Estarei postando aos poucos um texto de Geza Vermes sobre o Jesus Histórico na medida em que for copiando os trechos de seu livro (A religião de Jesus, o judeu).
Detalhe: ele é judeu.
E ao contrário dos que criticam as atitudes de Jesus sem conhecê-las de fato (e parece que sem conhecer o judaísmo, principalmente no primeiro século), apenas pra fazer ataques anti-missionários (como já vi alguns outros judeus), ele defende que Jesus cumpriu sim a lei.
As notas colocarei em uma postagem final, onde vou listar os textos com um indice.
- O Shabat
As curas atribuídas a Jesus no Shabat são poucas e não muito freqüentes. Dos três eventos registrados, o caso do homem com a mão atrofiada é atestado por todos os três evangelistas sinóticos (Mc 3, 1-6; Mt 12, 9-14; Lc 6, 6-11) mas a cura da mulher encurvada (Lc 13, 10-17) e do homem que sofria de hidropsia são testemunhados apenas em Lucas (Lc 13, 10-17; 14, 1-6). Observadores conservadores e hostis julgaram perturbador o comportamento de Jesus, embora não patentemente ilegal. Daí, algumas questões tinham de ser levantadas. De acordo com os relatos do Evangelho, estas questões foram formuladas seja por críticos de Jesus, ‘É permitido curar no Shabat?” )Mt 12, 10), seja pelo próprio Jesus para finalidades didáticas, “É permitido, no Shabat, fazer o bem ou fazer o mal, salvar a vida ou matar?” (Mc 3, 4; Lc 6, 9; Lc 14, 3). [14]
Confrontamo-nos aqui com o habitual conflito entre mandamentos e com a questão de qual dos dois é preponderante. O principio geral nunca esteve em dúvida no judaísmo: salvar vidas sempre teve a prioridade. Em relação a Ex 31, 13-16, o midrash tanaítico, Mekhilta de Rabi Ishmael (Ed. Lauterbach III, 197-9) faz a pergunta: “Como sabermos que o dever de salvar uma vida é mais importante que as leis do Shabat?” Dois rabis do segundo século A.D. respondem afirmativamente por meio de um raciocínio a fortiori: a circuncisão, que afeta apenas uma parte do corpo, é licita no Shabat (Eleazar bem Azariá); a execução de um assassino (ou seja, [tirar] uma vida) é mais importante que o serviço do Templo; o serviço do Templo tem precedência sobre o Shabat (R. Akiba); que dizer então de salvar todo um corpo, uma vida. Ou, mais concisamente, “Consideração pela vida prevalece sobre o Shabat” (bYoma 85b). Além disso, no caso de qualquer dúvida quanto à gravidade potencial de uma doença, a presunção legal favorece uma intervenção e a Mishná (Yoma 8,6) cita o principio: “Sempre que houver dúvida relativa a perigo de vida (o caso discutido é uma dor de garganta!), a questão é mais importante que o Shabat.” Caso o próprio Jesus sentisse ser necessário defender suas ações verbalmente, ou, mais provavelmente, seus seguidores judeus-cristãos o fizeram mais tarde, a atitude básica de Jesus e seus argumentos – ou de seus discípulos, são os mesmos que os dos rabis: um judeu pode levantar, no Shabat, uma ovelha que caiu numa vala; a fortiori uma vida humana pode ser salva (Mt 13, 11-12); pode tirar de um poço tanto seu filho quanto um boi 9Lc 14,5). [15]
Resumindo, de acordo com as palavras colocadas por Mateus (12,12) nos lábios de Jesus, “é lícito praticar o bem no Shabat”. Todo o debate, entretanto, parece ser uma tempestade em copo de água já que nenhuma das curas de Jesus demandava ‘trabalho’ mas eram operadas por meio de palavras ou, no máximo, pela imposição de mãos ou outro contato físico simples. [16]
É digno de nota que, no relato de Lucas (13, 10-17), a cura da mulher que sofria de curvatura da espinha, retratada em linguagem mágica como uma pessoa “atada” pelo diabo, é descrita como um ato de “libertação”: “Cada um de vós, no sábado, não desata seu boi ou seu asno do estábulo para levá-lo a beber? E esta filha de Abraão que Satanás atou há dezoito anos, não convinha desatá-la no Shabat?” É interessante notar que, aqui, a expressão metafórica de atar e desatar é usada num argumento a fortiori contra o constumeiro amarrar e desamarrar de animais domésticos no Shabat embora, em seu principio, ambos atos sejam caracterizados com trabalho na Mishná (Shab. 7,2).
A segunda alegação, de que Jesus teria desrespeitado a opinião geral no mesmo terreno do repouso sabático, prende-se a um episódio, sem dúvida mais didático que histórico, que figura em todos os sinóticos (Mc 2,23-28; Mt 12,1-8; Lc 6,1-50). Atravessando um campo no Shabat, os discípulos, mas não Jesus, arrancaram espigas de milho, possivelmente as debulharam com as mãos (Lc 6,1) e as comeram. Embora este ato, praticado em campo alheio, não fosse considerado crime segundo a lei bíblica (Dt 23,250, poderia ser compreendido como transgressão às normas do Shabat que, juntamente com trina e oito outros atos de “trabalho”, proíbe “colher” (mShab. 7,2), o que poderia se aplicar a arrancar espigas de milho. O argumento principal, preservado nos três sinóticos 9Mc 2,25-26; Mt 12,3-4; Lc 6,3-4), segundo o qual a violação do Shabat é relevada, é que a fome 9que pode levar a inanição e portanto a morte0, se insere na categoria do perigo de vida. Logo, aliviar a fome é mais importante que a lei do Shabat, do mesmo modo que é relevada, no caso de Davi e de seus soldados famintos, a proibição de leigos comerem do pão consagrado, destinado apenas aos sacerdotes 9cf. Lev 24, 5-9 e 1Sm21,1-7;. [17]
A resposta sucinta atribuída a Jesus em Mc 2,27. “O Shabat foi entregue ao homem e não o homem ao Shabat”, tem firmes raízes no pensamento rabínico. Ainda no mesmo extrato da Mekhilta, não influenciada pelo Novo Testamento, R. Simão bem Menasiá, mestre tanaítico do final do segundo século A.D., apregoa a mesma doutrina em relação a EX 31-14, ‘Guardarás o Shabat porque é santo para ti’; “O Shabat é dado a ti e não tu ao Shabat”. A mesma exegese é transmitida em nome de R. Jônatas bem José, discípulo de R. Ishmael 9bYoma 85b). A declaração atribuída a Jesus certamente não é a fonte da declaração rabínica; ela na verdade sugere que a idéia era corrente por algum tempo, antes que os tanaim do segundo século lhe dessem uma justificação exegética.
De maneira geral, a observação do Shabat no segundo século, e provavelmente também no primeiro, era subserviente ao bem-estar essencial de um judeu. Nas palavras de Rabi Natã, “Vede o que é dito, ‘Portanto, os filhos de Israel guardarão o Shabat e o observarão de geração a geração’ (Ex 31,16) – Um Shabat pode ser profanado para que se possa guardar muitos (outros) Shabats” (Mekhilta, Ed. Lauterbach III, 198-9).
- As leis dietéticas
Deixando de lado a controvérsia em Mc 7 e Mt 15, referente às regras tradicionais no que toca lavar as mãos antes das refeições e que pode ser devida a uma maior estima pela Bíblia que a costumes ancestrais – os culpados são, mais uma vez, os discípulos e não Jesus – a atenção pode ser focada na afirmação crucial de Marcos de que Jesus tinha declarado todos os alimentos puros (Mc 7, 19), revogando assim um segmento substancial da Torá de Moisés (cf. JWJ 46 e n. 100. O debate ainda não está encerrado e argumentos eruditos continuam a ser expostos com a finalidade de determinar a posição de Jesus face à Halahá corrente em sua época. [18]
Poderia, no entanto, parecer que os pesquisadores do Novo Testamento se envem aqui em discussões laterais. Por um lado, consideram Jesus como um rabi, preocupado com filigranas legais, quando qualquer leitura séria dos Evangelhos deveria revelar que ele não pertencia a essa estripe. Mas particularmente, o que quer que fosse que ele desejava transmitir por “Ouvi e entendei: nada há no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, é o que o torna impuro” (Mt 15, 11-12; Mc 7,14-15), máxima interpretada magistralmente por Sanders (Jewish Law, 28), não se tratava certamente de uma ab-rogação das leis dietéticas. Na verdade, se a expressão “purificar todos os alimentos” que aparece em Mc 7, 19, mas não em Mt 15, 17, estiver corretamente parafraseada como “Assim declarou puro todos os alimentos”, só pode ser vista como uma glosa introduzida pelo redator de Marcos, não tendo nada a ver com a narrativa original e muito menos com Jesus. Esta é a hipótese mais provável, já que a primeira geração dos seguidores de Jesus viviam em total ignorância da revogação da distinção entre alimento puro e impuro.
A reação de Pedro à ordem de uma voz celeste, “Mata e come!”, no decorrer de uma visão em que todas as espécies de animais desciam do céu seguros por um lençol, é instintiva e explosiva> “De modo nenhum, Senhor, pois jamais comi coisa alguma profana ou impura” (At 10, 13-140. Mais uma vez, para o aborrecimento de Paulo e Barnabé, Pedro “e o resto dos judeus”, na igreja cristã de Antioquia, sentiram-se obrigados a abandonar o convívio à mesa com cristãos gentios, o que faziam prazerosamente antes da visita dos “homens de Tiago” isto é, membros estritamente praticantes ou “judaizantes” da comunidade de Jerusalém 9Gl 2,11-14). Estes relatos não teriam nenhum sentido se Jesus tivesse de fato “declarado puro todos os alimentos”. [19]
Em suma, quer ao âmbito das leis do Shabat ou dos regulamentos dietéticos, não se pode sustentar que Jesus se opunha à sua observância. Sua abordagem e percepção da mensagem principal da Torá podem trazer uma marca individual mas, nem de modo geral nem em qualquer ponto particular, ele pode ser identificado como um mestre antinomiano. [20]
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