quarta-feira, 5 de julho de 2017

Panorama do dogma Católico - Pe. Monsabré

Meus senhores; da ideia primordial e fundamental de ser fluem duas ideias que em todos os tempos preocuparam vivamente o espírito humano, e que foram o objeto das suas mais levantadas e constantes aspirações; a ideia do infinito e a ideia do finito. Não há doutrina filosófica nem religiosa, cujos artigos não possam agrupar-se em roda desta simples proposição: Dados estes dois termos, finito e infinito, explicar as suas relações. Com efeito, a vida humana, a vida do mundo inteiro, depende da solução deste problema. Os mesmos que se gloriam de não lhe ligar importância, veem-se colocados diante dele, impelidos pela força invencível das ideias que são como que o fundo do nosso espírito, e pelas aspirações que nos estimulam a conhecer o que somos e a determinar o nosso lugar, as nossas funções e os nossos destinos na universalidade dos seres.

Às questões: o que é o infinito? O que é o finito? Quais as suas relações? Nós respondemos com sistemas, a Igreja católica responde com o seu símbolo, e, independentemente dos sinais externos que as impõe ao obséquio da nossa fé, as soluções que a fé nos subministra são tão evidentemente divinas, que eclipsam todas as soluções inventadas pela nossa inteligência.

Mas não nos antecipemos, nem deduzamos conclusão alguma antes que o aspecto geral do dogma católico haja produzido o seu efeito em nossas almas. Humilde guarda deste esplêndido edifício, quero que, antes de tudo, admireis o seu conjunto; depois comunicaremos reciprocamente as nossas reflexões.

O infinito é Deus, ser primário, necessário, real, pessoal, subsistente em si mesmo e por si mesmo, tendo na sua mesma essência a razão suficiente do seu ser, bem como a razão suficiente do ser de todas as coisas. Só ele é Deus; não há nem pode haver outro. O seu ser, a sua essência, a sua substância, a sua natureza, a sua existência, a sua vida, os seus atributos, as suas operações são um mesmo ato: ato tão simples, tão puro, que nem o podemos conceber, nem exprimir. Se chamamos a Deus o Ser Vivo, o Forte, o Todo-Poderoso, o Senhor, o Eterno, o Altíssimo, estes nomes são realmente verdadeiros, santos terríveis, admiráveis; mas nem cada um deles de per si, nem todos simultaneamente exprimem a plenitude da verdade, e da santidade, e da majestade, e da beleza que constitui o ser divino. Com uma palavra, cujos abismos profundos em vão tentamos sondar. Deus se definiu a si mesmo: Eu sou o que sou. Ego sum qui sum ; o ser na sua mais transcendente e incompreensível expressão. Se o comparais à multiplicidade dos seres, está presente em todos os lugares sem se dividir. Se o comparais ao tempo, é eterno sem que os instantes o meçam nem se sucedam em seu seio.

Não tem faculdades que o distingam da sua substância, e é por isso que opera com uma perfeição infinita, e nada adquire nas suas operações. Sabe tudo que é, e tudo que não é; tudo que pode ser, e tudo que será. A verdade não aparece n’Ele como em límpido espelho que reflete; mas Ele é a verdade mesma . A sua ciência não é causada pelo que existe, senão tudo que existe é causado pela sua ciência ; ciência eterna, imutável, simultânea, direta, imediata, que não pode nunca se enganar. A sua vontade é soberana, mas duma soberania absoluta. Nada há que possa dobrá-la ou torná-la mutável; ainda mesmo que, cedendo às nossas orações, modifique as suas obras, os seus decretos permanecem imutáveis ; previra tudo. É livre no meio da instante necessidade. Não tem outra medida além do seu poder, e o seu poder é sem medida.

É sábio, e como vê todas as coisas num só princípio, ordena todas as coisas a um único fim: Ele mesmo; todos os meios se combinam harmonicamente sob a sua direção; nem a ignorância nem a má vontade alteram os seus desígnios.

É Santo, não duma santidade adquirida com esforço e trabalhada, que não se pode conservar nem aumentar senão à custa dos mais rudes sacrifícios, mas duma santidade tranquila, inalterável, plena, essencialmente isenta de todo o mal, e constantemente manifestada pelo amor invariável e eficaz de toda a retidão e de todo o bem.

É justo, e, na imensa variedade de direitos que parecem se contradizer, dá a cada um o que lhe pertence. Não há merecimento que não premie, nem falta que não castigue. Os nossos cálculos mesquinhos não podem se enganar pelas dilações da sua paciência; mas em nada se altera a perfeita integridade da sua justiça que será plenamente realizada nas derradeiras conclusões do seu governo.

É Bom, não só porque é o bem supremo, mas porque sendo o bem supremo, deseja comunicar-se, e liberalizar do seu ser e das suas perfeições benefícios constantemente renovados, e compadecer-se de todas as misérias tanto quanto o permite a sua inalterável natureza.

É, alfim, perfeito, e, por mais perfeito que o concebamos, nunca poderemos assinar limites à sua perfeição. É o Infinito!

Este infinito, senhores, vive, não essa vida comum a todos os seres vivos e que parte de dentro para fora; mas uma vida sem igual cujo movimento parte de dentro e termina dentro; uma vida em que as origens dependem dos princípio, sem que possa afirmar-se que aquelas são posteriores a estes; uma vida que multiplica o número sem quebrar a unidade, as pessoas sem multiplicar a natureza, a família sem dividir nem aumentar a substância. Não mais que um infinito; e todavia são três, Padre, Filho e Espírito Santo, três que subsistem numa mesma essência, e existem com uma mesma existência: as três pessoas são Deus e portanto um só Deus. Eis o dogma dos dogmas, o mistério dos mistérios. Explicá-lo é impossível: ouso apenas narrar o que admiro.

O Pai inacessível é o princípio do movimento vital, a origem da família divina. Vê-se a si mesmo, manifesta a si mesmo a sua perfeição, e o ato pelo qual se vê e se conhece é tão perfeito, que subsiste por isso mesmo que é produzido. O Filho é gerado. Chama-se Verbo, imagem do Pai, esplendor da sua glória, figura da sua substância, porque representa com toda a perfeição possível o princípio donde procede. São dois, contemplam-se, admiram-se, amam-se, e estes dois amores comunicando-se um ao outro encontram-se, e pelo fato de se encontrarem, subsistem num só amor; é o Espírito Santo. Chama-se dom, caridade, bondade, benignidade, suavidade, unção divina.

São três: Padre, Filho, Espírito Santo: distintos pelas relações, pela subsistência, pelas propriedades pessoais; idênticos pela essência, pela substância, pela natureza. Distintos, e toda via um existe no outro; dependentes pela origem, porque o Filho é gerado pelo Padre, o Espírito Santo procede do Padre e do Filho; dependentes pela missão, porque o Padre envia o Filho, o Padre e o Filho enviam o Espírito Santo. Mas, não obstante tudo isto, as três divinas pessoas são perfeitamente iguais. Oh! Vida! Oh! Processões admiráveis! Não se pode dizer que começam, porque são necessárias e eternas; não se pode dizer que saem fora de Deus, porque são imanentes; não se pode dizer que mudam a natureza divina, porque são tranquilas e imaculadas; não se pode dizer que diminuem ou dividem as perfeições, porque são indivisíveis. No seu movimento espontâneo há tanta ordem, tanta beleza, tanta glória e tão acabado cúmulo de todos os bens, que tornam Deus, ser supremo, o supremo bem-aventurado. Oh! Infinito! Eu te admiro cheio de assombro, eu te adoro com o mais profundo respeito!

Eis o infinito, senhores; mas donde está o finito? Procuremo-lo desde já na sua origem eterna. O finito está no infinito, e pode dizer-se que a primeira relação que tem com ele, é o ser conhecido, visto, ordenado por ele, antes de subsistir fora dele. Não podemos dar ao finito o seu nome próprio em quanto permanecer em estado de ideia; porque esta ideia é, substancialmente, a mesma essência divina, e formalmente o que Deus quer manifestar da sua essência na sua obra, por participação e imitação. Unido a esta ideia há um decreto eterno, livre, eficaz, donde depende a existência de todas as coisas. O que é que insta pela execução deste decreto? É a beleza dos mundos que Deus concebe? Arrebatado pelas sublimes harmonias das coisas que vê em si mesmo, julga porventura adicionar algo à sua felicidade fazendo-as passar da ideia à realidade? Não, senhores. Deus seria sempre o supremo bem, ainda que tivesse conservado eternamente no seu seio todos os seres. Mas Deus é bom e deseja comunicar-se porque é o soberano bem; o seu amor impele-o a associar outros seres à sua felicidade: Vai criar.

Vai criar! E dando a outros a existência nada perderá da sua própria. Vai criar! E comunicando o seu ser e a sua perfeição, nem aquele nem esta perderão algo. Vai criar! E por mais que prodigalize os frutos da sua bondade e da sua onipotência, não se confundirá com eles, nada adquirirá deles, será sempre tudo sem eles, e eles nada serão sem Ele.

Criou! Povoa-se o céu, o espaço imenso abre o seu seio, o tempo começa. O Verbo, palavra de Deus, produz o mundo. E a cada palavra que pronuncia sucedem-se os seres, como ondas harmoniosas, cujo movimento, e vida, e beleza, e glória se engrandecem até tocar os limites do mundo angélico. O número, o peso, a medida, distribuem, regulam, determinam todas as perfeições sobre a escala progressiva que une em formoso conjunto estes dois polos da criação: a matéria e o espírito. Que distância entre o grosseiro elemento sujeito a leis inflexíveis e as inteligências puras, cujos coros harmoniosos recebem uns dos outros os raios do eterno Sol!

Mas nesta distância não há abismo algum que não esteja povoado.

As substâncias incorpóreas de que Deus rodeou o seu trono, superiores ao mundo visível pela perfeição da sua natureza e das suas operações, decrescem e diminuem em perfeição desde o mais abrasado serafim até ao mundo dos anjos, aproximando-se das criaturas sobre as quais devem exercer a sua alta e salutar missão. Por outra parte, o átomo saído dos confins do nada, sobe sem cessar transformado sucessivamente pelo movimento e pela vida, até unir-se imediatamente com o espírito, e até ligar e completar num só ser a perfeição do finito.

Este ser, depois de cuja aparição Deus exclama: Todas as coisas são boas, perfeitamente boas, cuncta sunt valde bona, é o homem, laço maravilhoso, concorrência sublime de todas as vidas. Os seus pés estão fixos na terra, mas a sua fronte levantada olha para o céu. É matéria como o mundo que tem sob os seus pés; mas é também espírito como os anjos que descem até ele. Gravita, vegeta e sente; mas também pensa e quer; é livre, conhece a verdade e ama o bem. É medido pelo tempo e pelo espaço, mas participa do eterno, do necessário, do universal, do inteligível. Recebe as impressões do mundo inferior, mas transforma-as, e faz pensar e orar nele todos os seres de que é rei e pontífice. Contempla as coisas que passam, e sente-se arrastado por suas correntes; mas também alimenta em seu coração o desejo e a esperança certa da imortalidade.

Sua imortalidade é a vida no infinito, porque, entendei-o bem, senhores, Deus não abandona o homem aos caprichos do azar e à mercê dum cego destino; convida-o para o seu seio, e para o levar a si, respeitando o seu livre alvedrio, cobre-o com a sua providência, senhora de todos os seus movimentos, que excita com soberana autoridade, e dirige com arte infinita, e o faz caminhar para o fim supremo, onde se consuma juntamente a glória do Criador e a felicidade das criaturas. Deus eleva este fim supremo, por um dom gratuito da sua bondade, acima de todas as legítimas exigências da natureza. Quer ser conhecido, amado, possuído, não nas representações sempre incompletas da sua infinita beleza, mas face a face, tal como é, em todo o esplendor da sua glória e em toda a perfeição da sua essência. Oceano sem praias, quer que a alma humana se engolfe em suas ondas luminosas, para a inebriar com as suas castas e eternas delícias.

Mas para que esta união se possa realizar, é necessário que a natureza sofra aqui uma transformação que a prepare para a sua transformação suprema. A inteligência, o amor, a liberdade, a imortalidade, imagem e semelhança de Deus, não bastam para que o homem, atravessando todas as esferas do infinito, seja um dia consumado no infinito e como que participante da sua vida bem-aventurada. Vem, pois, princípio de toda a vida, de toda a felicidade, vem e faze que a criatura se assemelhe a ti tanto mais, quanto és tu o mesmo que a animas com a graça. A graça, semente misteriosa que transforma o homem num novo ser; a graça, inefável geração que permite ao homem dizer a Deus: “Meu Pai”, porque se torna participante da natureza divina; a graça, dom sobrenatural que penetra a alma e torna imediata e formalmente justa, santa, agradável a Deus, capaz de merecer por suas obras a visão e a posse da eterna beleza; a graça, princípio e raiz de hábitos e de operações divinas; a graça, força, luz, rio sagrado que vai diretamente ao oceano da perfeição; a graça, habitação de Deus na alma; a graça, começo da glória e da eterna beatitude.

Oh, senhores, que fecunda doutrina! Não vos parece que resolve desde já com esplendor incomparável, estas questões que nos torturam: Que é o infinito? Que é o finito? Quais as suas relações? O infinito é o Deus perfeito, autor, motor e consumador de todas as coisas, o finito é a criatura de Deus, essencialmente dependente, não só na sua origem e nos seus movimentos, mas também nos seus destinos. A suma das soluções parece completa, e entretanto, senhores, vós os sabeis, o dogma católico contém outras afirmações que, sob as misteriosas dobras das que acabais de ouvir, mais se aproximam da nossa miséria.

A nossa miséria é o pecado. Começou nos céus pela revolta dos espíritos orgulhosos que pretendiam igualar-se ao Altíssimo, entrou, pelas sugestões destes malditos, na humanidade cuja glória e felicidade invejavam. O pai dos homens perdeu livremente a graça da salvação espiritual e corpórea, bem como os privilégios que devia transmitir aos seus descendentes; e desde então nascemos deserdados e feridos de morte. A nossa fronte despojada do seu diadema inclina-se tristemente sobre a natureza ingrata e rebelde ao nosso domínio; o mundo exterior esforça-se por nos atrair a si; a nossa carne revolta-se contra as altas e puras aspirações do nosso espírito; a nossa liberdade esmorecida rende-se e capitula nesta luta; o dever traído acusa-nos; de justos, felizes, impassíveis e imortais que éramos, tornamo-nos pecadores, miseráveis, condenados ao sofrimento e à morte.

E Deus podia deixar-nos neste estado para satisfazer a sua justiça, podia exercer a sua bondade sobre seres novos e fazê-los entrar gloriosamente no seu plano primitivo contra o qual nos revoltamos. Mas não; a vitória do pecado seria aniquilada pela perfeição divina. Surge um novo plano; não disse bem, senhores, devia dizer: revela-se um desígnio oculto e completa as manifestações da bondade de Deus sobre as criaturas, porque o pecado estava previsto e a economia da redenção decretada nos eternos conselhos. O Verbo Divino, querendo unir-se ao finito para nos fazer compreender a harmonia das perfeições divinas – a sabedoria, a onipotência, a justiça e a misericórdia -, tinha empenhado, desde toda a eternidade, a sua palavra ao Pai celestial.

No mesmo tempo em que o gênero humano se tornava prevaricador, Deus lhe revelava o complemento da sua obra fazendo-lhe aparecer, no futuro das idades, a figura radiante do Verbo encarnado. Os séculos, os espaços, os homens, o mundo, tudo se ordena a Ele. A graça do renascimento e da salvação, que deve substituir a graça original perdida para sempre, depende dos seus merecimentos. À questão: quais as relações entre o infinito e o finito? Foi necessário responder desde então: O finito é purificado, regenerado, santificado, divinizado pelo infinito, vivendo com ele numa só pessoa, Jesus Cristo, Filho único de Deus, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Quarenta séculos de preparações precedem o seu nascimento. As tradições, os oráculos, as maravilhas, os desejos, as virtudes, os crimes, as revoluções, as catástrofes convergem para o seu berço, e quando veio a plenitude dos tempos, o Espírito Santo fecunda, pelas suas castas operações, o seio duma Virgem, e o coro dos anjos canta no céu: Ó terra, eu te anuncio uma grande alegria, hoje nasceu o Salvador do mundo. O Verbo encarnou. “Comércio admirável! Exclama a Igreja, o Criador do gênero humano assume um corpo como o nosso, e nascendo milagrosamente duma Virgem comunica-nos a sua divindade” .

Com efeito, senhores, a Encarnação do Verbo revela-nos o duplo mistério do infinito abatido até à nossa miséria, e o mundo divinizado pela mais íntima união que pode se conceber. Não se trata desse concurso universal que o Senhor da vida presta às criaturas, nem da união moral que se estabelece entre Deus e o justo, cheio de graça; não se trata da confusão de duas substâncias que se penetram para formar uma nova substância, nem da ação circunscrita, transitória, intermitente dum espírito superior sobre um espírito inferior, como na inspiração profética; mas sim da mais perfeita das uniões que Deus pode realizar com uma criatura; trata-se da união profunda, contínua, permanente, sublime, incompreensível da natureza divina com a natureza humana; união que, segundo a expressão do Apóstolo, resume todos os mundos, torna divinas, infinitas, no sentido mais estrito e completo, todas as ações duma natureza finita; união que permite a um filho do homem dizer a um Deus o que lhe diz o Pai que o gerou desde toda a eternidade: Meu filho. União, alfim, em virtude da qual o gênero humano tem direito de dizer ao Filho de Deus: Somos teus irmãos.

Nasceu este amável e pequenino irmão, e, ainda que no seu pobre presepe nos oferece a imagem da maior debilidade e da mais profunda indigência, é rico e possui todas as perfeições. A sua alma, banhada na luz que é a nossa bem-aventurança, vê todos os segredos divinos, a sua ciência não tem aurora, e entretanto parece crescer em sabedoria ao passo que cresce em idade. É a inteligência suprema, e entretanto não quer ensinar ao mundo senão o que o seu Pai lhe ensinou. Vive no meio dos seus, e os seus não o reconhecem, entretanto passa fazendo o bem; a sua onipotência é a humilde serva do seu amor. Está engolfado nas delícias da união divina, entretanto digna-se assumir as nossas misérias, mesmo até a semelhança de pecado. Foi por causa desta semelhança que o Deus que o ama como a si mesmo o fere sem piedade. Sofre, chora, geme, queixa-se, enchem-no de ignomínias, sua sangue por todos os poros do seu corpo sacrossanto, é cravado numa cruz infame; morre amaldiçoado e desonrado: Consummatum est: Tudo está consumado. As perfeições divinas brilham no coração martirizado do Filho de Deus, como um fogo amortecido, desde largo tempo, pelos nossos crimes; a sabedoria e a onipotência, reveladas por obras indizíveis, conciliam a justiça e o amor compassivo; o gênero humano está salvo, e Jesus Cristo, seu Salvador, é para sempre o seu Senhor, o seu rei, a sua vida.

Assim como Deus não abandona o mundo que criou, assim também o Homem-Deus não deixa entregue aos seus caprichos o mundo que regenerou. Governa-o, é o seu reino, reino cujos elementos preparou durante a sua vida mortal, e ao qual pôs o selo do Espírito Santo; vivifica-o, é o seu corpo. Ainda que sentado no céu à direita de seu Pai, Jesus Cristo está presente na sua Igreja. A soberania e a autoridade infalível do Chefe está representada nesta Igreja santa, católica e apostólica; e a torrente purpúrea do seu sangue corre de forma superabundante na mesma Igreja. Jesus Cristo informa os nossos passos no caminho da verdade e da lei, enquanto que invisivelmente nos comunica, como a cabeça aos membros do corpo, as correntes da vida. Anima-nos, comunica-nos a plenitude da graça, apodera-se do princípio das nossas ações, das nossas próprias ações, transforma-as, apropria-se delas e imprime-lhes o selo da divindade. Somos n’Ele um mesmo corpo, cujos membros estão, dum modo sublime, numa perpétua comunhão de orações, de boas obras e de merecimentos; do céu à terra, da terra aos abismos onde os justos esperam a hora do seu resgate.

Por meio de sinais sensíveis, sagrados e eficazes, Jesus Cristo, cabeça da humanidade cristã, chama a si os seus membros, e dá-se-lhes a conhecer. Uma matéria humilde se une às palavras, e eis o sacramento; a vida divina precipita-se na alma desde que o sinal se põe em contato com o corpo. Um sacramento faz-nos nascer para a graça, outro nos comunica os encantos e o vigor da adolescência espiritual. Um sacramento nos alimenta, outro nos purifica das nossas faltas, um outro apaga as culpas até às últimas relíquias, e nos prepara a entrada tranquila na eternidade. Um sacramento dá à sociedade espiritual o seu chefe, o seu rei: o sacerdote; um outro santifica as fontes da vida, e enche a sociedade temporal de famílias segundo o coração de Deus.

São sete como as cores da luz, sete como as notas da música; mas o sacramento central onde real e substancialmente reside o eterno Sol, o Verbo por meio do qual Deus canta as suas perfeições infinitas, ordena a si todos os outros, já como preparação, já como simbolismo. A Eucaristia é como que a nota dominante que modula a escala misteriosa dos signos divinos.

Assim é que chegamos ao termo da nossa peregrinação sobre a terra; ainda ali se nos apresenta o Homem-Deus, Jesus Cristo. É Ele o vencedor da morte; o Sol da vida que projetará a sua luz até ao fundo de todos os sepulcros humanos, reunirá o pó disperso dos nossos corpos e lhe comunicará a virtude da própria ressurreição. É ele que nos ensinará a cantar esta formidável sátira das supremas derrotas da morte: O mors, ubi est victoria tua? O mors, ubi est stimulus tuus? Ó morte, onde está tua vitória? Ó morte, onde está o teu aguilhão? Ele presidirá ao nosso juízo e pronunciará a nossa sentença, levará aos céus os benditos de seu Pai, e condenará os malditos aos suplícios eternos. Ele reunirá num lugar todas as gentes espalhadas pela superfície da terra, para uma palingenesia gloriosa, revestirá suas almas duma luz indefectível e torná-las-á dignas moradas, e para sempre, dos nossos corpos ressuscitados e imortais. Ele entoará este grito triunfal, eternamente repetido pelos inumeráveis exércitos dos escolhidos. Louvado seja Deus: Alleluia.

Eis aqui, senhores, todo o dogma católico. Recolhei-vos por instantes, eu vo-lo suplico, antes de ouvirdes as conclusões que vou deduzir da consideração deste maravilhoso conjunto. Prometo-vos que será breve.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

São Jerônimo e a Virgindade de Maria

Por Emmanuel-Marie O.P.

Encontramos já no final do quarto século um certo Helvidius atribuindo outras maternidades à Virgem. Segundo ele, Maria deixou de ser virgem após o nascimento de Jesus.

Não se conhece as elucubrações deste Helvidius a não ser pela refutação feita por São Jerônimo no tratado chamado Adversus Helvidium, e através de menções que ele fez em seu comentário ao primeiro Evangelho.
Explicando, por exemplo, o texto de São Mateus 13, 55-56 (“Não é este o filho do carpinteiro? Não é Maria sua mãe? Não são seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas?”), São Jerônimo declara: “Em Jesus Cristo, eles (os judeus, e depois os hereges) viam apenas um homem, e pensavam que ele era filho de um carpinteiro. Vos espanta que eles se enganassem sobre os irmãos quando se enganam sobre o pai? Esta questão foi exaustivamente exposta em meu opúsculo contra Helvidius”[1]

E, um pouco antes, no verso “Eis aqui minha mãe e meus irmãos” (Mt 12, 49), ele afirma: “É minha mãe quem me gera a cada dia na alma dos fiéis, são meus irmãos quem faz as obras de meu Pai. Portanto, Jesus não negou sua mãe, como pretendem Marcião e Manes para que se pudesse crer que o que nasceu foi um fantasma, mas ele colocou os seus apóstolos antes da parentela para que nós também, quando tivermos que colocar as afeições na balança, prefiramos o espírito em relação à carne. Tua mãe e teus irmãos te procuram. Alguns, baseando-se em divagações dos apócrifos (sequentes deliramenta apocryphorum), supõem que o Senhor tinha irmãos, filhos de José com uma outra esposa, e imaginam uma certa boa mulher chamada Escha (quandam Escham mulierculam configentes). Mas, e sobre isto trata nosso trabalho contra Helvidius, nós compreendemos que estes irmãos do Senhor não eram filhos de José, mas os primos e primas do Salvador, filhos de Maria, tia materna do Senhor, que é a mãe de Tiago o Menor, José e Judas, assim como vemos em outra passagem do evangelho[2]. Os primos são chamados de irmãos, coisa que toda a Escritura demonstra[3]”.

1 — Adversus Helvidium, PL 23, 188 a, 196 c.
2 — Voir Mc 15, 40 et par. ; Jn 19, 25.
3 — Commentaire sur saint Matthieu, Sources Chrétiennes 242, p. 262-263.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Maria permaneceu sempre virgem

Por Irmão Emmanuel-Marie O.P., Le sel de la terre nº 41

É impossível que Jesus tenha tido irmãos e irmãs no sentido estrito da palavra, uma vez que os Evangelhos afirmam claramente a virgindade perpétua de Maria, sua mãe, e que este é um dogma de fé atestado desde os primórdios da Igreja através do consentimento unânime de toda a Tradição.
Mateus afirma que Maria concebeu pelo Espírito Santo [antes] de viver junto com José (Mt 1, 18), afirmando que ainda não haviam se conhecido (no sentido conjugal) [até que] ela deu à luz um filho (Mt 1, 25). Mas estas observações escritas para enfatizar o milagre da intervenção divina na concepção de Jesus não implicam que Maria e José a partir de então viveram o caminho comum dos casados e que Maria teve outros filhos. O reconhecimento de determinado estado antes deste ou aquele evento não implica, por si só, que deve ser outro o estado após este evento.

Ademais, se compararmos os vários textos do Evangelho relacionados com a concepção e nascimento de Jesus, fica claro que Cristo era seu único filho.

No relato da Anunciação, a Virgem objeta ao anjo que lhe fez o anuncio: "Como se fará isso, pois não conheço homem?" (Lc 1, 34). Esta bem formulada pergunta pressupõe que Maria deseja a todo preço permanecer virgem. E isso é tão verdadeiro que, para descartar esse incômodo argumento, alguns críticos não hesitaram em rejeitar a autenticidade deste verso [COMENTÁRIO MEU: Assim como alguns rejeitam a autenticidade de versos que atestam a Divindade de Cristo. Eles pressupõem que milagres não podem acontecer e já descartam este fato, assim como ALGUNS protestantes pressupõem erroneamente que isso seria exaltar demasiadamente Maria, e já descartam qualquer obra que Deus tenha feito em sua vida].

Por outro lado, o texto da Infância de Cristo, especialmente o episódio do reencontro de Jesus no Templo (Lc 2, 40-52), mostra que havia apenas um Menino com Maria e José, doze anos após o nascimento em Belém. A lenda dos irmãos e irmãs de Jesus não se sustentam com os fatos.
Jesus ainda é chamado por seus compatriotas “o filho de Maria” (Mc 6, 3). Se abstrairmos as razões providenciais para esta expressão, que sublinham a ausência de paternidade terrena e, portanto, a singular e miraculosa geração de Cristo, deve-se notar que esta pergunta é surpreendente no contexto antigo onde as afiliações eram feitas através de menções ao pai (Ex: Mt 16, 17; Mc 1, 19). Entretanto, esta referência justifica-se pela morte do pai e quando a viúva não tinha outro filho (Assim como o jovem falecido de Naim, que é designado como "filho único de sua mãe, que era viúva" Lc 7, 12). Esta expressão pode ser considerada como um indicativo de que, por um tempo considerável, Jesus foi conhecido em sua região como o único filho de uma viúva.
Finalmente, o fato de Jesus agonizante ter confiado sua mãe a João, e que, "dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa" (Jo 19, 26-27) só pode ser explicado se Cristo a tenha deixado sem irmãos carnais.

A expressão “seu filho primogênito”
Quanto ao termo “primogênito” (prwtovtokos) relatado por São Mateus (1, 25) e Lucas (2, 7), isso não implica que houve outros, ao contrário do que os críticos da virgindade perpétua de Nossa Senhora querem dizer. Significa apenas que Jesus era o primeiro filho de Maria e teve, portanto, de acordo com a Lei Mosaica, que ser apresentado ao Senhor e resgatado certo tempo após o nascimento (Num 8, 17; 18, 15-16).

Na Lei de Moisés, o termo “primogênito” significa simplesmente a primeira criança do sexo masculino “que abre a madre”, sem presumir a existência ou a esperança de outros. É uma tradução da palavra hebraica bekhor, que significa “primícia” (Ex 11, 5; Dt 15, 19; Nm 10, 36; LV 2, 14). Todos os primogênitos (esta lei inclui até mesmo os animais) “pertencem a Deus”, porque, diz o Senhor, "todo primogênito entre os israelitas, homem ou animal, é meu, eu os consagrei a mim no dia em que feri os primogênitos no Egito" (Nm 8, 17)

É sob esta mesma lei que os levitas foram “atribuídos” a Javé. Os levitas, de fato, foram “substitutos para aqueles que abrem a madre da mãe, o primogênito de todos”, eles “tomaram o lugar dos primogênitos dos israelitas” que Deus tinha reservado a si (Nm 8, 16-17; Nm 3, 45-51).
Fica claro, então, que é fazendo referência ao resgate legal que os evangelistas chamam Jesus de “primogênito” da Virgem. Entretanto, em relação a Cristo, o termo também evoca uma primogenitura de uma ordem diferente da carnal, bem superior a esta, sobre a qual São Paulo declara que Cristo é o “primogênito de toda a criação, pois nele que todas as coisas foram criadas” (Col 1, 15-16). “Primogênito dos mortos, [...] porque Deus quis habitar nele toda a plenitude da divindade” (Col 1, 18) e porque é, por sua própria ressurreição, “primícia” dos ressuscitados; “primeiro entre muitos irmãos”, isto faz referência a quem Deus predestinou para fazer imagem de seu Filho, os quais chamou, justificou e glorificou após seu Cristo (Rm 8, 29-30).

São Jerônimo, em seu comentário a Mateus 1, 25, dá a mesma explicação: “De acordo com esta passagem, diz ele, alguns suspeitam, o que é o cúmulo da perversão, que Maria também teve outro filho. Eles dizem se emprega o termo primogênito a quem tem irmãos. Mas as Santas Escrituras referem-se geralmente aos primogênitos não como aqueles que tiveram outros irmãos, mas ao primeiro nascido” (Saint Jérôme, Commentaire sur saint Matthieu, Livre I, dans : Sources Chrétiennes nº 242 (traduction Émile Bonnard), Paris, Cerf, 1977, p. 81-83.). Esta interpretação foi confirmada pela descoberta no Egito de uma inscrição judaica do reinado de Augusto: o epitáfio de uma mãe que morreu no nascimento de sua “criança primogênita” (prwtovtokou tevknou). É óbvio que nenhum outro poderia nascer da mãe morta (Ver o artigo do padre FREY em Biblica, 1930, p. 385-390.)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Aproveite!

"Não foi somente a imprensa católica que prestou tributo à santa vida e nobres propósitos do Papa morto. “Todos os homens que possuem verdadeira estima e honrem a santidade pessoal”, disse o The Times, “unir-se-ão à Igreja Católica Romana em seu luto pelo Pontífice perdido. A política de Pio X possui muitos críticos, e nem todos eles estavam fora da Igreja governada por ele, mas ninguém sequer questionou a transparente honestidade de suas convicções ou recusa-se a admirá-lo pelas suas virtudes sacerdotais. Vindo do povo, ele amou-os e compreendeu-os como somente um pároco pode fazer. Esse foi o segredo do..." Aproveite a promoção!


terça-feira, 2 de maio de 2017

Refutando as mentiras contra a Inquisição

Muitos tentam usar a Inquisição como um fator a ser pesado contra a Igreja Católica. Entretanto, a maioria dos que a usam ou são completos desconhecedores do assunto ou são falsários desonestos. Eis um texto interessante de Jacques-Marie-Louis Monsabré que demonstra a falsidade destas acusações:

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A Inquisição não pode ser uma arma perigosa contra o catolicismo, a não ser que provasse que a Igreja, abusando do seu poder legislativo e coercitivo, ordenara atos bárbaros e monstruosos, tão contrários à lei natural como ao espírito evangélico, e que deste modo errara gravemente na direção geral dos costumes cristãos. Para provar isto, os inimigos da religião obstinam-se em confundir a própria instituição do tribunal eclesiástico com o uso que dele se fez na Espanha, e, mercê a esta confusão, criaram e conservam uma multidão de prejuízos, que aparecem até no espírito daqueles que se dizem sinceramente cristãos.

Um exame sério e imparcial da Inquisição na Espanha destrói este processo desleal. Basta ler os decretos reais, para nos convencermos que a Inquisição Espanhola era um tribunal intimamente ligado com o despotismo político.

“Crê-se que o tribunal da Inquisição era puramente eclesiástico, diz Mr. de Maistre... É um erro. Era um tribunal puramente real; era o rei quem designava o Inquisidor geral, e este quem nomeava os inquisidores particulares com anuência do rei. O regulamento constitutivo deste tribunal foi publicado no ano de 1484, por Torquemada, de harmonia com o rei. Isto foi formalmente confessado pelas cortes ultra-liberais de 1812: ‘Os reis rejeitavam sempre os conselhos que lhes davam contra este tribunal, porque são em todos os casos os senhores absolutos de nomear, suspender ou reconduzir os inquisidores’. Assim, no seu testamento, Carlos V, muito autocrata, recomenda com instância a Inquisição ao seu sucessor, a fim de que possa cumprir os seus deveres de soberano”.

Depois de citar estes testemunho, Mgr. Hefelé acrescenta: “Os estatutos que, em 1484, foram dados à Inquisição, indicam de si a justiça dos assertos que acabamos de citar a respeito do caráter político da mesma Inquisição, e provam indubitavelmente, que era realmente uma instituição do Estado. Com efeito, encontram-se a cada passo as seguintes expressões: Suas Altezas(Fernando e Isabel) querem, ordenam; Suas Altezas perdoam; não é a vontade de Suas Altezas; tal é a ordem dos Príncipes sereníssimos; o Rei e a Rainha acham bem: etc., etc., ao passo que nunca de faz menção do poder eclesiástico, da sua vontade nem das suas ordens.

A Inquisição de Portugal era igualmente considerada pelo governo deste país como uma instituição política, como vemos da lei de 20 de março de 1790, sendo ministro de D. José I o Marquez de Pombal. Nessa lei diz-se: “Eu El-rei faço saber aos que este alvará virem: que eu fui informado, de que ao mesmo tempo em que todos os Tribunais de que se compõem Minha Corte, como depositários da Minha Real Jurisdição, ou seja contenciosa ou seja voluntária, em razão de representarem vivamente no exercício uma e outra Jurisdição a Minha Real Pessoa; expedindo no Meu Nome as causas, e Negócios das suas respectivas inspeções, foram sempre, e são tratados por Majestade; e que sendo o Conselho Geral do Santo Ofício um dos tribunais mais conjuntos e imediatos à Minha Real Pessoa, pelo seu instituto e ministério; se introduziu o abuso de se lhe dar o tratamento, que compete ao seu Presidente como se pratica com o Senado da Câmara de Lisboa, que representa o Congresso do Povo, e isto sendo de mais a mais do Meu Conselho todos os Deputados, que constituem o Corpo do mesmo Conselho Geral; exercitando nele a Minha Real Jurisdição, não só para os procedimentos Criminais, e extremos contra todos, os que delinqüirem contra a Religião, mas também para a expedição das Causas Cíveis dos Privilegiados que gozam do seu foro; constando, aliás, que o sobredito foi um dos meios com que as intrigas dos Denominados Jesuítas pretenderam deprimir a autoridade do dito tribunal do Santo Ofício. E querendo Eu abolir um tão estranho abuso: Hei por bem Ordenar que ao dito Conselho Geral se fale, escreva e requeira por Majestade; como se praticou sempre inalteravelmente com os dois Tribunais da Mesa da Consciência, e Ordens, a Bula da Cruzada pelo exercício e concurso de ambas as duas Jurisdições: e que sem este tratamento não se responda, nem defira a Carta, ou Requerimento algum, tendo entendido o mesmo Conselho Geral que as Causas e Negócios pertencentes à Jurisdição Temporal de que lhes foi cometido o exercício, devem ser expedidos no Meu Real Nome, como o praticam os dois Tribunais assim referidos, e todos os mais da Minha Corte.

Pelo que: mando ao Conselho Geral do Santo Ofício; à Mesa do Desembargo do Paço; Real Mesa Censória; Regedor da Casa da Suplicação; Governador da Relação e Casa do Porto; Desembargadores das ditas Casas; Conselhos da Minha Real Fazenda e do Ultramar; Mesa da Consciência e Ordens; Senado da Câmara e a todos os Corregedores, Provedores, Ouvidores, Juízes, Justiças, Oficiais e mais Pessoas dos Meus Reinos e Senhorios, que cumpram e guardem este Meu Alvará, como nele se contém, e lhe façam dar a mais inteira e plenária observância. E valerá como Carta passada pela Chancelaria, ainda que por ela não há de passar, e posto que o seu efeito haja de durar mais de um e muitos anos, não obstante as Ordenações em contrário, que derrogo para este efeito ficando aliás sempre em seu vigor. E se registrará em todos os lugares, onde se registram semelhantes alvarás, mandando-se o Original para o Meu Real Arquivo da Torre do Tombo. Dado no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda a 20 de maio de 1790. Com Assinatura de El-Rei e a do Ministro”. (Coleção de leis portuguesas, Lisboa, 1829, tom. II, p. 397).

Não é, pois, possível a confusão, tanto que os Papas não cessaram de protestar contra as tendências políticas e excessos da Inquisição Espanhola, quer declarando sub-reptícia a bula obtida pelos reis para a instituição deste tribunal, quer censurando abertamente os seus rigores exagerados, quer instituindo juízes de apelação para examinar e cassar as sentenças reais, quer absolvendo os que tinham sido condenados. Fernando e Isabel, na sua pragmática de 2 de agosto de 1498, queixam-se nestes termos: “Algumas pessoas condenadas como heréticas pelos Inquisidores ausentaram-se dos nossos reinos e foram para outros, onde, por meio de falsos relatórios e formalidades indevidas, obtiveram sub-repticiamente isenções, absolvições, comissões, seguranças e outros privilégios, a fim de se eximirem das condenações e apenas em que incorreram e permanecem nos seus erros, o que todavia não os impede de procurarem voltar a estes reinos; por isso,  querendo extirpar um tão grande mal, avisamos àqueles condenados que não tenham a ousadia de voltar. Que não voltem aos nossos reinos e senhorios, por nenhum caminho, de nenhum modo, por nenhuma causa ou razão qualquer, que seja, sob pena de morte e perda de seus bens, na qual pena queremos e ordenamos que incorram por este mesmo fato; um terço dos bens será para a pessoa que os denunciar, outro terço para a justiça, o terceiro para nossa Câmara”.

É evidente, segundo estes documentos autênticos, que a instituição eclesiástica não é de modo algum responsável do que se pode censurar à Inquisição Espanhola, e que as censuras dirigidas à Igreja, por causa desta Inquisição, são injustas.

Mostramos qual o espírito da Igreja na repressão. Para que sejamos justos, diremos que a Inquisição Espanhola não é tão negra como a pintam os seus detratores, gentes pouco sérias e cujo retrato traçamos repetindo as palavras de Balmes (Vid. Conf. 58ª, 2ª parte). Mgr. Hefelé, no consciencioso capítulo que consagra a este tribunal (Le Cardinal Ximenes, cap. XVIII), atenua consideravelmente as acusações contra ele, servindo-se, principalmente, das confissões do seu principal acusador, Llorente.

E de mais, não é verdade que os reis da Espanha imaginaram a Inquisição unicamente para assegurar o triunfo do absolutismo. Era nas mãos do governo um meio de fazer prevalecer a nacionalidade espanhola na sua luta contra o judaísmo e islamismo. Assim, a Inquisição ainda que detestada pelas primeiras leis do Estado, era extremamente popular, a ponto de que toda a cidade de Saragoça se levantou quando o inquisidor Pedro d’Ambues foi assassinado, chegando o tumulto a tomar tais proporções que só o arcebispo o pôde apaziguar depois de ter prometido à multidão que os assassinos não escapariam aos rigores da justiça.

Felipe II, o mais caluniado soberano da Espanha, não era tão despótico como aí se apresenta. Fiel às recomendações de seu pai Carlos V, estava sumamente empenhado em preservar os seus estados da invasão do protestantismo. Ora “o resultado da invasão do protestantismo na Espanha, diz Balmes, teria sido, como nos outros países, a guerra civil; e esta guerra ter-nos-ia sido muito mais fatal que a outro povo, porque as nossas circunstâncias eram infinitamente críticas. A unidade da monarquia espanhola não poderia resistir às perturbações e estragos de uma dissensão interna; as suas diversas partes eram tão heterogêneas entre si e tão pouco ligadas umas às outras que o menor abalo bastaria para quebrar a ligação. As leis, os costumes dos reinos de Navarra e Aragão diferiam extremamente dos de Castella; um vivo sentimento de independência, entretido pelas freqüentes reuniões das suas cortes particulares, abrir-se-ia no coração destes povos indomáveis; aproveitar-se-iam certamente da primeira ocasião para sacudir um jugo aceite de má vontade. A monarquia ver-se-ia miseravelmente fracionada, no tempo em que era necessário cuidar dos negócios da Europa, da África e da América. Estávamos ainda em presença dos mouros; os judeus ainda não tinham tempo de se esquecer da Espanha; certamente uns e outros, para se levantarem ,se teriam aproveitado das nossas discórdias. Da política de Felipe II dependia não somente a tranqüilidade, mas talvez a existência da monarquia espanhola. Todavia, acusam aquele príncipe de tirano; se ele procedesse de outro modo acusá-lo-iam de incapaz”.

2º Não é verdade que a Inquisição Espanhola tivesse por ofício obrigar os mouros e os judeus a mudar de religião. Perseguia os apóstatas que depois de batizados voltavam ao judaísmo ou ao islamismo e, sobretudo, os judaizantes, isto é, os que hipocritamente faziam profissão da fé cristã em público e, em segredo, praticavam o judaísmo, tornando-se cúmplices de todos os crimes que o povo acusava os seus correligionários.

3º Não é verdade que a Inquisição Espanhola inventasse torturas extraordinárias para castigar os hereges. Pelo contrário, procurava mitigar os cruéis processos da justiça de então. O próprio Llorente confessa que, ao passo que as prisões eram em toda a Europa masmorras negras e úmidas, verdadeiros focos de infecção, onde se respirava uma ar fétido e pestilencial, os presos da Inquisição tinham casas bem ventiladas e com luz onde se podiam mover. Os presos da Inquisição não eram algemados, nem lhes eram postas coleiras de ferro. Perguntava-se aos presos da Inquisição se o carcereiro os tratava bem, e havia todo o cuidado para com os enfermos. Não se permitia, contrariamente ao costume usado nos tribunais civis, que fosse repetida a tortura no curso do mesmo processo.

4º Não é verdade que a Inquisição Espanhola fosse um monstro insaciável, sempre prestes, à primeira suspeita, para se cevar nas suas vítimas. Concedia, como todos os tribunais deste gênero, três admoestações. Ordenava que os filhos dos hereges fossem tratados com bondade, ainda mesmo depois de expirarem os tais prazos de espera; que ninguém fosse preso se num excesso de cólera blasfemasse de Deus. Se alguém era acusado de propósito como herético, consultavam-se os médicos para ver se os seus discursos seriam efeito de uma doença mental. Exigiam que os juízes estivessem de acordo para prender alguém, e ninguém era preso sem que o seu crime fosse evidente.

5º Não é verdade que a Inquisição Espanhola procurasse, nos processos, não tanto a verdade como a ocasião de condenar o acusado, e que empregasse todos os ardis para punir os próprios inocentes. Os seus estatutos (1496, art. 8) impunham castigo público às falsas testemunhas tanto de defesa como de acusação; recomendavam aos inquisidores que desconfiassem do acusador tanto como do acusado, e que tratassem este com benevolência; permitiam ao acusado escolher um procurador entre os advogados do Santo Ofício, e exigiam dele juramento de guardar segredo e defender sincera e lealmente o seu cliente (Art. 23). Se o acusado era pobre, o advogado era pago pelo fisco. O acusador devia também prestar juramento de que não era levado por nenhum sentimento de ódio, e ameaçavam-no com penas gravíssimas se se tornasse culpado de calúnia. Os processos verbais eram lidos duas vezes ao acusado em presença de duas testemunhas eclesiásticas. Enfim, era ordenado aos inquisidores que procurassem diligentemente tudo que podia desculpar o acusado e, terminado o processo, deviam perguntar ao acusado se queria que se procedesse a novas diligências.

6º Não é verdade os inquisidores espanhóis condenando os acusados apresentassem despesas enormes para se apossarem dos seus bens. Havia todos os trimestres contas rigorosas, e os bens confiscados eram para o tesouro. Por mais de uma vez, os inquisidores, de harmonia com as instruções da Santa Sé, tiravam ao fisco uma presa com que contava, a fim de que os bens confiscados fossem empregados na glória de Deus e, em particular, nas despesas da guerra nacional contra os mouros (1º Estatuto de Torquemada, 1494).

7º Finalmente, não é verdade que a Inquisição Espanhola condenasse à morte um número incalculável de hereges. A cifra de 30.000 vítimas de Llorente, no espaço de trezentos anos, é o resultado de um cálculo de probabilidades que não tem fundamento em nenhum documento particular ou oficial. Para Llorente basta um dado qualquer, às vezes incerto, para estabelecer as cifras segundo a maior ou menor importância. De mais, sabe-se que Llorente queimou peças autênticas de processos, sem dúvida para que não fosse contraditado nas suas apreciações. Apesar disso traiu a sua má fé. Se o cálculo de Llorente fosse verdadeiro, seria necessário subtrair dele as condenações por blasfêmia contra Deus, a magia, a usura, o contrabando de guerra, a bigamia, a libertinagem contra a natureza, a sedição contra o Santo Ofício, o que reduz consideravelmente o número dos hereges.

Apesar destas atenuações importantes da acusação de fanatismo, de injustiça, de crueldade, de barbaridade, de infâmia contra a Inquisição Espanhola, não é nossa intenção defender todos os seus atos e dizemos com Balmes: “Sem desprezar as circunstâncias excepcionais em que esta instituição se encontrou, penso que teria feito muito melhor, a exemplo da Inquisição de Roma, evitar, tanto quanto possível, a efusão de sangue. A Inquisição podia perfeitamente velar pela conservação da fé, prevenir os males de que a religião estava ameaçada pelos mouros e judeus, preservar a Espanha do protestantismo, sem desenvolver esse rigor excessivo que lhe mereceu graves censuras, admoestações da parte dos soberanos Pontífices, provocou reclamações dos povos, foi causa de que tantos acusados e condenados apelassem para Roma, e forneceu aos adversários do catolicismo um pretexto para tachar de crueldade, uma religião que tem horror à efusão de sangue. Repito, a religião católica não é responsável por nenhum excesso que em seu nome se possa cometer; e, quando se fala de Inquisição, não se deve considerar principalmente a da Espanha, mas a de Roma. Lá onde reside o Soberano Pontífice, onde se sabe como deve ser entendido o princípio da intolerância, qual o uso que dele se deve fazer, é também onde a Inquisição foi doce e indulgente ao extremo. Roma é o lugar do mundo onde a humanidade menos sofreu por motivos de religião. Ora, falando assim, não excetuo nenhum país, não só aqueles que não tiveram Inquisição como aqueles onde existiu, tanto os países católicos como os protestantes. Este fato incontestável, basta para fazer compreender a todo o homem de boa fé qual é, nesta matéria, o espírito do catolicismo”. (Cf. Hefelé, Le cardinal Ximenes, cap. XVIII; Balmes, Le protestantisme compare au catholicisme, cap. XXXVI e XXXVII, e nota 9).

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Os dogmas impedem a reflexão?

Excelente texto de Jacques-Marie-Louis Monsabré:

Tudo vai bem até aqui. A afirmação da Igreja, expressa pela fórmula dogmática, vai adiante das nossas necessidades intelectuais e atende às nossas fraquezas; mas respeitará ela as nossas grandezas? Fixado o dogma, não contraria ele a natural tendência de todos os conhecimentos humanos para o progresso? Impondo ao espírito humano uma fórmula seca que é necessário crer, não lhe proíbe o ter consciência do ensino que lhe subministrou? Imobilizando uma ordem de conhecimentos que é impossível rejeitar, não constrói ela uma espécie de dique que detém as evoluções das outras ciências?

Senhores, nada mais fácil de responder a estas questões de que tanto se tem abusado, em nossos dias, para tornar suspeito o governo intelectual da Igreja. Poderíamos escrever volumes; espero contentar-vos com poucas palavras.

Desde o século V que se suscitou a questão do progresso em face da imutabilidade do dogma, e eis como foi resolvida por um homem verdadeiramente sábio: “Que há um progresso, um grande progresso na Igreja de Cristo, escreve São Vicente de Lerins, coisa é que nenhum homem pode negar, por mais inimigo que seja de Deus e de seus semelhantes. Trata-se do verdadeiro progresso e não de mudança na fé. Dá-se progresso quando uma coisa se desenvolve em si mesma, mudança quando se torna noutra que não era... A religião das almas deve imitar a natureza dos corpos, que, com os anos, se desenvolvem sem deixarem de ser o que eram. Há, certamente, uma grande diferença entre a infância e a velhice, e, todavia, o velho é o mesmo homem que o adolescente. Ainda que o estado do homem mudasse aparentemente, permanece sempre o mesmo na sua natureza e na sua pessoa... A doutrina da Igreja obedece, pois, a esta lei de progresso, fixa-se, desenvolve-se, aprofunda-se, à medida que os tempos correm; mas subsiste sempre uma, pura, incorruptível... Estudam-se os dogmas tradicionais, aumentam em evidência, em demonstração e clareza científica, mas nada perdem da sua integridade[1].”

terça-feira, 4 de abril de 2017

A Epístola de São Clemente e o Papado

I. No mais antigo documento do começo da história cristã, além das páginas das Sagradas Escrituras, a Igreja de Roma destaca-se de uma maneira tal que sugere sua autoridade, e que registra toda sua futura atitude em relação ao restante da Igreja. Quem ocupava a Sé de Roma surge diante de nós falando em nome de sua Igreja no tempo em que o Apóstolo São João ainda estava vivo, e põe fim a um distúrbio em uma região naturalmente mais próxima do Apóstolo que da Igreja de Roma, apresentando-se tanto como tendo a posse de uma verdadeira tradição divina, quanto como intérprete autorizado de uma Igreja distante.
 Ele declara as regras de adoração e governo para toda a Igreja por meio de uma instituição Divina.

As circunstâncias são as seguintes: A Igreja em Corinto foi tomada por algumas dissensões, causando extremo escândalo diante de todos (§ 47)[1]. Certos espíritos beligerantes, com uma boa quantidade de seguidores, provavelmente expulsaram de seu sagrado ofício o seu bispo e alguns de seus presbíteros, isso se não foi, de fato, um ou mais bispos de sua região (ἐπισκοπή, § 44)[2]. A Igreja de Roma veio em socorro. As perseguições sob Nero e Domiciano tinham-na impedido de intervir anteriormente (§ 1). Porém o mais rápido possível São Clemente escreveu uma carta cujo título é “A Igreja em Roma para a Igreja em Corinto”, a qual Dr. Lightfoot considera como “quase que imperiosa”[3] no tom, e que Santo Irineu falou como “poderosíssima” ou “completamente adequada”[4]. Em sua carta, São Clemente fala da tradição que a Igreja de Roma recebera dos próprios apóstolos (§ 44), assim como de uma sucessão de regentes da Igreja, a fim de que frustrasse a contenda “em relação ao nome (i. e. dignidade) do ofício do bispo (ἐπισκοπής)”. Falando a respeito de seu governo da Igreja, ele encontra seu modelo na Antiga Aliança, no Sumo Sacerdote, nos sacerdotes e nos levitas. Ele relata que os Apóstolos, a fim de prevenirem as contendas, ordenaram como sucessores no ministério (λειτουργίας) bispos e diáconos. Ele de modo magisterial reprova os líderes da desordem em Corinto em sua tentativa de expulsar tais sucessores dos Apóstolos[5], dizendo que “estarão pecando” ao depô-los de seu “sagrado ofício” (ἐπισκοπής)”. Além disso, em uma passagem somente descoberta posteriormente, ele reivindica “obediência às coisas escritas por nós pelo Espírito Santo” (§ 63), assim como dissera pouco antes: “Se um de vós desobedecer ao que foi falado por Ele através de nós, saibam que envolver-se-ão em transgressão e não pequeno perigo” (§ 59). A epístola conclui dizendo que brevemente receberam de volta novamente os legados que enviaram, com a notícia de Corinto de que a paz, tal como desejavam, fora restaurada.
Este foi o primeiro ato registrado da Igreja de Roma. Isso foi registrado com entusiasmo por Santo Irineu, do qual acrescentamos que os coríntios se emendaram, e o resultado desejado foi alcançado. Isso também foi aludido com louvor por Santo Inácio em seu caminho em direção ao martírio.

II. Dr. Lightfoot faz grande alvoroço ao fato de que o nome de São Clemente não aparece nesta carta, mas somente o nome da Igreja de Roma[6]. Entretanto, ele admite que a carta foi escrita por São Clemente, e chama este fato de “incidente em sua administração” da Igreja[7]. No entanto, ele pensa ter São Clemente “cuidadosamente suprimido”[8] seu nome, como se não estivesse em uma posição de autoridade tal como está envolvida na ideia de um episcopado monárquico. Em consequência, ele pensa que “sua personalidade fora absorvida”[9] na Igreja de Roma, e que, diante disso, podemos discernir uma diferença vital entre o primeiro século e o quarto, dizendo que “a linguagem desta carta é inconsistente com a posse da autoridade papal na pessoa do escritor” e que ela “não vem do Bispo de Roma, mas da Igreja de Roma”. Este é, diz ele, um registro do segundo século a respeito “de uma comunidade, não de um indivíduo”.

Isso servirá de alerta aos nossos leitores a respeito de uma interpretação errônea e corriqueira a respeito da palavra “monárquico” aplicada por certos escritores ao episcopado (tais como Dr. Lightfoot e Dr. Salmon), e, acima de tudo, ao Bispo de Roma.

Quando dizemos que o Bispo de Roma é o infalível guardião da fé, não queremos dizer que ele está num lugar em que ele possa agir isoladamente do resto do corpo episcopal. A própria doutrina da infaliblidade papal implica que ele nunca pode agir fora do ensino geral da Igreja. Podemos sempre estar seguros de que seus pronunciamentos, quando atendem às condições implicadas no exercício de sua infalibilidade, são a exposição da mente da Igreja como um todo. Se supusermos o caso do Papa, de um lado, e todo o episcopado reunido contra ele do outro, estaríamos obrigados a sustentar que o Papa estaria certo e todo o restante do episcopado errado. Mas este caso nunca ocorreu e nunca poderá ocorrer. Faz parte da promessa feita por Nosso Senhor de Sua presença na Igreja em seu ensino “todos os dias até a consumação dos séculos”[10], e que o corpo nunca estará separado da cabeça. O Santo Padre fala em nome de seus filhos, e seus filhos nunca irão, como um todo, protestar contra seu ensino.

Porém, não somente isso. O Bispo de Roma, ao longo de todas as eras, tem adotado o princípio sobre o qual São Cipriano, que especialmente expôs a ideia monárquica do episcopado, diz que ele sempre propôs governar sua diocese – isto é, com consulta. Assim, nada é mais característico do governo da Igreja por aqueles grandes Papas, como São Dâmaso e São Leão, no quarto e quinto séculos, que o uso de assessores episcopais. Como Santo Inácio fala do bispo da diocese tendo sua corona – seu círculo – de presbíteros, assim os Bispos de Roma sempre tiveram seu círculo de bispos, e fizeram uso de seu conselho em todos os grandes assuntos a respeito do bem-estar da Igreja. Quando, então, os Papas usavam o plural “nós”, eles não estavam somente usando o plural majestático, no entanto, eles colheram em seus pronunciamentos com uma parte próxima daquele grande conjunto cujo nome eles estavam justificados em falar. Eles fizeram seu sínodo. Eles não agem em majestade isolada, mas aconselhados com outros que eles reuniram em proximidade com eles mesmos.

Assim, a supremacia que pertence estritamente ao Bispo de Roma, como o sucessor de São Pedro, é constantemente atribuída, não ao Bispo de Roma, mas à Igreja de Roma. Na mais recente história da Igreja, constantemente, deparamo-nos com a supremacia do bispo como pertencente à Igreja de Roma. Em nosso tempo constantemente falamos de “Roma” fazendo isto ou dizendo aquilo, enquanto que, de fato, acreditamos que a potência informadora do todo é o próprio bispo, como sucessor de Pedro e Vigário de Cristo. Martinho V, no Concílio de Constança, condenou a proposição de Wycliffe, que “não é necessário acreditar que a Igreja Romana possui supremacia em relação às outras Igrejas”; e no Credo do Papa Pio IV há uma expressão similar usada pelos convertidos ao serem recebidos pela Igreja, a saber: “Confesso a santa Católica e Apostólica Igreja Romana ser a mãe e mestra de todas as Igrejas”, assim como a profissão de fé prescrita por Clemente IV, e Gregório X, e feita pelos Gregos após o segundo Concílio de Lyon, cujas palavras são: “A santa Igreja Romana tem a suprema e completa primazia e soberania sobre toda a Igreja Católica” e, finalmente, o decreto do Vaticano diz (Const. “Pastor Aeternus”, cap. 3): “Ensinamos e declaramos que a Igreja Romana, pela ordem de Cristo (disponente Domino), tem a soberania de poder ordinário sobre todas as outras [Igrejas]”.

Consequentemente, se a História cristã primitiva apresenta-nos o espetáculo da Igreja de Roma chamando a si mesma por este nome, e agindo com autoridade em guardar a fé da Igreja por conta da sucessão apostólica de seus regentes, e restaurando a unidade a uma comunidade cristã dividida e distante, tal coisa não constitui algo como uma diferença vital entre esta expressão de autoridade e a mais recente prática papal. Há, no máximo, diferença terminológica. O fato de um ato de autoridade ter sido feito em nome da Igreja de Roma não significa que não fora feito pela autoridade do Bispo de Roma[11]. A menos que, então, o Dr. Lightfoot tenha sido capaz de mostrar que não há outra nenhuma razão possível para São Clemente ter suprimido seu nome na carta aos coríntios, o fato que ele suprimiu não prova que ele não ocupava a posição no pensamento dos primeiros cristãos que ele ocupa agora na Igreja Católica Romana. Ademais, o argumento do silêncio é o principal ponto urgido pelo Dr. Lightfoot nesta questão. “A linguagem desta carta” à qual ele afirma mostrar uma diferença entre os primeiros e últimos Papas, significa o silêncio em relação ao nome do autor.

Porém, há mais de uma solução para este silêncio. Se a tradição que Santo Epifânio[12] nos dá está baseada nos fatos, a efeito do que após a morte dos apóstolos Pedro e Paulo São Clemente recusara ocupar a posição de bispo na comunidade romana por conta de sua modéstia, a mesma profunda humildade poderia muito bem ocorrer neste caso, talvez, o primeiro grande ato de disciplina exercida por ele para com uma Igreja distante. Sobre o ensino papal acerca do governo da Igreja seria o suficiente para São Clemente mencionar a Igreja de Roma; ela possuía a “primazia”, como Santo Irineu diz, que, diz-nos também Santo Agostinho, “era sempre forte”. São Clemente foi o sucessor de São Pedro pois ele era o Bispo de Roma. Ele estava ligado com a Divina Cabeça da Igreja, isto é, Seu Vigário, à sua posição na Igreja de Roma; e seria natural, ao escrever uma carta com alguma severidade à Igreja em Corinto, que ele falasse simplesmente da Igreja de Roma, e não mencionasse seu próprio indigno nome. Isso só vai parecer extravagante e fantasioso àqueles que não refletem que a descrição de Nosso Senhor da vital diferença entre a cabeça de Seu reino e aqueles dos reinos mundanos era que “o primeiro” em Seu reino não deveria “ser servido” pelos outros, como os governantes deste mundo, mas estaria entre os demais, como Ele Mesmo estava – seu Regente, seu Senhor e Mestre Infalível, e ainda assim manso e humilde de coração.[13]

Mas há ainda outra possibilidade, que é realmente provável, como solução para a supressão de seu nome, sobre o qual Dr. Lightfoot assenta seu argumento para mostrar que há uma diferença entre São Clemente e o Papado nos tempos subsequentes. A Igreja acabara de emergir de ardentes perseguições, e poderia a qualquer momento estar exposta a outra. Todas as sociedades organizadas sem a permissão das autoridades civis eram ilegais, e, consequentemente, a última coisa que a cabeça da comunidade cristã faria em tais circunstâncias seria expor sua condição como um corpo organizado frente ao mundo. Uma carta, com tamanha autoridade da parte de São Clemente, com seu próprio nome, poderia facilmente cair nas mãos de estranhos. O próprio São Pedro pensou por bem chamar Roma de “Babilônia”[14] ao escrever da Igreja de Roma, e poderia muito bem ser prudente da parte do bispo suprimir seu nome escrevendo de Roma.
Apesar disso, nenhuma destas suposições são necessárias para explicar o fato do silêncio de São Clemente em relação ao seu nome. Escrevendo como o cabeça da comunidade Cristã, ele poderia escrever, oficialmente, em seu nome. Um de seus sucessores, São Sotero, fez o mesmo, e Eusébio expressamente, diz que Clemente escreveu em nome de sua Igreja[15], e, São Jerônimo, que ele escrevera na pessoa da Igreja.[16]

E há a explicação de uma passagem em Eusébio na qual ele fala desta carta de São Clemente. São Dionísio de Corinto, escrevendo à Igreja de Roma, descreve a carta como “vossa Epístola enviada a nós por Clemente”; apesar de Eusébio dizer que Dionísio fez “algumas observações relatando a Epístola de Clemente aos Coríntios”, sobre a qual Dr. Lightfoot culpa Eusébio de fazer uma suposição não permitida pelas palavras de Dionísio.[17] Mas o historiador grego, como todos os outros após ele, considerava o mesmo, chamando, assim como Dionísio o fez, a carta dos Romanos escrita “por Clemente”, ou a carta de Clemente: da mesma forma que São Clemente de Alexandria fala em ambas as formas, tanto como a Epístola dos Romanos[18], quanto como a Epístola de Clemente[19]. Tudo é explicado pelo princípio de que São Cipriano delineou ao dizer “deveis saber que o bispo está na Igreja, e a Igreja no bispo”.
Não teria sido necessário estender-se tanto na interpretação do Dr. Lightfoot a respeito da omissão do nome de São Clemente em sua carta, se não fosse o peso dado pelo nome de Dr. Lightfoot a tudo o que ele diz, e, embora muitos o repudiem em sua visão a respeito do clero[20] cristão, seguem-no neste ponto particular.

III. Assim, a carta de São Clemente foi escrita no nome da Igreja de Roma e, como o Dr. Lightfoot diz, foi o “único incidente registrado em sua administração da Igreja”. Isso foi, de acordo com o mesmo escritor, “sem dúvida o primeiro passo para a dominação papal”. Seria impossível enganar-se a respeito do tom de autoridade, “quase que imperioso”, diz o mesmo escritor.[21] Dr. Salmon, em seu livro sobre a “Infalibilidade”[22], sustenta que o tom “é somente de repreensão amorosa que qualquer cristão está justificado a dar a um irmão que esteja no erro”. Mas em seu artigo sobre São Clemente no “Dictionary of Christian Biography” (Smith and Wace), ele diz que “é muito notável na primeira parte da carta o tom de autoridade usado pela Igreja Romana ao fazer uma interferência não solicitada em assuntos de outra Igreja”[23]. Já na carta de São Clemente há uma suposição, tão natural quanto quase inconsciente, do direito de avisar e interpor de forma embasada seu argumento pacificador”[24].

É singular que poucos anos depois do dogma da infalibilidade papal, crença de todas as épocas dos cristãos, à vista das negações emergentes, tenha sido feita obrigatória, um manuscrito em um mosteiro grego, contendo fortes asserções da divina autoridade com que a Igreja de Roma compreendia de si mesma ao falar, fosse repentinamente descoberto. Dr. Lightfoot tinha substituído um longo fragmento de outro escritor, como possivelmente a substância de uma antiga porção desta inestimável carta, e muitos estudiosos admiraram sua ingenuidade. Porém, uma comparação com este sugerido complemento da carta, e o atual fragmento agora descoberto, mostrará como a imaginação de um brilhante estudioso difere do pensamento do próprio grande Bispo de Roma.[25]

IV. Há uma passagem que sugere a resposta à questão de se esta carta de Roma foi uma resposta a um apelo ou uma intervenção não solicitada. O escritor diz (§ 44) que “não pensamos que tais como estes” (i. e. homens deixados pelos Apóstolos e de boa reputação) “estão justamente expulsos do sagrado ministério; pois isso será um pecado não pequeno em nós, se nós expulsássemos (ou depuséssemos) do episcopado aqueles que tinham oferecido os dons inocentemente e santamente”. Isso certamente parece como se o caso daqueles bispos (eu uso o equivalente exato, sem querer significar através disso a questão de qual era exatamente seu papel) tinham sido colocados diante da Igreja de Roma. Os coríntios os tinham removido do exercício de seu papel, como está declarado na próxima sentença, mas nesta sentença o escritor da Epístola trata sua disposição como não concluída; há o presente do indicativo, como se o ato esperasse seu término em Roma. Se isso foi ou não assim, a questão deve ter sido levada adiante de alguma forma, pois Roma passa a julgar se tais regentes mereceram tal tratamento, em vez de pedir pormenores. A passagem na qual São Clemente fala do “relatório” tendo chegado a Roma[26], que parece à primeira vista sugerir que os romanos não tinham sido diretamente consultados sobre a questão, refere-se somente ao relato do distúrbio, do qual os fatos principais parecem ter sido levados diante da Igreja de Roma, foi devido a somente “um ou dois líderes”. A expressão no inicio da carta, “a questão em disputa entre vós”, não nos compele a supor que a questão de disputa entre eles não tinha sido também levada a Roma, pois se houvera algum apelo, por que São Clemente desculpar-se-ia por não ter atendido a questão antes? No conjunto, então, parece mais provável, embora não seja certo, que a carta fora escrita em resposta a um apelo dos coríntios.

Este fato está na aurora da história cristã não inspirada. No primeiro século da era Cristã, a unidade fora restaurada em Corinto pela ação de Roma escrevendo uma poderosíssima carta e enviando legados[27] para o local da contenda; e, de acordo com Santo Inácio, Roma foi a mestra das outras, com alusão especial, pensa-se, a esta carta: “Ensinastes a outros” (In. “Ep. Ad Rom.” § 3) são palavras que, como Dr. Lightfoot nota[28], “o recém-descoberto término da carta de São Clemente possibilita-nos apreciar mais completamente” – uma carta na qual o escritor reivindica falar com a autoridade de Deus.

O mínimo que pode ser dito desta revelada posição de Roma na Igreja é que ela encaixa-se com a presente posição na Cristandade Católica Romana.


Notas:

1 – As referências à Carta de São Clemente são da edição do Dr. Lightfoot. A segunda edição, publicada em 1890.
2 – São Clemente chama isso de cisma (§ 46).
3 – St. Clement of Rome, vol. i. p. 69. 1890.
4 - ικανωτατην, Adv. Haer. Iii. 3,3.
5 - “Τους ουν κατασταθεντας υπ εκεινων [i.e. os Apóstolos] η μεταξυ υφ ετερων ελλογιμων ανδρων, συνευδοκησασης της εκκλησιας πασης, και λειτουργησαντας αμεμπτως τω ποιμνιω του Χριστου μετα ταπεινοφροσυνης ησυχως και αβαναυσως, μεμαρτυρημενους τε πολλοις χρονοις υπο παντων. τουτους ου δικαιως νομιζομεν αποβαλλεσθαι της λειτουργιας” (§44). Observe o presente do indicativo na última palavra. A Igreja de Roma trata a ação dos Coríntios como incompleta.
6 – Loc. Cit. P. 69.
7. P. 84.
8. P. 352.
9. P. 69.
10. Mt XXVIII, 20.
11 – Cf. Life of St. Thomas of Cantebury by Ver. J. Morris, S. J., p. 135.
12 – Haer. XXVII, 6.
13 – Lc XXII, 25-27. E assim no tempo de São Dâmaso os Papas chamavam-se de “servos dos servos”.
14 – 1Pe v. 13. Dr. Lightfoot assim entende a palavra “Babilônia” em seu St. Clement of Rome, vol. Ii. P. 191, 2.
15 – H. E. iii. 37.
16 – De Viris Illustr. 15.
17 – Loc. Cit. P. 358.
19 – Strom. v. 12, 81.
19 – Ib. iv. 17, 19.
20 – Mr. Gore tem uma excelente resposta à concepção errônea do Dr. Lightfoot ao episcopado na Igreja Cristã primitiva em seu Church and the Ministry, 1889, nota A, p. 353 seq.
21 – Mr. Gore (ib. p. 325) fala da “autoridade de ensino que exala em sua (de Clemente) Epístola”.
22 – Infallibility of Church, de Salmon, segunda edição, p. 379.
23 – Dr. Salmon, no prefácio de seu livro “Infallibility of the Church” diz que muito disso foi escrito anos atrás. Isso certamente contrasta estranhamente seu tom abrupto e esquenta seu livro admirável “Introduction to the Study of the New Testament”, no qual ele toma a mesma visão da carta de São Clemente que está no Dicionário de Smith e Wace. Possivelmente o novo final não tinha sido descoberto quando ele escreveu aquela porção do seu trabalho sobre a infalibilidade.
24 – Cruttwell (C. T.) Lit. Hist. Of Early Christianity, 1893, vol. ii. p.404.
25 – Lightfoot, Clement of Rome, 1890, vol. i. p. 178.
26 – §, ad finem.
27 – Clem. Ep. Ad Cor. § 45.
28 – Loc. Cit. P. 71.

Link atual com a tradução de Lightfoot da Epístola de São Clemente (inglês):

http://www.earlychristianwritings.com/text/1clement-lightfoot.html

Link atual do texto em grego da Carta de São Clemente:

http://www.textexcavation.com/greekclement33-48.html

Este artigo pode ser reproduzido por qualquer meio gratuito, desde que a fonte seja mencionada: <<< The Primitive Church and the See of Rome, Luke Rivington. Tradução: Jonadabe Rios. 2017. http://porquecreio.blogspot.com/ | www.editoraloreto.com >>>

sábado, 22 de outubro de 2016

Paradoxos do Cristianismo: Jesus Cristo, Deus e Homem - ROBERT HUGH BENSON

O presente texto é o primeiro capítulo do livro "Paradoxos do Cristianismo" de Robert Hugh Benson, onde há uma ótima reflexão sobre o assunto.

***

Um sábio materialista anunciou um dia ao mundo estupefato que os mistérios da Igreja são brinquedos de criança, comparados com os mistérios da natureza. Naturalmente que ele, afirmando isto, errara redondamente e o seu erro não tem justificação alguma. No estudo da natureza criada, de que era profundo conhecedor, encontrara numerosas anomalias e paradoxos sobrepostos uns aos outros, e vira que o seu escasso conhecimento de teologia, limitado pelos primeiros e mais rudimentares princípios, não lhe permitia encarar as coisas por outro prisma.

Nós, na altura de compreendermos como os mistérios da natureza estão inteiramente contidos no círculo da vida criada, enquanto os mistérios da graça se ligam ao supremo mistério da incriada e eterna Vida de Deus, nós, digo, podemos ao certo assegurar que, se a Natureza é paradoxal, a Graça o é num grau incalculavelmente maior. Em cada paradoxo que encontramos no mundo material, acharemos o centro da atmosfera espiritual, dentro da qual respiramos e onde se movem as nossas almas, que, por um processo por si mesmo paradoxal, são obrigadas sob a limitação que lhes impõe a matéria.

Ao defrontarmos estes mistérios, não temos outro campo visual além do minúsculo espelho do sobrenatural ou aquele débil fio de esperança que chamamos "vida espiritual". Como se explica, por exemplo, que, enquanto a religião é num sentido a luz que clareia a nossa escura existência, noutro é o único ponto escuro num mundo de prazeres? E ainda, num sentido, é a única que torna a vida digna de ser vivida, e em outro, o único obstáculo para o nosso prazer? Que significam estes mistérios Gozosos e Dolorosos contradizendo-se uns aos outros e que têm por resultado (como no rosário) outros mistérios que são Gloriosos? Voltemo-nos a considerar a paixão fundamental destes mistérios, paixão que é chamada amor, e vejamos se aí existe algo de inexplicável. Que paixão é esta que transforma a alegria em dor e a dor em alegria? Esse impulso que leva o homem a fazer sacrifício de sua vida para salvá-la, que para si transforma as alegrias em complacências, lhe torna leve o jugo da Cruz, que o leva a encontrar o centro além do próprio eu, a procurar o seu prazer na privação de todo o bem-estar? Que poder é esse que pode muitas vezes encher-nos de alegria antes de nos metermos à obra e que recompensa a nossa fadiga com as trevas da desolação?

I - Se, pois, a nossa vida interior está cheia de paradoxos e de aparentes contradições, - e não há alma que tenha feito qualquer progresso que o não tivesse verificado - naturalmente deveríamos atender a que a Vida Divina de Jesus Cristo sobre a terra, que outra coisa não foi senão a Luz Central e Objetiva do Mundo, refletida em nós mesmos, deve ser cheia das mais estupefacientes anomalias. Examinemos os testemunhos escritos referentes a esta vida e vejamos se as cousas não são precisamente assim. Para melhor nos convencermos, suponhamos que este exame venha de um observador alheio completamente à tradição cristã.

a) Começa ele a ler atentamente e termina convencido de que esta Vida é uma vida como todas as outras; que este Homem não difere de outro homem, e, prosseguindo na leitura, encontra centenas de argumentos que servem para corroborar a sua teoria. De fato, vem ele a achar-se em presença de um indivíduo nascido de uma mulher, sujeito à vida comum, às inclemências da fome e da sede, e que, com o correr do tempo, aumenta em sabedoria; de um indivíduo que trabalha numa oficina de carpinteiro, sofre e se alegra como todos os outros homens, e que, como todos, tem amigos e inimigos; de um indivíduo que se vê abandonado por uns e insultado por outros, que, numa palavra, passa por todas as privações impostas pela humanidade; que morre como todos os outros homens e é, finalmente, depositado numa sepultura.

O observador encontra uma suficiente e adequada explicação dos fatos maravilhosos de que se compõe a Vida deste Homem na sua poderosa e magnífica humanidade. E é induzido a concluir que a fascinação emanada da simples, mas perfeita personalidade do herói, tenha sido condição tão grande para abrir os olhos aos cegos para que possam contemplar a beleza de sua face, e os ouvidos aos surdos para que possam ouvir a sua palavra.

Penetrando na leitura, não tardará, porém, a topar com problemas que o fazem duvidoso. Se este Homem, porquanto perfeito e sublime, é igual aos demais homens, como é que dizem que sua santidade se manifesta pelos muitos atos diversos dos outros Santos? Os homens aspirantes à perfeição, quanto mais se aproximam dela, melhor se dão conta das próprias imperfeições: os outros Santos mais se aproximavam de Deus e mais lamentavam a distância que dele os separava. Os outros mestres de vida espiritual, cônscios de suas deficiências, convidavam os discípulos a desviarem deles os seus olhares para o fixarem na Lei Eterna, objeto de suas mesmas aspirações.

Este Homem, ao contrário, parece vasar todos os sistemas. Tomando posições em face do mundo, Ele ordena aos homens que O imitem, e não como fazem os outros diretores espirituais; evitar os seus pecados cometidos; longe de indicar uma meta posta antes ou depois de si, aponta para si mesmo como Caminho que conduz ao Pai; longe de adorar uma Verdade, para a qual Ele tende com esforço, não hesita em afirmar que esta existe em si mesmo; longe de descrever a Vida a que espera chegar um dia, ordena aos seus ouvintes que olhem para Ele como para a própria Vida; longe de maldizer com os seus amigos as faltas que o agravam, desafia os inimigos a acharem nele a menor mancha de pecado. Há nele uma extraordinária sabedoria vinda de sua própria essência, que nada tem que ver com o conceito comum de individualidade.

Suponhamos agora, ao contrário, que o nosso observador se preste a ler o Evangelho partindo de um outro conceito, isto é, o de se achar em erro, pretendendo encontrar algum quê de humano na vida de Cristo. " Jamais homem algum tem falado como este". " Quem é este Homem a quem até os ventos obedecem?" dirá ele fazendo coro com o Evangelho. E prosseguirá, interrogando: " Como pode Cristo ser um homem se não nasceu de um pai humano?"

Se ressuscitou depois de três dias de morto? Se dele narram maravilhas que não podem ser atribuídas a um homem semelhante aos demais homens?

E começa a argumentar. "Aqui nos achamos", diz para consigo mesmo, "frente a frente com a realidade da antiga fábula, com a vinda de Deus entre os homens, com a solução de todos os problemas. E ei-lo ainda uma vez desorientado. Como pode um Deus sentir-se cansado com a jornada de longos caminhos, trabalhar numa pobre carpintaria e morrer numa Cruz? Como pode o Verbo Eterno ficar silencioso e obediente durante trinta anos? O Ser Infinito nascer numa manjedoura? A Fonte da Vida sujeitar-se à morte e à morte de Cruz?

O averiguador destes fatos debate-se desesperadamente entre uma e outra teoria. Apela para as mesmas palavras de Deus, e a sua perplexidade aumenta a cada expressão. Se Cristo é Deus, como pode proclamar: " Eu e o Pai somos um ?" Se Cristo é Deus, como pode dizer : "O Pai é maior do que Eu"? Se Cristo é homem, como pode assegurar : "Antes que Abraão fosse, eu sou" ? Se Cristo é Deus, como pode chamar-se a si mesmo "o Filho do Homem"?

b) Tornemos a considerar o ensinamento espiritual de Jesus Cristo, e uma vez mais acharemos que os problemas e os paradoxos se sucedem e se sobrepõem uns aos outros. Este homem, que veio ao mundo para aliviar as dores dos homens, para dar descanso aos fatigados, este Homem, que oferece aos seus seguidores um jugo doce e suave, diz ao mesmo tempo que ninguém o pode seguir e ser seu discípulo, se não renunciar a si mesmo, tomar cada dia a sua Cruz e subir a montanha com Ele. O médico das almas e dos corpos, que passou operando o bem, dando o exemplo de uma grande atividade no servir a Deus, não hesita em declarar que Maria, na sua silenciosa passividade, escolhera a melhor parte e que esta não lhe poderá ser outorgada. A uma certa altura vemos Cristo dirigir-se aos seus discípulos com os olhos cintilantes de belicoso ardor e dizer-lhes: quem não possui espada venda os seus vestidos e compre uma; e outra vez: embainhai a vossa espada, porque o meu Reino não é deste mundo. Em uma ocasião vemos o Pacificador baixar a sua benção sobre aqueles que fazem a paz, e, em outra, declarar que não veio trazer a paz, mas a guerra: vemos, ainda, este homem, que chama bem-aventurados os que choram, ordenar aos Seus discípulos que se alegrem e exultem. Onde encontrar um conjunto mais complexo de paradoxos, de problemas e de perplexidades? Tanto na pessoa como na doutrina de Cristo, parece não se encontrar certeza nem solução. - Que vos parece do Cristo? De quem o julgais filho?

II - a) A doutrina católica, e somente esta, oferece a chave destes problemas - chave como todas as outras chaves, entretanto tão complicada como o mecanismo da fechadura que só pode abrir. Um depois do outro, forcejam os heréticos por arrebatá-la e, um depois do outro, esperam ansiosos o seu desmoronamento na confusão. Cristo é Deus - exclama o herege - por isso tirai do Evangelho tudo que fala de sua Humanidade. Deus não pode derramar o próprio sangue, sofrer e morrer; Deus não pode experimentar as dores do homem; Deus não pode afligir-se e fatigar-se. Cristo é homem - exclama a crítica moderna -  por isso arrancai do Evangelho o seu nascimento imaculado e a Sua Ressurreição gloriosa. Ninguém no mundo, fora de um católico, pode aceitar os Evangelhos tais quais foram escritos, porque é somente quem crê que Cristo é ao mesmo tempo Deus e homem, que se inclina diante dos paradoxos chamados Encarnação, que aceita o estupendo mistério de uma só pessoa e duas naturezas, finita e infinita, que crê que o Eterno veio ao mundo, que o Criador Encarnado se dignou unir-se à sua mesma criação - somente este homem pode dizer-se Católico, pode sem reserva aceitar o misterioso fenômeno da vida de Cristo.

b) Consideremos os mistérios da nossa vida e, mediante um confronto inadequado, nos poremos em condição de melhor compreender.

Porque até nós temos uma dúplice natureza. Como Deus e o Homem formam o Cristo, a alma e o corpo formam o homem - e, como as duas naturezas de Cristo, a sua perfeita Divindade unida à sua perfeita Humanidade, são base dos problemas que a Sua Vida representa, assim a nossa afinidade com o lodo, de que foi feito o nosso corpo, e com o Pai da Vida, que infundiu em nós uma alma imortal, explica as contradições da nossa própria experiência.

Se fossemos unicamente animais irracionais, poderíamos ser felizes como o são os animais do campo: se somente fossemos puros espíritos extasiados na contemplação de Deus, nossa seria a alegria dos anjos. Admitindo, porém, uma só destas verdades, necessariamente terminaríamos abismando-nos na confusão. Vivendo como animais do campo, não poderíamos encontrar a alegria de que eles gozam, porque a nossa parte imortal no-lo impediria. Descurando ou resistindo às legítimas aspirações do nosso corpo, o nosso espírito imortal vê-se arrastado pela baixeza do mesmo corpo ultrajado. Somente a admissão das duas naturezas em Cristo permite resolver os problemas contidos no Evangelho. Somente a aceitação das duas naturezas nos põe na possibilidade de viver segundo os juízos de Deus.

O nosso modo de ser, física e espiritualmente, se eleva ou se abaixa, enquanto uma ou outra parte recebe tendências favoráveis às suas inclinações: umas vezes a nossa religião é um peso para a nossa carne e vezes outras dá-se o contrário; é o exercício que delicia a nossa alma; - umas vezes é a causa única que dá valor à nossa vida, vezes outras é a causa única que impede de gozarmos as delícias que a mesma nos oferece. Alteram-se, em nós, estes estados irresistíveis de ânimo quando o equilíbrio entre as nossas duas naturezas é oscilante e instável. Concluindo, a nós não é reservada nem a felicidade dos animais irracionais, nem a dos anjos, mas a própria dos homens, sendo nós superiores a uns e inferiores a outros, e destinados a ser coroados por Aquele que, participando da mesma Humanidade, está à direita de Deus-Pai. E isto basta como introdução. Vemos que o supremo paradoxo da Encarnação, o qual por si só compendia todos os fenômenos do Evangelho, é a chave de todas as demais dificuldades. Prosseguindo, veremos que ele é também a chave dos outros paradoxos da religião e das dificuldades que apresenta a história do Catolicismo, a Igreja Católica, que é a continuação e difusão da Vida de Cristo sobre a terra. A Igreja Católica, este estranho conjunto de mistérios e de lugares comuns, esta união da terra com o céu, da argila com o fogo, só pode  por isso ser compreendida por aquele que a aceita como Divina e Humana, visto não ser ela outra coisa senão a representação mística, em termos humanos, d' Aquele que, sendo Deus infinito e Eterno Criador, se mostrar em semelhança de servo; d' Aquele que, sem deixar o seio do Pai, desceu do céu para a nossa salvação.

sábado, 24 de setembro de 2016

Série Cristológica: A Personalidade de Cristo.

Segue abaixo o esquema das postagens de uma série sobre Cristologia que traduzirei dos textos de Anscar Vonier.

Minha opinião sobre o que ele escreveu? Eu já li vários textos sobre Cristologia de vários autores renomados, mas pouca coisa é do mesmo nível que encontrei nestes textos. Se o que ele fez é só um resumo da Suma, quão profundo não deve ser o que o próprio São Tomás de Aquino escreveu?


"Meu livro é um resumo pouco convencional dos principais pontos da terceira parte da Suma Teológica. Apesar disso, tenho certeza que consegui expressar o espírito deste grande santo e pensador medieval e terei obtido um enorme sucesso se as seguintes páginas criarem o desejo no leitor de ir à própria Suma." (Anscar Vonier)

1 - A Metafísica da Encarnação.
2 - O Cristo dos Evangelhos, da Teologia Cristã e da Experiência Cristã.
3 - Cristo e a ciência da religião comparada.
4 - Cristo, o Maravilhoso.
5 - Uma tentativa de definir "Personalidade".
6 - A continuação da natureza humana em Cristo.
7 - "Antes que Abração existisse, Eu Sou"
8 - Quão Divina é a natureza humana de Cristo.
9 - O Verbo se fez carne.
10 - A hipótese escolastica.
11 - "Instrumentum conjunctum Divinitatis".
12 - O Objetivo da União Hipostática.
13 - As duas vontates e duas operações em Cristo.
14 - O conhecimento de Cristo.
15 - Em Cristo.
16 - Cristo em tudo e todos.
17 - Cristo, o Forte.
18 - Mal entendidos a respeito do Evangelh.
19 - O Caráter de Cristo.
20 - O lugar de Cristo no mundo.
21 - A Ligação entre a vida mortal de Cristo e a Eucaristia.
22 - A Majestade da Presença Eucarística.
23 - O Sangue de Cristo.
24 - O otimismo da Encarnação.
25 - Cristo, o Herói.
26 - Conclusão.

A Personalidade de Cristo - (1) A Metafísica da Encarnação, ou: por que estudar Cristologia é importante?

Desde o início da vida terrena de Nosso Senhor tem-se substituído o elemento pessoal por algo puramente legal. Sua personalidade é misteriosa, e todo sucesso de Sua religião encontra-se em confiar nEle, em segui-lo e em entendê-lo, tendo como principal preceito o princípio pessoal de amor pelos outros. Em outras palavras, em vez de disciplinas legais materiais, Ele estabeleceu as grandes observâncias do coração humano, do entendimento recíproco, da ajuda mútua e do amor ao próximo. “Ajudai-vos uns aos outros a carregar os vossos fardos, e deste modo cumprireis a lei de Cristo.” (Gálatas VI, 2).

É o grande trunfo de sua graça manter os homens em unidade de fé religiosa sem impor-lhes qualquer obrigação de uniformidade prática em sua ascética externa. É Ele mesmo, em Sua própria Pessoa, que é a Força unificadora do Cristianismo. Seus primeiros discípulos seguiram-no, na simplicidade de seu novo amigo, levados por seu carisma inefável. Sem dúvida orgulhavam-se de ser seguidores de tão grande rabi, embora ainda não tivessem observância externas para criar uma escola. Assim, como poderiam ser seguidores de um mestre sem jejuar, enquanto os discípulos de João e dos fariseus jejuavam frequentemente? Em outras palavras, como alguém poderia ser discípulo de outra pessoa a não ser que ele carregue em si a insígnia da maestria deste mestre no caminho da abstinência, da purificação ou da oração?

Os homens conseguem unir seus semelhantes ligando-se através de certas austeridades exteriores; nenhum homem pode ser mestre de outro de fato sem colocar no pescoço do discípulo o julgo de ferro da observância corpórea; mesmo que fosse o objetivo do novo rabi ter uma escola cuja única observância fosse acreditar, ter confiança Nele e ter amizade e amor pelos outros. “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” (João XIII, 35). “Jesus respondeu-lhes: "Podem porventura jejuar os convidados das núpcias, enquanto está com eles o esposo? Enquanto têm consigo o esposo, não lhes é -possível jejuar. Dias virão, porém, em que o esposo lhes será tirado, e então jejuarão.” (Marcos II, 19-20). O jejum é importante na formação de um Cristão, mas você não é um discípulo de Cristo simplesmente porque você jejua quatro vezes na semana, enquanto os discípulos de João jejuam três vezes e os Fariseus duas. “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”.

Na atração que leva a Cristo, bem como fidelidade a Ele, há todo o júbilo de um casamento; o apego e o companheirismo são inevitáveis, pois o banquete é formoso e jubiloso; o trabalho árduo virá após a festa, mas a lembrança deste banquete estará eternamente na memória.

A paz e a prosperidade da causa cristã residem nisso. Toda conversão e toda santidade devem estar associadas à Pessoa de Cristo e às pessoas a quem estamos ligados. A santidade pode realmente variar um pouco. Para alguns, a Pessoa de Cristo é um elemento predominante; para outros, seus pensamentos – vivos pensamentos – estão mais direcionados às pessoas que podem ver visivelmente; mas há certos indivíduos em que seus esforços espirituais são direcionados à realização escrupulosa de um sistema de observância em si mesmo, sem um propósito pessoal, e a religião Cristã está em perigo quando algum tipo de observância começa a desenvolver-se sem este elemento pessoal.

O espírito do cristianismo, apesar de sua pureza ascética, é diametralmente oposto a essa concepção material de vida ética, e os sucessos temporários que se podem obter são os arautos da catástrofe final. É privilégio exclusivo de Nosso Senhor ser Lei, ou melhor, ser uma substituição a toda lei. A princípio, ninguém gostaria disso, pois a alma humana ressente-se por estar obrigada a alguém. Entretanto, como Nosso Senhor é uma Pessoa Divina, não uma pessoa qualquer, pois é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não há justificativa para este ressentimento.

Os Fariseus ressentiam-se mais com a Pessoa de Nosso Senhor do que com Sua doutrina, pois leis abstratas ou observâncias externas nunca despertaram o ódio e a inveja, assim como nunca despertaram amor e simpatia na mesma medida em que uma pessoa pode fazê-lo.

Portanto, as grandes doutrinas teológicas acerca da Pessoa de Nosso Senhor têm uma intima ligação com Sua posição espiritual, pois Ele é uma Personalidade e sua graça não é nada mais que uma graça de amor e entendimento mútuo. Não há lucro tirado dos Evangelhos que não seja aperfeiçoamento do espírito e do coração. Alguém pode até inventar um sistema ascético achar quem submeta-se, mas nenhum homem pode fazer de sua própria personalidade a irrevogável voz da consciência e o alimento que sacia completamente o coração e a alma. Nosso Senhor é o Único que poderia fazê-lo.

Nenhum homem tem o poder de fazer das relações de outros homens que são seus seguidores a insígnia de seus verdadeiros discípulos; Nosso Senhor é o único que pode, e ninguém questiona Sua autoridade e direito para fazê-lo.  Portanto, os ensinos da teologia cristã sobre a Pessoa de Nosso Senhor devem ser de intenso interesse para cada seguidor de Cristo, e o fato dEle ser uma Pessoa Divina deveria encher-nos de imensa alegria.

A vida dos santos mostra em incontáveis almas um amor intenso e pessoal a Cristo.  Isso é fato histórico. Disso pode-se perguntar: tamanha amizade com alguém que não é deste mundo seria possível se Ele não fosse uma Personalidade Divina Viva? Em outras palavras, o amor pessoal a Cristo, tal como a história revela, é uma prova psicológica de sua realidade Divina?

Uma coisa é certa: isso não existe em nenhum outro lugar a não ser na Igreja. As personalidades das religiões não cristãs não fazem parte da consciência humana assim como Cristo o faz.

Seria um grande engano, portanto, considerar as verdades metafísicas da União Hipostática como verdades inférteis e sem aplicação prática; elas são, pelo contrário, indispensáveis para qualquer explicação racional da posição de Nosso Senhor em relação à raça humana. Há em Cristo certo tipo de multiplicidade de presença espiritual que faz dEle o amigo espiritual pessoal de milhões de almas; Ele tem um tipo de universalidade de presença e ação que não interfere de modo algum na intensa individualidade de Sua relação com cada alma. Tal é o Cristo da experiência e da história. Em sua humanidade Ele tem para todos os propósitos práticos a ilimitada característica de sua própria Divindade; Ele é, verdadeiramente, o Amigo Universal, e nenhum outro jamais conseguiu ser o amigo pessoal que todo ser humano pode ter.

Ora, um indivíduo de caráter tão universal só pode ter uma explicação: a União Hipostática, ou a Personalidade Divina, o mistério de uma natureza humana existindo através de uma Pessoa Divina. Em nossos dias mais do que em qualquer outro tempo, os pensadores temem o governo onde um só comande, por mais santo que possa ser. Para eles, não parece ser possível a um indivíduo ser tão grande a ponto de dar satisfação ao espírito de uma raça inteira.

Assim, encontramos com frequência em teólogos modernos a substituição do ideal pelo individual. Tais esforços são tudo, menos censuráveis; o fato é que nenhum indivíduo meramente humano poderia dar um completo ideal para a humanidade, ser um fator vivificante, uma ideia prática para toda a raça humana. Entretanto, estes teólogos modernos erram gravemente ao aplicar isso a Cristo. Não há, pois, a necessidade de substituir um Cristo ideal por um Cristo histórico, justamente porque o Cristo dos Evangelhos, o Cristo da Teologia Católica, possui de fato e uma Personalidade Infinita. Nele não há nenhuma limitação. Sem esta Personalidade infinita, dada as preocupações da raça humana, um Cristo ideal seria de fato preferível a um Cristo histórico pessoal.

Este é o motivo pelo qual digo que os grandes princípios metafísicos subjacentes à União Hipostática são de imensa importância prática. Com isto eu não quero dizer que aquelas almas santas façam destas grandes verdades um estudo utilitarista: elas simplesmente possuem a Cristo, e alegram-se nesta posse. Entretanto, a metafísica da Encarnação é indispensável ao filósofo que começa a lidar com a relação entre Cristo e a humanidade.

[Continua...]