plano de admirável harmonia dispõe as partes de modo que se adaptam perfeitamente ao fim para o qual o todo existe . Que maravilhosa arte nos tecidos! Só no homem há trinta, e nos seus admiráveis enlaçamentos cada molécula ocupa seguramente o lugar que lhe é devido. Que sábia previdência na lei das uniões e na lei do amor, convergindo não somente à propagação da espécie, mas ainda à conservação, à proteção, a educação de seres frágeis que se preparam para as lutas da vida! Os materialistas invocam a fixidez das leis , a federação dos elementos atômicos, o consensus necessário das suas tendências invencíveis , como se todas estas coisas não supusessem uma inteligência que fez a lei, organizou a federação dos elementos e regula as suas tendências. Agrada-me sobremaneira aquele sábio, quando exclama: “Foi a lei, isto é, a inteligência, a ideia, o espírito, o amor que formou o mundo” , e aquele outro que, no seu arrebatamento, esquece as áridas fórmulas da ciência e canta, como se fora poeta, os gloriosos hinos dos elementos e o espírito divino que os fecunda . Bem vedes, senhores, que há inteligência antes do cérebro humano. Se a matéria não pensa senão por meio deste órgão, é forçoso aceitar este absurdo enorme: a ininteligência é mãe da harmonia. Ó divindade miserável! Ídolo falaz do materialismo, eis-te esmagado pelo universo inteiro. O movimento, a variedade dos seres, a vida, a harmonia, tudo pesa sobre ti e te reduz a pó; quero, porém, descarregar os derradeiros golpes sobre a tua teoria do cérebro humano de que te glorias como se fora a tua obra prima. Não é agora, senhores, ocasião oportuna de fazer uma longa demonstração da espiritualidade da alma: esta questão tratar-se-á a seu tempo. Também não me deterei em refutar esses sofismas vulgares com que os materialistas obstinadamente nos apresentam, como causas das nossas operações intelectuais e morais, as condições orgânicas e as funções concomitantes. Limitar-me-ei a consignar os fatos perante os quais é forçoso admitir, ainda uma vez mais, a impotência absoluta da matéria. Em todos os nossos atos, ainda nos mais nobres e levantados, temos a consciência de que somos limitados, e, por conseguinte, dependentes. E se apenas dependemos da matéria, é à matéria que devemos atribuir a consciência do nosso eu, as nossas ideias, os nossos juízos, os nossos raciocínios, a nossa vontade, o sentimento do dever, isto é, devemos derivar, contra os princípios da razão, o imutável do variável, o uno do divisível, o livre do fatal, o meritório do irresponsável. O ser vivo, incessantemente movido pelo princípio que o anima, perde e adquire, algo desaparece e renova-se a ponto de que, da matéria que possuía no começo de um período matematicamente medido pela ciência, não lhe resta a mínima molécula logo que aquele período termina. Por mais nobre que seja a massa de que é formado o cérebro humano, é certo que a cada momento se transforma. E sendo assim, deveríamos, sob a impressão constante de um trabalho que remova o nosso cérebro, modificar constantemente a afirmação da nossa existência. E não é assim. A afirmação da nossa existência é sempre a mesma. Há vinte, quarenta, sessenta anos, e mais ainda talvez, que nós dizemos: eu. Eu imputável que subsiste através da incessante mutabilidade do nosso organismo. Como explicar isto, senhores? Havemos de dizer que cada átomo antes de se ausentar teve o cuidado de dizer adeus e fazer as suas confidências ao átomo que o vem substituir? Seria uma loucura afirmar tal. O eu subsiste e afirma-se precisamente, porque há em nós uma substância simples e imutável que une as fases mutáveis da nossa existência, e a matéria sempre transformada e sempre substituída, não pode ser aquela substância. Do mesmo modo, senhores, a matéria divisível não pode ser a substância que vê em nós as ideias e realiza a unidade dos nossos juízos e raciocínios. A preciosa massa cerebral, por muito impressionável que seja, não pode receber senão as imagens que lhes são apresentadas e, supondo que as conserva, tais imagens nunca nos representariam senão seres particulares, indivíduos determinados. Se em mim há apenas impressões cerebrais, verei, quiçá, tal árvore, tal animal, tal homem, mas ser-me-á absolutamente impossível, exprimindo por uma só palavra um gênero, uma espécie na sua totalidade, ver a árvore, o animal, o homem em geral, e por maioria de razão se se tratar de coisas material e atualmente irrepresentáveis, com o necessário, o possível, o infinito, o absoluto, o futuro e outras. Não é o divisível, mas o uno que forma as ideias e sobe tudo o que as enlaça em nossos juízos e raciocínios. Quando dizemos: este homem é justo, onde é que se realiza o laço desta proposição? Quando afirmamos que tal conclusão está contida em tais e tais premissas, onde é que se pronuncia esta afirmação? É em cada molécula da substância cerebral? Mas como, se não há mais do que um juízo e raciocínio? Quem opera a intelecção de uma substância tão divisível e divisa, senão a unidade que a governa, a unidade que aquela massa não é, nem pode ser. Dizem: a matéria está sujeita a leis inflexíveis. Que seja. Mas, não obstante, eu sou livre. Se determino marchar para a direita e não para a esquerda, marcho; levantar o braço e não tê-lo imóvel, levanto-o; abrir os olhos, e não tê-los fechados, abro-os; realizar um dado pensamento e não outro, realizo-o. Em todos estes atos eu tenho a consciência de que é a minha vontade que se cumpre. E se eu fosse apenas matéria seria tão escravo da necessidade que não somente não poderia praticar atos livres, mas, o que é mais, nunca poderia saber o que significa a palavra liberdade. Ora, se a fatalidade da matéria repugna à liberdade, a consequência necessária é, que a irresponsabilidade repugna à ideia de mérito ou demérito. Entretanto, senhores, é incontestável que existe em nós a noção e o sentimento daquelas duas coisas, porque temos a noção e o sentimento do dever. Domina a nossa vida, regula, dirige e qualifica os nossos atos, uma lei de que não somos autor e que por isso mesmo não podemos alterar. Se ajustamos as nossas ações com esta lei, praticamos o bem, merecemos; se a transgredimos, praticamos o mal, desmerecemos. Ora, com que direito afirmamos das nossas ações que “esta é meritória e aquela é má” se acima de nós nada há, se depois de nós só há matéria? Não nos dizem porventura que a matéria é o joguete duma inflexível necessidade? Como posso eu adquirir mérito ou demérito se estou sujeito a violências tais de que não posso escapar? O respeito, o amor, a liberalidade, a caridade e a dedicação outros tantos efeitos são da lei fata; o desprezo, o ódio, o assassinato, o egoísmo, não são crimes, não, mas produtos da necessidade. Isto é, decerto, uma inaudita monstruosidade, mas tão criminosa como a existência de um nó no tronco de uma árvore, ou de um tumor no músculo de um animal. Se o materialismo quiser ser consequente, deve admitir que o vício e a virtude são produtos como o vitriolo e o açúcar, que é tão contrário à moral o ser perverso como o ser zarolho ou corcovado . Mas o materialismo revolta-se algumas vezes contra estas consequências, e acusa-nos, quando lhas lançamos em rosto, que lhe movemos uma guerra desleal e que fugimos, por medo, das refutações científicas. Sois testemunhas, senhores, de que eu também fugi destas refutações. Se para esmagar o ídolo contemporâneo não tivera mais argumentos do que o deduzido da ideia do dever, ainda assim não sairia do terreno científico. Os dados do senso íntimo serão porventura tão científicos como os da experiência física? A ciência, a verdadeira ciência, não consistirá acaso em conhecer os princípios e ver neles as conclusões? Se nos princípios do materialismo vejo a destruição de toda a moral, terei ainda a necessidade de procurar novos argumentos? Não tenho o direito de dizer, que quando um princípio destrói o que deve ser, é um princípio falso, visto como os princípios são regras de ser? É por isto, senhores, que os materialistas se veem obrigado a capitular, ainda que contra a vontade. Conhecendo a sua flagrante contradição com a consciência do gênero humano, o materialismo deserta do erro e admite a ideia do dever. Há mais de sessenta séculos que a consciência do gênero humano fala, e nos diz que é necessário cumprir o dever ainda mesmo com detrimento da matéria. Ouvistes? Ainda mesmo com detrimento da matéria! Pois bem, nada mais atroz e insensato do que esse axioma universal da moral, se a matéria é o nosso único criador e senhor. A sabedoria, a justiça, o dever exige que a respeitemos, que lhe prestemos culto, que sigamos docilmente os seus movimentos. E, todavia, nada mais baixo e vil! “Não há inteligência, não há faculdades superiores; tudo é sensibilidade, tudo embrutecimento, tudo terreno”, segundo a enérgica e bela expressão de Bossuet. Bem pelo contrário, foi sempre glorioso, e sê-lo-á sempre, o elevar-se o homem acima da matéria, resistir ao ardor do seu sangue e à violência dos seus instintos em obséquio à justiça, sofrer pela justiça, morrer pela justiça, desprezar a matéria tanto quanto é necessário para manifestar uma grande dedicação. Quando a miséria solta os seus gemidos, quem é mais belo, mais amável, mais digno de louvor, o epicurista que fica indiferente, e que, fiel à máxima egoísta dos pagãos, não sente dor nem piedade em presença do desgraçado, ou o homem generoso que liberaliza o seu dinheiro, emprega o seu tempo, as suas forças e arrisca a sua vida para salvar a vida de um dos seus irmãos? Quando a pátria invadida solta o grito de alarme e chama os seus filhos, qual é o herói, cujos feitos gloriosos mais tarde cantará? É o covarde que, pro amor da sua querida matéria, vai escondê-la e procura ele mesmo subtrair-se às balas e aos golpes do inimigo, ou o homem valente que voa para se alistar nas fileiras dos bravos, e se expõe às fadigas de uma campanha sangrenta e oferece impávido e o seu peito generoso ao fogo do inimigo? Ó matéria, ídolo bestial e frágil, a minha grandeza será tanto maior quanto mais entranhado for o desprezo que te votar. Não só me roubas a honra se te sirvo, mas ainda se em teus braços procuro a felicidade, ela me foge com obstinada ironia . Assim, pois, ó matéria, se tu não podes satisfazer as aspirações da minha alma, como posso eu suportar o jugo da tua divindade? Vai, vai! Eu não tenho necessidade de ti, basta-me o meu grande Deus. Ó Deus! Se tu não existiras, que profundo e espantoso abismo não se abriria para engolir o que há de mais nobre, e grande, e respeitável sobre a terra! Que valor teriam as orações dos santos? De que serviriam as sublimes contemplações das almas absorvidas no ideal? De que serviria o sangue dos mártires do dever? De que serviriam os gemidos e a derradeira esperança da justiça oprimida? De que serviriam as lágrimas dos abandonados? O nada, o nada seria o termo de tudo isto! O nada!... em quanto os perversos estimulados pela irresponsabilidade dos seus crimes devastariam o mundo! Que horror! Não, não, meu grande Deus, nós não queremos ser órfãos. Só tu podes sustentar o universo de que és Pai. Vinde a nós, e repeti-nos a grande palavra do deserto: Eu Sou o que Sou: Ego Sum qui Sum. Sim, força infinita, causa universal, existência necessária, perfeição suprema, inteligência soberana, criador e ordenador do mundo, senhor da nossa vida, tu és o que és, e a matéria é o que não é, porque sem ti seria nada. Vede, Senhor: eis-me aqui, de joelhos, com os olhos e mãos levantadas ao céu: contigo n´so calcamos aos pés os membros rotos do ídolo da falsa ciência, e em lugar da cega multidão que a toda hora exclama: Não há Deus, Non est Deus! Nós, teus filhos, cantamos com o coração transportado e com a alma comovida: Creio em Deus: Credo in Deum.

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