Como vimos, os cristãos sempre deram importância aos textos escritos pelos apóstolos, tanto que liam várias vezes em suas comunidades, e utilizavam essas escrituras para aprender, ensinar e preservar sua tradição.
Ao contrário do que muita gente pensa, o Canon não foi escolhido arbitrariamente. Na verdade, “escolhido” não é o melhor termo que se pode dar, porque os textos foram considerados inspirados desde o inicio, e os apócrifos descartavam a si mesmos, pois não mostravam a mesma autoridade dos que hoje são canônicos.
É verdade que nem todos os textos do Novo Testamento foram aceitos de primeira pela comunidade cristã, mas quero destacar o seguinte: todos os escritos do Novo Testamento que temos hoje eram lidos nas comunidades cristãs, os que são considerados apócrifos são os que eram lidos em casa, ou em outro local, não nas igrejas (Apócrifo significa oculto, não porque eram escondidos, mas porque não eram lidos publicamente). Por isso eles excluíam a si mesmos e não foram canonizados.
Textos esses, que continham muitas vezes ensinamentos heréticos, que se distanciavam muito do que os apóstolos pregavam. Isso pode ser visto quando Paulo adverte os cristãos de Tessalonica contra falsos ensinos (“Que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como de nós, como se o dia de Cristo estivesse já perto.” 2Ts 2:2).
Esse testemunho da tradição é incrível, pois, diferente do que várias pessoas afirmam hoje em dia, os livros não foram escolhidos por Papas ou em algum concílio. Eles foram confirmados em certos concílios, isso é verdade, mas só fizeram reafirmar uma tradição cristã que já existia. Ou seja, eles só declararam em concílio o que já era declarado nas comunidades cristãs. David E. Payne, comenta que
O cânon muratório dá testemunho desses dois interesses; procedente de Roma perto do final do século II, ele apresenta uma lista de livros do NT e relata algumas coisas acerca da sua origem e autenticidade. [...] Quase na mesma época, data o testemunho de Ireneu. As suas opiniões são especialmente interessantes, pois era muito viajado e estava familiarizado com os pontos de vista de lideres eclesiásticos de mais de uma região. [...] Da primeira parte do século II, vem o testemunho de Tertuliano (de Cartago e Roma) e de Orígenes (de Alexandria e Cesaréia). [...] O bispo de Alexandria, Atanásio, numa carta que anunciava a data da Páscoa, apresentou uma lista dos exatos 27 livros com os quais estamos famiarizados. Trinta anos mais tarde, o Sínodo de Cartago ratificava essa lista. (Comentário bíblico NVI, p. 1397)
Marcião foi conhecido por considerar inspirados uma lista de escritos de Paulo e o Evangelho de Lucas. Ele descartava qualquer tipo de influencia judaica, pois considerava o Deus do Antigo Testamento diferente e menor do Deus apresentado por Jesus, além de dizer que os outros apóstolos eram falsos apóstolos, pois, segundo ele, eram judaizantes. Percebendo o perigo dessas doutrinas, os lideres ortodoxos perceberam a importância de garantir que as palavras inspiradas aos apóstolos fossem tratadas com o devido cuidado, para não excluir, assim como fez Marcião, o que os demais cristãos consideravam palavras dotadas de autoridade apostólica.
Sobre os quatro evangelhos, F. F. Bruce comenta:
Os evangelhos de Marcos, Mateus e João parecem ter sido identificados inicialmente com três centros primitivos do testemunho cristão – Roma, Antioquia e Éfeso. A obra dupla de Lucas não foi escrita originariamente para o uso na igreja, mas como obra de apologética para os membros mais imparciais da classe média e oficial de Roma. Mas logo depois da publicação do Quarto Evangelho, os quatro evangelhos canônicos começaram a circular como uma coleção e continuaram assim desde então. [...] Tanto autores católicos quanto gnósticos mostram não somente familiaridade com o evangelho quádruplo, como também reconhecimento de sua autoridade. O Evangelho da verdade valentiniano (c. 140 – 150 d.C.), trazido à luz recentemente entre os escritos gnósticos de Chenoboskion no Egito, não pretendia suplantar os quatro canônicos, cuja autoridade ele pressupõe; é antes uma série de meditações acerca do “verdadeiro evangelho” que está conservado nos quatro (e em outros livros do NT). – (Comentário Bíblico NVI, p. 1496 e 1497, Editora Vida)
Na verdade, o conceito de “evangelhos” não era ensinado no primeiro século. Os cristãos apenas falavam de “evangelho”, e este era relatado por testemunhas oculares diferentes que meditaram nas palavras de Jesus e resolveram relata-las. Não posso deixar de destacar uma coisa no comentário de F. F. Bruce: não só a Igreja Católica reconhecia a autoridade dos quatro evangelhos, muitas vezes os evangelhos apócrifos e seitas gnósticas, como vimos no Maniqueísmo, reconheciam a autoridade desses escritos.
Alguns argumentam que o Canon bíblico foi definido pela igreja para poder dar suporte às suas doutrinas, e, assim, dominar a população. Isso não faz sentido por alguns motivos.
Primeiro, porque uns dos critérios para decidir quais livros eram inspirados foi a universalidade deles. Ou seja, os livros que eram lidos nas igrejas de forma universal, e aceitos pela maioria, se não todos, dos cristãos, como vimos anteriormente. Segundo, porque parte dos mesmos ensinamentos da tradição católica é relatada nos livros apócrifos, por isso, o argumento não sustenta a si mesmo se avaliarmos a fundo quais seriam os ensinamentos que a igreja católica queria impor. A assunção de Maria e a tradição de que José, esposo de Maria, era viúvo e tinha outros filhos são registrados em livros apócrifos, e seria de grande valia colocar como canônicos pra sustentar a virgindade perpétua de Maria, que até hoje causa controvérsias, tanto que nem todos os católicos dão tanta credibilidade a esses ensinamentos. Ao contrario dos apócrifos, os livros canônicos não citam, ou apenas fazem uma alusão indireta, o que a tradição católica tem como verdade. A mesma coisa se pode dizer pela questão política, pois os escritos canônicos ensinam que devemos honrar mais a Deus e seu reino do que aos homens e seu reino corruptível. Outro exemplo é o evangelho de Bartolomeu, quem em uma oração, é feita uma referencia à “Trindade consubstancial”. (Os evangelhos perdidos, darrell l bock, p. 110)
Entretanto, esse procedimento era feito em outras seitas e/ou religiões para apoiar suas idéias, como Santo Agostinho relata nas confissões:
Já me tinham começado a mover, em Cartago, os discursos de um certo Elpidio, que falava na presença dos maniqueístas e disputava contra eles, propondo passagens da Sagrada Escritura a que eu não podia facilmente resistir. A resposta deles parecia-me fraca. Mesmo assim, não a expunham em público, mas em segredo, afirmando que a Sagrada Escritura tinha sido falsificada no Novo Testamento por certas pessoas que quiseram inserir a lei dos judeus na fé cristã. E contudo eles não alegavam nenhum exemplar que não fosse apócrifo! (Confissões, Santo Agostinho, p. 111,Editora Universitaria São Francisco, 2006)
O que se pode ver é que, na falta de argumentos utilizando os escritos universalmente aceitos, apelavam para (1) a afirmação de que os textos das escrituras foram adulterados para “inserir a lei dos judeus na fé cristã”, (2) apelavam para a utilização de um livro apócrifo, que eram cheios de histórias fantasiosas (e é bom lembrar do significado de “apócrifo” visto anteriormente), em respostas também apócrifas, ou seja, escondidas. Talvez não tivessem coragem de responder publicamente.
Segundo o maniqueísmo, havia uma luta eterna entre o bem e o mal. A tarefa do ser humano é libertar o bem dentro de si do mal seguindo os preceitos maniqueístas. Também ensinavam que Jesus não tinha um corpo material, além de não ter morrido. Ensinamento parecido com os ensinamentos gnósticos. Santo Agostinho dizia que as os maniqueístas afirmavam que as nossas atitudes são conseqüências da luta entre o bem e o mal para tirar a responsabilidade dos nossos atos. Como esses ensinamentos não tinham base bíblica, precisavam apelar a outros escritos.
Além do maniqueísmo, pode-se citar outros tipos de gnosticismo, também o ebionismo e o marcionismo. Movimentos esses que, ora excluíam alguns livros ora utilizavam os apócrifos para apoiar suas crenças. Muitos destes eram escritos especialmente para isso, colocando nomes de apóstolos para garantir que tenham algum tipo de autoridade. Marcião (fundador do marcionismo) chegou a retirar trechos do Evangelho de Lucas (o único que considerava inspirado) para apoiar suas idéias anti-judaicas.
Por isso o argumento que em um momento supostamente mostrava que a Igreja Católica escolheu os livros por interesse, com uma analise detalhada no próprio argumento, o que se mostra é o contrário, que, mesmo com doutrinas apoiadas pelos apócrifos, a igreja não definiu o Canon com o interesse de apoiar suas tradições orais.
Para concluir, quero colocar um trecho do livro de Bengt Hagglund, onde ele confirma a tradição dos Pais Apostólicos em relação aos textos do Novo Testamento, principalmente em comparação com os escritos sagrados dos judeus:
Os Pais Apostólicos também testificam em termos insofismáveis que os quatro evangelhos e os escritos dos apóstolos estavam começando a ser reconhecidos como Escritura Sagrada com a mesma autoridade do Antigo Testamento, mesmo que o Novo Testamento ainda não tivesse alcançado sua forma final em sua época. Quase todos os livros que chegaram a ser incluídos no Novo Testamento são citados ou referidos nos Pais Apostólicos. A tradição oral que se originara com os apóstolos também era considerada como tendo autoridade decisiva para a fé e praxe congregacionais
Sem a tradição cristã não haveria o que chamamos hoje de livros inspirados por Deus, e é provável que estes livros não existissem. Tal importância nenhum cristão pode negar, a não ser que tenha objeções emocionais e não racionais à Igreja Católica.
Com o objetivo de preservar a tradição oral dos ensinamentos de Jesus, alguns apóstolos ou seus discípulos, que muitas vezes eram testemunhas oculares ou conheciam estas testemunhas, escreveram o que chamamos de Novo Testamento. E com o objetivo de preservar os escritos apostólicos e sua doutrina dos ensinamentos que não provinham de Jesus, os primeiros cristãos colocaram um “limite” do que era inspirado ou não. Limite do que era ensinamento de Jesus e o que provavelmente, ou com total certeza, não era.
Quero destacar que hoje, com os apócrifos, podemos saber como eram os movimentos cristãos e gnósticos nos primeiros séculos d.C. Por isso, mesmo não considerando inspirados e autênticos, é importante estudar tais textos. Principalmente porque grande parte das heresias atuais não passam de cópias das heresias primitivas. E a atitude que todo cristão sincero deve tomar diante destes ensinamentos contrários aos de Jesus é a preservação da sã doutrina. E pouca coisa mudou em relação a isso. Como religiões que aceitam os escritos neotestamentários, no entanto, para poder dar apoio de suas doutrinas, fazem uso de textos e livros que não foram escritos pelos apóstolos, porém considerada com mesma autoridade, mesmo com ensinamentos contraditórios.
Isso acontece muitas vezes porque as pessoas não querem acreditar no que as evidencias apontam, mas no que a sua vontade se inclina. Para muitos, é melhor acreditar que somos salvos por nossas próprias obras do que por meio da obra redentora e do poder de Jesus Cristo, Deus-homem.
A igreja nos dias de hoje ainda tem o papel de preservar a palavra escrita e inspirada. Com conflitos doutrinários parecidos com os primeiros, os cristãos atuais estão exercendo papeis parecidos com os antigos preservadores dos escritos cristãos e que reconheceram a sua autoridade apostólica.
Alguns dizem que “a história é contada pelos vencedores”, alegando que dessa forma os “vencedores” contaram apenas a sua versão da história, pensado que assim podem invalidar todo o esforço da tradição para escrita e preservação do Novo Testamento, ou que, de alguma forma, a história foi mal contada.
Isso muitas vezes é verdade, no entanto agora sabemos que não era só a tradição católica que atestava a autenticidade e autoridade inspirada dos textos do Novo Testamento. Vários movimentos e manuscritos gnósticos pressupunham isso. E mesmo que nenhum movimento diferente da Igreja Católica os reconhecesse, o fato dos vencedores contarem a história não significa necessariamente que eles manipularam-na. Com critérios históricos podemos saber de grande parte dos acontecimentos.
Sobre esse assunto, é bom lembrar que os textos mais antigos sobre o cristianismo são os que estão contidos no Novo Testamento. E os cristãos primitivos os aceitavam porque, pela tradição, continham autoridade apostólica, e não porque tinha nome de apostolos ou seus discipulos, como alguns dizem. Outra cosia a se lembrar é que até mesmo evangelhos e escritos que não eram tradicionais, ou seja, que vieram da tradição apostólica, aceitavam a autoridade de vários textos do Nnovo Testamento.
Darrel L. Bock, em um estudo sobre os cristianismo primitivo comenta sobre algumas das possibilidades que existem diante das evidências históricas que possuímos. Entre elas existe a de que a diversidade existiu, no entanto não possuímos provas reais de como era (ou seja, quem diz isso afirma por opinião pessoal, preconceito ou vontade de crer nisso, e não por evidencias históricas); ou então que os textos (que são bem posteriores aos textos primitivos) que possuímos vieram de realidades anteriores, a outra alternativa, e a que faz mais sentido diante das evidências é a seguinte:
Não temos evidências da diversidade primitiva porque a fé primitiva na verdade não era tão diversificada. A maioria dos oponentes nas obras primitivas nada mais eram que pequenos pontos na tela. Eles não tinham qualquer poder duradouro, nem existiam em um número suficiente para que pudessem durar. Eles se esvaíram, sem jamais terem se estabelecido como alternativas críveis. Se fosse esse o caso, teríamos no século II uma repentina profusão de textos alternativos, que é o período em que os primeiros começaram a aparecer. Assim, realmente se confirma a idéia há muito sustentada de que a tradição veio primeiro e a visão alternativa veio depois. (Os evangelhos perdidos, 244)
No entanto, mesmo que a segunda opção seja verdadeira, devemos lembrar que os textos do Novo Testamento datam no primeiro século, enquanto os textos alternativos datam, no mínimo, no inicio do segundo século. Ou seja, os textos do Novo Testamento fazem parte da tradição ligada a Jesus e os apóstolos, diferente dos textos alternativos. Darrel conclui dizendo que:
A ortodoxia não é um produto de teólogos do século II. Aqueles teólogos certamente desenvolveram e aprimoraram o ensinamento tradicional, acrescentando carne a ossos e estrutura a idéias básicas. Contudo, o cerne das idéias com as quais trabalhavam e que refletiam em suas confissões está presente nas obras mais antigas da fé. Essas obras abraçam o que os apóstolos passaram adiante. As obras que encontramos no Novo Testamento também testificam dessa fé. É por isso que elas foram reconhecidas como fontes especiais desse ensinamento, sendo vistas até mesmo como inspiradas por Deus. (Ibid. 253)
Alguns podem se perguntar sobre os textos do Antigo Testamento considerados apócrifos pelos protestantes e canônicos por outros segmentos cristãos. Este é um assunto que não será tratado nesse livro da mesma forma que o Canon do Novo Testamento.
O que se pode observar é que no Canon neotestamentario houve controvérsias, e livros aceitos hoje pela igreja que não eram aceitos por todos, mas que, aos poucos, foram aceitos devido as comprovações de sua autoridade apostólica. Se houve discordância desses livros, não se pode argumentar que por haver discordância em alguns livros deuterocanonicos do AT estes deveriam ser retirados. Mas isso será tratado mais adiante.
Quero dizer que, em minha opinião, isso não influencia a substancia principal do cristianismo, que é o evangelho de Cristo Jesus. Jesus Cristo é a Palavra de Deus, o Logos Divino, o próprio Senhor Deus que se fez carne, revelou-se aos seres humanos nos ensinando a viver e nos reconciliando com Ele por meio da sua morte na cruz. Por isso, hoje somos salvos mediante a graça de Jesus e justificados pela fé. Também que Jesus ressuscitou, de fato, dos mortos, como o primeiro dos que vão ressuscitar, e como prova de que falava a verdade. Além de que a nova criação de Deus já começou. Hoje podemos ter participação no seu Reino, e plena comunhão com o Pai, Filho e Espírito Santo, esperando com esperança o dia da ressurreição. Isso é mais importante, e o motivo que agradecemos a Deus constantemente pelo seu amor.
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