terça-feira, 3 de abril de 2012

O fragmento muratoriano


Em 1740, foi publicada uma lista dos livros do Novo Testamento em latim por Lodovico Antonio Muratori, distinto antiquário e teólogo em sua época, a partir de um códice copiado no éculo VII ou VIII no mosteiro de Bobbio, na Lombardia, mas que depois veio a ser guardado na Biblioteca Ambrosiana (da qual Muratori fora, por algum tempo, curador), em Milão. Continua armazenada lá, sob o número de catálogo J 101 sup., fólios 10a-11a.

A data em que a lista foi preparada originalmente é muito debatida. Ela provém, mais provavelmente, do final do século II. O texto latino sofreu por ter sido copiado por um ou mais escribas que possuíam pouca habilidade de escrita. Há vários erros que clamam por emendas. Muitos estudiosos sustentam a idéia de que por trás do texto latino jaz um texto original grego que se perdeu. Todavia, no todo, parece que o latim era mesmo sua língua original, e que a lista data do tempo em que a igreja romana (que fora de língua grega desde sua fundação no século I) começava a tornar-se bilíngüe.

O documento é melhor entendido como uma lista de livros do Novo Testamento reconhecidos como portadores de autoridade escritural pela igreja romana da época. Além de listar os livros, faz várias observações sobre eles, refletindo a opinião contemporânea de alguns líderes eclesiásticos.

O manuscrito encontra-se mutilado na sua parte inicial. Uma vez que sua primeira frase completa menciona Lucas como “o terceiro livro do evangelho”, provavelmente mencionava os outros dois, e não é excessivamente especulativo supor que esses fossem Mateus e Marcos. Se for esse o caso, as primeiras palavras preservadas do manuscrito seriam as últimas de uma frase sobre Marcos: “... nestas, todavia, ele estava presente e assim as registrou”. A seguir o documento continua:

O terceiro livro do evangelho; segundo Lucas.

Depois da ascensão de Cristo, Lucas, o médico, a quem Paulo levara consigo como especialista legal, escreveu [o relato] em seu próprio nome de acordo com a opinião [de Paulo]. Ele próprio, todavia, não havia visto o Senhor na carne e, portanto, até onde podia seguir [o curso dos acontecimentos], começou a contá-lo a partir do nascimento de João.

O quarto evangelho é de autoria de João, um dos discípulos. Quando seus colegas de discipulado e os bispos o encorajaram, João disse: “Jejum comigo por três dias, e o que vier a ser revelado a cada um, seja isso contado aos demais”. Naquela mesma noite foi revelado a André, um dos apóstolos, que João, em seu próprio nome, deveria escrever tudo e que eles deveriam revisá-lo. Assim, embora haja indícios diferentes para os vários livros do evangelho, isso não faz diferença para a fé dos crentes, uma vez que em todos eles tudo foi declarado por um Espírito primário, com respeito à sua [de Cristo] natividade, paixão e ressurreição, sua associação com os discípulos e seu duplo advento – o primeiro em humildade, quando foi desprezado, e que já ocorreu; o segundo, resplendente em poder real, sua segunda vinda. Não é de espantar, portanto, que João apresente os detalhes com tanta freqüência também em suas cartas, dizendo a respeito de si mesmo: “O que vimos com nossos olhos, e ouvimos com nossos ouvidos, e as nossas mãos apalparam, isso vos escrevemos”. Dessa maneira ele alega não ter sido apenas espectador, mas também ouvinte, e também alguém que escreveu de maneira ordenada os fatos maravilhosos sobre nosso Senhor.

Os Atos de todos os apóstolos foram escritos em um livro. Dirigindo-se ao excelentíssimo Teófilo, Lucas inclui uma por uma as coisas que foram feitas em sua presença, o que ele deixa claro ao omitir a paixão de Pedro e também a partida de Paulo, quando se preparava para partir da cidade [Roma] para a Espanha.

Quanto às cartas de Paulo, elas mesmas demonstram aos que querem entender de que lugar e por que razão foram escritas. Em primeiro lugar, ele escreveu para os coríntios, proibindo cismas e heresias. Depois, aos gálatas, [proibindo] a circuncisão. Depois aos romanos, uma longa carta sobre a ordem das Escrituras e também insistindo que Cristo era seu tema primário. É necessário prestarmos um relato lógico de todas elas uma vez que o bendito apóstolo Paulo, seguindo a ordem de seu predecessor João, sem, contudo, nomeá-lo, escreve a sete igrejas na seguinte ordem: em primeiro lugar, aos coríntios, em segundo, aos efésios, em terceiro, aos filipenses, em quarto, aos colossenses, em quinto, aos gálatas, em sexto, aos tessalonicenses e em sétimo, aos romanos. E ainda que [a mensagem] seja repetida aos coríntios e aos tessalonicenses a título de advertência, apenas uma igreja é reconhecida como a que se espalhou por todo o mundo. Pois também João, ainda que escreva a sete igrejas em Apocalipse, fala a todas as igreja

s. Além disso, [Paulo escreveu] uma carta a Filemom, uma a Tito e duas a Timóteo em amor e afeição. Essas, porém foram santificadas para a honra da Igreja Católica no que tange à regulamentação da disciplina eclesiástica.

Diz-se ainda haver uma carta em nome de Paulo aos laodicenses e outra aos alexandrinos, [ambas] forjadas de acordo com a heresia de Marcion, e muitas que não podem ser recebidas na Igreja Católica, já que não convém que se misture veneno ao mel.

A carta de Judas, porém, e as duas que tem no sobrescrito o nome de João, são aceitas na [Igreja] Católica. Também a Sabedoria, escrita pelos amigos de Salomão em sua honra. Além dessas, recebemos o Apocalipse de João e o de Pedro, que alguns dentre nós não permitem que seja lido na igreja. Mas O Pastor foi escrito por Hermas na cidade de Roma, bem recentemente, em nossa época, quando seu irmão Pio ocupava a cátedra episcopal na igreja da cidade de Roma. Pode, portanto, ser lido, mas não distribuído ao povo na igreja, nem incluído entre os pofetas, cujo número está completo, nem entre os apóstolos no fim dos tempos.

Nenhum dos escritos de Arsino, ou Valentino, ou Miltíades, nós acolhemos. Esses compuseram um novo livro de Salmos para Marcion; [a estes] rejeitamos comBasílides [e] o fundador dos Catafrígios que veio da Ásia...

Retirado do livro "O Cânon das Escrituras" de F. F. Bruce.

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