terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Forma e peculiaridade da literatura de Israel

O Antigo Testamento é parte integrante de nossa Bíblia cristã. Justamente nos últimos anos ressurgiu mais e mais do esquecimento e tornou a assumir seu lugar incontestado na pregação.

É, todavia, sempre um segmento reduzido do grande todo do Antigo Testamento que se nos apresenta. E quem procura penetrar mais fundo neste livro e lê, inclusive, trechos maiores do Antigo Testamento, deparar-se-á constantemente com dificuldades. Essas são, muitas vezes, de caráter externo. Simplesmente não compreendemos muitas coisas, esbarramos em contradições ou em fatos que nós cristãos achamos estranhos.

Temos, p. ex., logo no início da Bíblia, dois relatos distintos sobre a criação. O leitor imparcial imediatamente notará que um não é mero complemento do outro; pelo contrário, os relatos apresentam duas exposições bem diferentes do processo da criação do mundo. O primeiro relato é bem sistemático na seqüência das obras dos sete dias. (Compreende o trecho de Gn 1.1 até a primeira frase de Gn 2.4, que forma o epílogo.) De acordo com este relato, tudo se originou aos poucos do nada caótico, mediante a vontade criativa e ordenadora de Deus Criador, a começar pelos elementos inânimes, passando pelo reino vegetal e animal até o ser humano. Conforme esse relato, Deus cria apenas através de sua palavra eficaz.

Bem diferente é o segundo relato. (Começa em Gn 2.4b: “Quando o Senhor Deus fez o céu e terra...”.) Aqui o estado caótico primitivo não é a água, mas a seca. No princípio da criação está o ser humano. Em seu redor são criados, então, o reino vegetal e o reino animal. Esse relato é bem mais ingênuo e plástico, representando, p. ex., a atividade criadora de Deus como a do oleiro que forma um vaso de barro. E em todo este conjunto é visado, exclusivamente, o espaço vital imediato do ser humano.

É evidente que aqui foram colocados lado a lado dois relatos de criação distintos que originalmente eram independentes. Originaram-se em tempos e de autores diferentes, que, com respeito à criação, foram movidos por interesses bem diferentes.

Já este exemplo nos pode mostrar que no caso do Antigo Testamento temos diante de nós um livro que cresceu paulatinamente. Em sua forma atual constitui o resultado de uma longa história. Foi chamado, certa vez, de “o livro que cresceu durante mil anos”. Nele encontramos reunidos os testemunhos de fé do povo de Israel, procedentes de muitos séculos.

Em cada geração se levantavam de forma nova as perguntas que resultavam da fé de Israel em um só Deus e seu agir na história com seu povo. E cada geração tinha que dar as suas próprias respostas. Tudo isso se documentou, nas mais diversas formas, nos textos agora reunidos no Antigo Testamento.

No início deste processo de crescimento está a palavra falada e transmitida oralmente. As histórias vivas e coloridas sobre os patriarcas, p. ex., foram, com certeza, contadas e recontadas através de muitas gerações antes de serem fixadas por escrito. Neste transcurso, naturalmente, também alteraram, amiúde, sua forma, assumindo novos traços característicos enquanto que outros perderam sua importância para uma geração nova. Ou ainda, vejamos as palavras dos profetas: foram pronunciadas em uma determinada situação histórica e depois transmitidas, também, oralmente antes de alcançarem sua forma literária final.

Algo semelhante também sucedeu com os textos restantes do Antigo Testamento. Somente aos poucos formaram-se coleções menores ou maiores de textos congêneres ou da mesma origem. O resultado final desta história movimentada são os diversos “livros” do Antigo Testamento, na forma como atualmente os encontramos na Bíblia.

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A história do Antigo Testamento se estende desde a imigração dos israelitas na Palestina, no século XIII a.C., até os últimos séculos antes da era cristã.

Os textos mais antigos são, com freqüência, cânticos ou ditos que facilmente se gravaram na memória e que, por isso, se conservaram por muito tempo. Um exemplo é a “canção de vitória” de Miriam, em Êx 15.21, que canta a destruição dos egípcios no mar. Outro é a canção de Lameque, em Gn 4.23-24, uma “fanfarronada” que fala de cruel vingança de morte; ou, então, a “canção do poceiro” em Nm 21.17-18, que se deve imaginar cantada durante a cavação de um poço. Mas também canções mais extensas, como p. ex., a magnífica canção de Débora em Jz 5, provêm de tempos muito mais remotos.

Tradições muito antigas estão conservadas também sob a forma de provérbios populares, como ocorre em toda parte do mundo. Citam-se tais provérbios explicitamente diversas vezes (p. ex. 1Sm 24.14; Ez 16.44), e ainda em muitas outras passagens podem ser descobertos durante a leitura. Os provérbios foram especialmente cultivados no Antigo Israel, quando, após a faina diária, as pessoas se reuniam junto ao portão. Os provérbios alcançavam forma artística na corte real, conforme relatam notícias do tempo de Salomão (1 Rs 5.11-12).

Já em tempos antigos passou-se a colecionar estes provérbios e cânticos. Prova disso são algumas passagens em que se citam tais coleções, das quais, porém, nada mais sabemos. Assim é mencionado, em Js 10.13 e 2Sm 1.18, o “livro do valente”, e em Nm 21.14, o “livro das guerras de Javé”.

Porém, desde os tempos mais antigos, circulavam também contos. Exatamente como em outros povos, trata-se, sobretudo, de “sagas” (lendas) que falam dos acontecimentos e vultos da história primitiva de Israel. O termo “saga” expressa que esta não é motivada por interesse histórico, querendo fixar exatamente a seqüência dos eventos. A saga apresenta em cores vivas o que é o característico da época e dos respectivos personagens, conforme se conservou vivo na consciência do povo. Por isso, as sagas são mais do que simples contos de eventos passados. Nelas o passado está presente como parte integrante da própria história daqueles que as narram e ouvem. Reconhecem, naquilo que Abraão, Jacó e Moisés experimentaram, uma representação de suas próprias experiências que tiveram e ainda têm. Israel entende sua história sempre como a história com Deus. E como Ele agiu com os patriarcas, livro a geração posterior do Egito e a levou para a terra prometida, assim Deus está agindo com seus povo em todos os tempos. Deste modo, estas sagas representam, com toda a sua vivacidade narrativa, muitas vezes, uma profunda profissão de fé.

Uma historiografia propriamente dita existiu em Israel mais ou menos desde o tempo de Davi. Ocupa-se, principalmente, com acontecimentos políticos. Assim, acham-se descritos, no 1º livro de Samuel, a origem do reinado e a ascensão de Davi; no 2º livro de Samuel trata-se da consolidação e expansão do reino de Davi e das tramas em torno do problema da sucessão no seu trono. Os livros dos Reis apresentam, a seguir, o governo de Salomão como o último período glorioso do Reino Unido, bem como a divisão em um Reino do Norte e um Reino do Sul e a queda paulatina até o fim total da existência política independente do povo de Israel.

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As sagas do Antigo Testamento têm muitas vezes uma intenção explicativa específica. Fala-se, nesse caso, desagas etiológicas (do grego aitia, causa). Assim, p. ex., a narração da queda dos primeiros seres humanos quer explicar a origem dos distúrbios na vida humana. A sinistra inimizade mortal entre o ser humano e a serpente, os incômodos de maternidade da mulher, aliás, em tensão misteriosa com sua inclinação para o marido, e a fadiga do trabalho do ser humano são as conseqüências da primeira desobediência humana a Deus (Gn 3.14-19). A narrativa da construção da torre de Babel (Gn 11) responde à pergunta pelo motivo da divisão da humanidade em uma pluralidade de povos e línguas tão diferentes. Outras sagas etiológicas explicam a peculiaridade de tribos e povos, conhecidos de Israel por serem seus vizinhos. A posição subalterna dos aborígenes cananeus não expulsos pelos ismaelitas é explicada como conseqüência de uma falta grave do pai, Canaã (Gn 9.25). A natureza selvagem e agressiva dos beduínos ismaelitas é atribuída, na saga, ao comportamento rebelde de sua mãe, Hagar (Gn 16.12) etc.

Freqüentemente, essas sagas etiológicas também querem explicar determinados nomes. Para este fim, faz-se uso de trocadilhos de palavras hebraicas, dificilmente traduzíveis para o vernáculo. No nome Isaque, em hebraico, ressoa a palavra “rir” (Gn 21.6); o nome de Jacó se assemelha ao som das palavras “calcanhar” (Gn 25.26) e “enganar” (Gn 27.36); o nome Israel é interpretado como “o que luta com Deus” (Gn 32.29[28]). Tais etiologias encontram-se a cada passo e mostram a intenção destas sagas de interpretar e compreender seu passado.

Uma forma especial de saga etiológica constituem os textos que tencionam justificar a santidade de um lugar. Assim exclama Jacó, após o sonho da escada ao céu: “Quão temível é este lugar! Aqui é a casa de Deus (Bet-El)!”, e erige lá um santuário (Gn 28.17ss). Por causa desta aparição da divindade em sonho, portanto, o lugar é sagrado. Algo semelhante ocorre com os santuários de Manre, onde três homens aparecem a Abraão (Gn 18), e de Peniel, onde Jacó teve que travar uma luta noturna (Gn 32.25ss).

Já em tempos mais remotos, “ciclos de sagas” formaram-se de várias sagas individuais que tratavam das mesmas pessoas. Assim, as ocorrências que sucederam entre Abraão e Ló foram contadas numa seqüência narrativa (Gn 13; 18-19); igualmente existia um ciclo de sagas de Jacó e Esaú (Gn 25.19ss; 27; 33), e outro de Jacó e Labão (Gn 29-31). Nestes dois últimos, pode-se ver nitidamente qual o processo que levou a estas coleções maiores. Os dois ciclos que tratam de Jacó foram estreitamente ligados entre si. Embora contivessem material muito heterogêneo, os narradores conseguiram plasmar uma imagem completa do personagem Jacó. Nisto se revela uma arte de contar mais desenvolvida. Sob aspectos literários, quase se poderia chamar este conjunto de “novela”. Ainda mais evoluída é a forma artística na história de José. Traço a traço é reconstituído o destino de José. Contudo, não se fala exclusivamente de José; entram em cena também diversos atores coadjuvantes. O resultado é uma contextura artística d vários fios magistralmente entrelaçados pelo narrador.

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Além de ditos, cânticos e sagas, foram transmitidas, desde os primórdios de Israel, também leis das mais diversas espécies. O seu conteúdo é muito abrangente: vai desde a exigência de adorar exclusivamente o Deus único até a regulamentação do dever de restituição em casos de danos causados por um animal; do mandamento do amor ao próximo até as prescrições exatas sobre o vestuário dos sacerdotes.

Mediante critérios externos e internos podem ser distinguidas, claramente, diversas classes de leis. Em primeiro lugar, há disposições que começam por “se” e expõem um “caso” com precisão (p. ex. Êx 21.18ss). Essas leis “casuísticas” tratam de casos litigiosos da vida diária e se destinam para o uso na comunidade judicial. Esta se reunia na praça junto ao portão sempre quando era preciso julgar um processo. Juízes profissionais não os havia, mas essa função era exercida pela totalidade dos cidadãos plenos, que também tinham direito a voz e voto. Ajuda importante neste julgamento representavam as sentenças casuísticas, que eram transmitidas de geração a geração. Um exemplo vivo de como funcionava a comunidade judicial encontramos no cap. 4 de Rute.

De natureza bem diferente são as sentenças que simplesmente expressam um mandamento ou uma proibição sem quaisquer condições ou restrições: “tu farás” ou “não farás” (p. ex. Êx 20.2ss). Este direito “apodítico” tem sua origem na esfera do culto. Era recitado de forma solene no culto, provavelmente por ocasião de uma festa que lembrava a renovação da Aliança entre Deus e o povo, estabelecida no monte Sinai. E nesta ocasião eram recitadas as leis apodíticas – especialmente o “Decálogo” – como sendo manifestação da vontade divina que estabelece esta Aliança.

O “direito casuístico” é congênere, segundo sua forma e seu conteúdo, ao direito usado em todo o Antigo Oriente; o paralelo mais interessante, com correspondências parcialmente literais, oferece o Código babilônico de Hamurábi (por volta de 1700 a.C.).

O “direito apodítico”, por outro lado, é genuinamente israelita; é compreensível somente a partir da peculiaridade da fé veterotestamentária e pertence a seus elementos mais antigos. Ambos os gêneros legais se fundem no Antigo Testamento.

 Outra espécie de norma legal ocupa-se com questões que afetam o culto. Assim, p. ex., são descritos minuciosamente os rituais que fazem parte do ato de sacrifício (Lv 1-5), são compilados, para uso por parte do sacerdote, detalhes técnicos sobre como oferecer o sacrifício (Lv 6-7), ou sobre pureza e impureza ritual ( Lv 11-15). Estes textos formam a base da instrução sacerdotal dos leigos sobre assuntos cultuais. Em geral, porém, provêm de épocas mais recentes do que as leis casuísticas e apodíticas.

No Antigo Testamento, as diversas leis foram conservadas em uma série de coleções. A mais antiga é o “Código da Aliança” (Êx 20.22-23.19). Reúne em si leis apodíticas e casuísticas. O Deuteronômio contém, igualmente, muitas leis antigas nos caps. 12-26, que foram entremeadas e ampliadas por frases explicativas e exortativas: aqui a lei é pregada! Uma coleção semelhante, todavia com determinações preponderantemente cúlticas, encontramos também na “Lei de Santidade” (Lv 17-26). Sua exigência básica está resumida na sentença: “Santos sereis, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (19.2). Finalmente, os caps. 1-16 de Levítico reúnem diversas coleções menores com disposições rituais.


Fonte: A formação do Antigo Testamento, ROLF RENDTORFF

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