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- A devoção filial
A maior parte do ensinamento de Jesus em matéria ética se prende a uma interpretação direta ou indireta do Decálogo. Sua adesão implícita ao quinto mandamento manifesta-se em suas admoestações quanto à irreligiosidade, dirigidas a um grupo de fariseus em Jerusalém ou a escribas que visitavam a Galiléia (Mc 7,1; Mt 15,10). Eles são acusados de terem elevado o cumprimento de um voto que requeria uma doação ao Templo, regra tradicional conhecida como qorban, acima do dever de prestar assistência aos pais, embora este último derive de uma injunção divina “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20,12; Dt 5,16). [21]
De qualquer modo, e apesar da ênfase habitual de Jesus ao caráter essencial dos Dez Mandamentos, não se pode negar que lhe são atribuídas três afirmações que não são de todo consoantes com a devoção filial. Assim, ele proclama que ouvir a palavra de Deus tem precedência sobre o mero parentesco natural, e também que a mãe e irmãos não ocupam lugar especial quando se trata de pregar o Reino do céu. Assim, Jesus declara:
Quem cumprir a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e minha mãe (Mc 3,35; cf Mt 12,50)
Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a obedecem (Lc 8,210.
Do mesmo modo, assim como no pensamento rabínico o respeito ao mestre quase se iguala ao respeito ao céu (mAb. 4,12), de acordo com Jesus, um mestre reconhecido como mensageiro de Deus deve ter precedência sobre a família. Ou, segundo as densas formulações de Lucas, que são provavelmente as expressões originais de Q, comparadas com a versão mais serena de Mateus, onde a expressão “amar mais” é substituída por “odiar”:
Se alguém vier a mim e não odiar seu próprio pai e mãe e mulher e filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo (Lc 14,26; Mt 10,37).
Embora estes dois pronunciamentos possam ser lidos como irremediavelmente em conflito com a devoção devida aos pais, é uma terceira – igualmente atribuída a Q e geralmente reconhecida como declaração genuína de Jesus – que se tornou, emm anos recentes, a principal fonte a partir da qual os pesquisadores se esforçam em deduzir que Jesus desobedecia a um dos preceitos básicos da Torá. Trata-se da ordem notória dirigida a um homem que desejava tornar-se discípulo mais se sentia impedido de seguir Jesus até que pudesse enterrar seu pai.
Disse [Jesus] a outro: “segue-me”. Este respondeu: “Permite-me ir primeiro enterrar meu pai”. “Deixa que os mortos enterrem seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o Reino de Deus”. (Lc 9,59-60; Mt 8,21-22).
Uma opinião comum entre os exegetas do Novo Testamento, que as palavras de Jesus não só pareceram chocantes a seus contemporâneos mas também que, efetivamente, elas ab-rogavam a Torá. Já que esta opinião foi exposta não só pelos estudiosos da velha escola, mas mesmo por um escritor de profundos conhecimentos e também simpatizante quanto aos estudos judaicos e ao judaísmo como E. P. Sanders, ela merece ser considerada seriamente. [22]
Colocando o “Segue-me” de Jesus em relação ao dever mais fundamental, sólida e universalmente atestado no judaísmo e fora dele, de assegurar que pai ou mãe mortos recebam um enterro reverente, Sanders é levado, ao fim de um exame minucioso, a formular uma “modesta conclusão”.
Ao menos por uma vez Jesus quis dizer que acompanhá-lo se sobrepunha às exigências da devoção e da Torá. Isto pode mostrar sua disposição, caso necessário, de desafiar a adequação do ensinamento mosaico. (J &J, 225).
O que Sanders e seus colegas consideram é o caso de um homem cujo pai acabara de morrer e a quem Jesus ordena de juntar-se a ele e aos seus discípulos imediatamente, sem esperar as poucas horas necessárias para preparar e executar os rituais fúnebres que deveriam acontecer no mesmo dia da morte, antes do anoitecer, mesmo no caso de criminosos executados (Dt 21,23). Sanders distingue dois impulsos no pronunciamento, um positivo e o outro negativo. O primeiro, “o chamado ao discipulado ... que tem precedência sobre outras responsabilidades” (J & J, 253), é considerado no contexto do Evangelho como lógico e compreensível por si mesmo. O segundo, entretanto, tem implicações mais profundas que são usualmente negligenciadas, tal como determinar se a “desobediência às prescrições quanto aos deveres fúnebres a serem prestados ao pai ou à mãe constitui efetivamente uma desobediência a Deus” (IBID).
Tal dicotomia é, creio, muito desnorteadora. Como anteriormente, defrontamo-nos com um conflito entre prescrições: deve-se ao mesmo tempo honrar (e logo enterrar) o pai, e estar pronto para se devotar à rápida realização do Reino de Deus; este é o problema real, e não uma simples afiliação ao grupo dos discípulos de Jesus. No caso destes deveres conflitantes, a responsabilidade pela inevitável “desobediência” a um dos preceitos pode ser unicamente atribuída a Deus. [23]
Quanto à escolha a ser feita para a solução do dilema, os exemplos dados acima, bem como todo o ensinamento de Jesus referente ao Reino, não nos deixa em nenhuma dúvida sobre onde, em sua opinião, deveria se encontrar a prioridade. Se, neste contexto, o “movimento negativo” tenha sido sentido conscientemente, o evangelista poderia ter tratado dele na forma de um questionamento hostil. Porém não o fez.
Dito isto, e tendo reconhecido que o “movimento positivo” da declaração faz sentido, ainda me pergunto se a compreensão literal do episódio – o chamado de Jesus a um homem que tinha acabado de perder o pai – deveria ser aceito como evidente por si só. Porque, apesar da ausência de detalhes circunstanciais tanto em Lucas quanto em Mateus, a presumida realidade do diálogo requer um contexto válido, do ponto de vista histórico e psicológico.
Provavelmente o homem não era um desconhecido, abruptamente interpelado por Jesus; de fato Mt 8,21 o identifica como um “discípulo. Mas o que estava fazendo este homem entre os seguidores de Jesus quando deveria estar se ocupando com assuntos fúnebres, já que seu pai deveria ser enterrado dentro de poucas horas? Poderia ocorrer que as palavras do discípulo tivessem um significado menos direto? Acaso, de maneira levemente confusa e tímida, ele tencionasse sugerir que não desejava seguir Jesus imediatamente, e usou seu eventual dever filial de enterrar o pai (velho e doente?) como uma desculpa para a proscrastinação, a resposta cortante de Jesus não surpreenderia ninguém. Deixem os mortos (isto é, os outros membros de tua família que não demonstraram nenhum interesse em procurar a vida do Reino de Deus0 cuidar de seus mortos. [24]
Mesmo admitindo que esta exegese não possa ser considerada imperativa, ela certamente proporciona um sentido não menos satisfatório, e provavelmente mais, que as interpretações comumente sustentadas. Não é necessário dizer, ela nos liberta da falsa pista do desafio de Jesus quanto à “adequação do ensinamento mosaico, ou, mais exatamente e mesmo incrivelmente, à validade do Decálogo.
- As assim chamadas antíteses
O Sermão da Montanha contém 6 seções (ou cinco, se as máximas sobre o adultério e divórcio forem tomadas como uma seção) nas quais uma lei bíblica, introduzida pela expressão, “ouvistes o que foi dito aos homens antigamente”, ou simplesmente “ouvistes o que foi dito”, é contrastada pela declaração de Jesus “mas eu vos digo”. As palavras em questão estão preservadas nesta forma apenas pelo evangelista Mateus. A atitude dos pesquisadores em relação a elas varia: sua autenticidade, completa ou parcial, é reconhecida por alguns, porém questionada por outros. Curiosamente, os julgamentos críticos são freqüentemente baseados nas razões mais inesperadas. As antíteses são consideradas genuínas por pesquisadores que nelas descobriram munição para suas teses “antijudaicas”, ou seja, que Jesus rejeitou a Torá, enquanto alguns deles que adotam uma posição “pró-judaica” as declaram inautênticas porque refletem um retrato de Jesus não suficientemente distinto do de um fariseu. [25]
De nossa perspectiva, a autenticidade verbal realmente não importa se pudermos nos certificar que a essência do ensinamento pode ser seguramente atribuída a Jesus. Em outras palavras, estamos mais interessados na mensagem [ad sensum] do que nas[ ipsissima verba] do mensageiro. Além disso, a principal tarefa é determinar a atitude de Jesus para com a Torá; a efetiva inclinação doutrinal revelada nessas passagens será investigada mais tarde, no decorrer de nossa tentativa de delinear o retrato da personalidade religiosa de Jesus (cf. o cap. 7 do Livro).
Jesus e o homicídio (Mt 5, 21-26) – A forma desta declaração e das que seguem é muito particular e sem paralelo quer no Novo Testamento quer em nenhuma outra parte na antiga literatura judaica. A formula “Ouvistes, etc.” introduz uma citação do Pentateuco, “Não matarás” (Ex 20,13; Dt 5,7) a qual aqui (como em Mt 5,43) um suplemento parafrástico, do tipo Targum é acrescentado: “e quem matar terá de responder no tribunal”. A assim chamada antítese não deve ser compreendida, em seu significado verdadeiro, como uma contradição. Não é relatado que Jesus, após a expressão solene “eu porém vos digo”, afirmastes que o homicídio é permissível ou mesmo obrigatório, mas que “todo aquele que se encolerizar contra seu irmão terá de responder no tribunal”. Ele antecipa, em outras palavras, a possibilidade de homicidio ao condenar sua principal causa, interna, a cólera, que pode primeiramente levar a insultos verbais e em seguida à viol~encia física. A correção deste raciocínio é reforçada pelo modelo rabínico. Uma linha similar de raciocínio, formulada explicitamente e por meio de citações da escritura, figura o midrash tanaítico, Sifre de Dt 19, 10-11 (186-7):
Para que sangue inocente não seja derramado ... e assim a culpa do derramamento de sangue recairá sobre ti ... Mas se um homem odeia seu vizinho, o espera no caminho e o ataca ... A este respeito foi dito; Um homem que transgredir um mandamento leve acabara por transgredir um mandamento passado. Se transgredir Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Lv 19,18), acabará por transgredir Não te vingarás e não guardarás rancor (IBID) e Não odiarás teu irmão (Lv 19,17), e Que teu irmão posa viver a teu lado (Lv 25,36) até quando ele derramar sangue. [26]
A panacéia prescrita por Jesus para neutralizar sentimentos de hostilidade e eliminar suas conseqüências é uma reconciliação rápida.
Portanto, se estiveres para trazer tua oferenda ao altar e ali te lembrares do que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão e depois virás apresentar tua oferenda. Reconcilia-te logo com aquele que te acusa ... (Mt 5,23-25)
Como estas palavras de Jesus e outras parecidas puderam ser compreendidas como equivalentes a “destruir a letra da Lei” nas palavras de Ernst Kasemann, não pode ser explicado apenas em bases de pesquisa. [27]
Incidentalmente, as antíteses de Jesus não diferem, do ponto de vista estrutural, daquelas que, segundo Mc 7,19-13 (Mt 15, 4-6), se diz que os fariseus expuseram sua doutrina a propósito do qorban “Moisés disse ... vós porém dizeis” (Mc) ou, mesmo com mais força, “Deus ordenou ... vós porem dizeis” 9Mt). Não é necessário dizer que é possível debater a natureza dos contrastes em questão, mas aqui a questão central é que, se o ensinamento de Jesus “destrói a letra da Lei”, o ensinamento dos fariseus parece fazer o mesmo, o que é, realmente, um contra-senso. [28]
Jesus sobre o adultério (Mt 5,27-300 – Assim como a cólera deve ser evitada ou controlada antes que leve ao homicídio, olhar uma mulher com desejo sexual deveria ser igualmente evitado não só porque leva ao adultério mas porque o próprio pensamento equivale ao adultério, Mas uma vez, a Torá (Ex 20-14; Dt 5,17) é reforçada e como que protegida ao invés de ser declarada obsoleta por implicação.
Ao identificar a culpa incorrida através da imaginação com a que corresponde ao próprio ato, Jesus reflete a visão religiosa básica distinta da legal, do judaísmo rabínico contemporâneo e posterior. As expressões “cobiçar com os olhos”, “caminhar com o coração cheio de pecado e olhos cobiçadores”, “seguir a inclinação da culpa e com olhos cobiçadores” para significar a fonte radical da ação pecaminosa, são familiares aos leitores dos Pergaminhos do Mar Morto (1QpHab 5,7; 1QS 1,6; 11QTS 59,4). A mesma perspectiva, expressa em termos gerais, é também testemunhada por Flávio Josefo quando escreve no seu sumário da lei mosaica em Contra Apionem (ii. 183): “Para nós ... a única sabedoria, a única virtude consiste em se abster de toda ação, de todo pensamento que seja contrário às leis originalmente formuladas”. E novamente 9ibid. 2170. ‘A mera intenção de fazer o mal aos próprios pais ou de cometer impiedade contra Deus é seguida de morte imediata”. [29]
A mesma tendência é também refletida nos escritos rabínicos posteriores. “Seguir teus olhos” é equacionado com “fornicação” por um exegeta anônimo em Sifre de Nm 15,39 (115). Exagerando o caso, o Talmude Babilônico (Yoma 29a) considera pensamentos luxuriosos como mais pecaminosos que sua realização. E o tratado pós-talmudico Kalá (1) apresenta a formula perfeita: “Aquele que olhar com luxúria para uma mulher é como aquele que manteve relações sexuais ilícitas com ela”.[30]
Jesus sobre o divórcio (Mt 5,31-32) – A fórmula introdutória “Também foi dito”, precedendo a paráfrase da injunção mosaica relativa ao get, documento mediante o qual o divórcio é efetuado (Dt 24,10, é mais breve do que as duas anteriores e pode sugerir, como uma expressão similar, “e aquilo que Ele disse”, nos comentário pesher de Qumran, que a citação deve ser associada à passagem bíblica precedente. De modo que Mt 5,31-32 deveria ser lido em conjunto com os versículos 27-30, indicando que o divórcio é considerado como uma subseção do adultério. Para compreensão mais completa, a passagem deve ser considerada juntamente com as outras afirmações sobre o divórcio no Evangelho, em Mt 19,3-12; Mc 10,2-12; 9Lc 16,18), que têm sido sujeitas a um exame freqüente e exaustivo no contexto das idéias intertestamentarias judaicas referentes ao assunto. [31]
Sem tentar expor todos os detalhes da questão, devemos notar que Jesus, assim como os essênios, segundo o Documento de Damasco (CD, 4,21), viu em Gn 1,27 (“macho e fêmea ele os criou”) e 2,24 (“eles se tornaram uma só carne”) a quintessência do casamento estabelecido por principio divino (Mt 19, 4-5; Mc 10, 6-80. Novo casamento após o divórcio conflita com esta unidade quase metafísica e, num mundo ideal, equivale ao adultério, quer dizer, á destruição do elo original. Poderia parecer que, implicitamente, a mesma idéia fundamenta a legislação do divórcio em Dt 24, 1-4, onde o caso especifico do intento de um homem de casar novamente com sua primeira mulher a qual, após o divorcio, ou tinha se casado com outro homem que a repudiou ou tinha enviuvado. Esta união não é permitida, já que o vinculo sexual com o segundo marido tinha tornado impura em relação ao primeiro, tornando-a então incapacitada para a restauração dos vínculos maritais. [32]
Na versão de Marcos (10,11-12), ecoada em Paulo, que formula esta regra como um mandamento de Deus (1Co 7,10-11), qualquer casamento com um novo parceiro equivale a adultério enquanto que, no relato de Mateus (19,9), existe uma cláusula de exceção, a saber, o adultério anterior da mulher, mediante o qual a unidade do casal já tinha sido destruída. Neste caso, Jesus é mostrado por Mateus como aderindo à posição mais estrita da escola de Shamai, que autorizava o divórcio apenas com base em transgressões sexuais, contra o super-benevolente ensino da escola de Hilel, que permitia o divórcio praticamente por “qualquer causa” (Mt 19,3). [33]
Porém, qualquer que seja o modo pelo qual Jesus considerava o vínculo conjugal, se o via como absoluta e incondicionalmente indissolúvel, sua mensagem, tal como se apresenta, não pode, em nenhuma circunstância, ser equacionada com uma condenação da concessão divina do divórcio, outorgada por Deus através de Moisés devido à fraqueza da natureza humana. [34]
Jesus e juramentos (Mt 5, 33-37) – O mandamento relativo ao perjúrio é ainda menos citado na Bíblia do que a lei referente ao homicidio. “Não jurarás em falso mas cumpriras teus juramentos para com o Senhor” é, novamente, uma versão alterada, do tipo Targum, parafraseando Lv 19,12 (“Não jurareis falsamente em meu nome”) combinado com Dt 23,24 (23) (“Cuidarás de cumprir o voto que teus lábios proferiram uma vez que com tua própria boca ofereceste espontaneamente um voto ao Senhor teu Deus”). De modo que, estritamente falando, a “antítese” não se refere ao preceito mosaico. No final dos tempos, Jesus tenciona descartar toda a parafernália ligada a juramentos e votos como desnecessária. Por esta razão, ele declara redundante a multidão de termos substitutos para Deus, comumente usados. Existem alusões a estes [kinnuyim], como os chamavam os rabis, na Regra de Damasco (15,1); foram adotados pelos fariseus segundo Mt 23,16-22, e recomendados, quando juramentos eram inevitáveis, por Filo (Spec. Leg. Ii, 2-5). Estas medidas protetoras adicionais foram introduzidas para assegurar que o nome divino nunca fosse tomado em vão, nem mesmo por erro ou inadvertência. Mas o centro da doutrina de Jesus é que, em meio a pessoas sinceras, solenidades especiais não são necessárias: um “sim” ou um “não” deveriam bastar (Tg 5,12).
A abstenção deliberada de juramentos não é exclusividade do pensamento de Jesus. A mesma atitude é atribuída aos essênios, tanto por Filo quanto por Josefo:
Eles mostram seu amor a Deus ... abstendo-se de juramentos, por sua veracidade ... (Omnis probus 84)
Tudo o que eles dizem é mais certo que um juramento. Na verdade, jurar é rejeitado por eles como sendo pior que o perjúrio. Porque aquele que não merece crença sem invocar Deus já está condenado (Guerra ii, 135)
Além disso, Filo apresenta o excesso de juramentos como parte integral da vida virtuosa e conseqüência natural da moralidade:
A palavra de um homem bom... deveria ser um juramento, firme, inabalável, completamente livre de falsidade, firmemente plantado na verdade (Spec.Leg ii. 2; cf. Decal. 84).
A aceitação dos Dez Mandamentos pelos israelitas foi marcada, de acordo com os sábios rabínicos, por um solene sim ou sim, sim, não ou não, não. Acredita-se que as palavras possuam a força obrigatória de um juramento. [35] Mais uma vez, o que é característico de Jesus é a grande ênfase que atribui a idéias que estão presentes, porém menos destacadas de forma absoluta, na antiga devoção judaica.
Jesus e a retaliação (Mt 5,38-42) – Numa hiperbólica negação da vingança, a [vetusta Lex talionis] – “Ouvistes que foi dito, um olho por um olho, um dente por um dente” (Ex 21,240 é contrastada não apenas com a resistência passiva – “Eu porém vos digo: não resistais ao homem mau” – mas com uma espécie de submissão provocativa, transmitida pelo conselho de oferecer a face esquerda a alguém que tinha sido golpeado na face direita (cf. Lc 6,29). O fato que os dois exemplos seguintes em Mateus, um deles ecoado em Lc 6,29, isto é, entregar uma túnica a alguém que pede apenas uma camisa ou andar o dobro da distância pedida, indica que a supererrogação é o tema central.
É quase desnecessário lembrar que no ensinamento pós-bíblico, Ex 21,24 não era interpretado literalmente como exigindo que um dano correspondente fosse infligido à pessoa culpada de causar injúria corporal. Uma vingança sangrenta era substituída por uma compensação monetária judicialmente estabelecida. Josefo conhecia este procedimento (Ant. iv. 280), e este principio é pressuposto na Mishná (cf. Mbq 8,1). A Mekhilta de Ex 21,24 (III, 67) equaciona simplesmente “olho por olho” com mamon, isto é (olho-) dinheiro. Os Targums palestinianos oferecem uma paráfrase muito clara: “O valor de um olho por um olho; o valor de um dente por um dente; o valor de uma mão por uma mão, o valor de um é por um pé”, etc. [36]
Para melhor compreensão dessa declaração impraticável – afinal, nem mesmo o Novo Testamento, na pessoa do quarto evangelista, faz Jesus aceder a ela literalmente, já que, quando golpeado por um guarda do Templo, ele não é descrito oferecendo a outra face mas protestando com dignidade (Jo 18, 23) – em Lc 6,27-36 “oferece a outra face” e “ama teus inimigos” se fundem para formar uma doutrina dentro de uma única perspectiva.
Jesus e o amor aos inimigos (Mt 5,43-48) – “Ouvistes o que foi dito ‘Amarás teu próximo e odiarás teu inimigo’. Porém eu vos digo ‘Ama teus inimigos...’”. O versículo citado é Lv 19,18, “Amarás teu próximo”. [37] Está separado de sua conclusão “como a ti mesmo” ou talvez “pois ele é igual a ti” mas é seguido, por outro lado, de uma declaração complementar ausente na Bíblia, “e odeia teu inimigo”. O ensinamento derivado do preceito encotnrado em Mt 5,45-8, parafraseado livremente em Lc 6,32-6, é usualmente atribuído a Q. Seu significado fundamental é que o amor humano deve se esforçar em imitar o amor de Deus pela humanidade; deve ser desinteressado, não procurando recompensa, refletindo assim a generosidade, compaixão e perfeição divinas. A oportunidade extrema e hiperbólica para a demonstração desta bondade altruísta e como que sobre-humana, aparece naquele a quem nada é devido e do qual nenhuma compaixão, de qualquer espécie, pode ser esperada. O comportamento caridoso para com um inimigo é a receita para alguém que procura se tornar perfeito do mesmo modo que o Pai celestial é perfeito.
Embora “odeia teu inimigo” possa ser visto como a contrapartida negativa de “ama teu próximo” – e os dois, amor pelos filhos da Luz e ódio pelos filhos das Trevas, encontram-se instintivamente acoplados na Regra da Comunidade de Qumran (1QS 1,9-100 – a associação não tem fundamento bíblico e provém, mais provavelmente de Mateus do que de Jesus. A opinião de que possa ter sido tirada de um Targum perdido é pura especulação. [38] O paralelo mais próximo deste ensinamento de Jesus, tão debatido, pode ser encontrado na declaração sem duvida menos colorida de Josefo, que Moisés inculcava [epieikeia] (generosidade, consideração, gentileza) mesmo para com inimigos declarados (C. Ap. ii. 211).
Em resumo, pode-se concluir que, enquanto as seus “antíteses”, apesar da possibilidade de Mateus ter introduzido alterações na redação, possam ser aceitas como transmitindo o sentido geral senão as palavras reais do ensino correspondente de Jesus, elas não podem, de modo algum, ser identificadas como um ataque frontal de Jesus à Lei de Moisés ou ao judaísmo tradicional.
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Comentários de Anscar Vonier sobre alguns trechos importantes:
"É possível distinguir entre a santidade pessoal de Nossa Senhora e a sua divina maternidade. Sua imaculada conceição, sua impecabilidade e sua imensa caridade podem ser consideradas como sua santidade pessoal. Ela já estava dotada desta santidade pessoal quando o Arcanjo Gabriel aproximou-se com sua grande mensagem: “Ave, cheia de Graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres”. Era grande a santidade de Maria naquele momento em que precedeu sua divina maternidade, e não há nada que poderia compelir-nos a dizer que tal santidade não seria garantida por Deus a um ser que humano independente do mistério da divina maternidade. Deus poderia garantir o privilégio da imaculada conceição e da absoluta ausência de pecado na alma de alguém nascido de Adão.
As palavras do espírito celeste são a imagem da alma de Maria tal como era antes que mistério da Encarnação elevasse esta alma a um plano de santidade e perfeição inteiramente novo. As palavras do Anjo referem-se ao estado atual, quando o imaculado anjo encontra a Imaculada.
Em uma passagem memorável dos Evangelhos encontramos a distinção entre a divina maternidade de Maria e sua santidade pessoal usada pelo próprio Cristo ao realçar a importância da sua santidade pessoal. “Aconteceu que, enquanto ele dizia estas palavras, uma mulher, levantando a voz do meio da multidão, disse-lhe: ‘Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos a que foste amamentado’. Porém ele disse: ‘Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus, e a põem em prática’ (Lucas XI, 27-28). Este contraste entre a maternidade divina e a santidade pessoal feita pelo Filho de Deus é, sem dúvida, uma das coisas mais eficazes nos sagrados Evangelhos. A circunstância em que devemos esta passagem de São Lucas não é irrelevante; São Lucas é o Evangelista da divina maternidade acima dos outros Evangelistas, e temos aqui a última das três bênçãos relacionadas a Maria que foram enumeradas por ele, a primeira sendo encontrada na saudação de Gabriel, e a segunda na saudação da qual Isabel encontrou sua prima.
Nada no mundo dar-nos-ia uma visão mais exaltada do valor e natureza da santidade do que a resposta de Nosso Senhor ao louvor desta mulher sobre a maternidade divina. Aprendemos nesta grande lição que nada é mais complicado ao homem que um amor prático e a apreciação das coisas que constituem a santidade pessoal. A maravilha espiritual mais elevada está, pelas leis da vida divina, intimamente conectada com a santidade pessoal.
Mas nada, por outro lado, seria menos justificável que ler nas palavras de Nosso Senhor a mínima depreciação à dignidade da maternidade divina como tal. Ele enfatiza o valor da santidade pessoal pelo significado da mais elevada forma de comparação criada, a maternidade divina. Seria em vão questionarmo-nos se a maternidade divina estaria separada, na prática, da santidade pessoal; em outras palavras, se é, sobre tudo, possível a uma criatura ser a Mãe de Deus e, ainda assim, estar desprovida de santidade pessoal. Isto, sem dúvida, implica numa contradição. Certamente as palavras de Nosso Senhor não sugerem que Ele fez tal suposição. Ele admite inteiramente o louvor concedido à maternidade divina, mas completa-o ao estendê-lo à santidade pessoal.
A distinção que fazemos entre a santidade pessoal de Nossa Senhora e sua divina maternidade é justificada pelo fundamento de que seria possível, teoricamente falando, a um ser humano ter tantas graças quanto Maria teve independente da maternidade divina. Mas a questão deve ser colocada de outra forma, e podemos nos perguntar se a divina maternidade é totalmente possível sem a santidade pessoal, e uma santidade pessoal no mais alto grau. Sentimos, de fato, instintivamente, que a Mãe de Deus deveria ter uma santidade muito elevada; mas não é fácil definirmos até que ponto a santidade pessoal e a divina maternidade são inseparáveis. A partir dos sagrados Evangelhos e da teologia Católica aprendemos muita coisa a respeito da natureza e da extensão da divina maternidade. Sabemos muitas coisas, também, pela fé e tradição, a respeito da santidade pessoal de Nossa Senhora. Sabemos que ela foi concebida de forma imaculada, esteve absolutamente livre de pecado e foi confirmada na graça. Mas até que ponto estes privilégios pessoais foram postulados pela maternidade divina nós não sabemos. Há, entretanto, um fato espiritual de absoluta certeza: a divina maternidade é o primordial, é o fato central na eleição e predestinação de Maria por parte de Deus. Ela não é uma santa a quem a maternidade divina foi concedida como uma graça extra; ela é a divina Mãe para qual a santidade foi dada como um complemento espiritual necessário. A maternidade divina é uma graça, ou melhor, uma maravilha espiritual tão prodigiosa, tão única em sua natureza, que deve ser considerada como o fator todo poderoso na pessoa que o recebe. Todos os outros dons do corpo e da alma na bem-aventurada pessoa não poderiam ser nada além de uma preparação, uma continuação, para o grande mistério da vida divina. Assim, embora falhamos ao ver se a santidade no mais alto grau está unida com a divina maternidade através de uma necessária lei de vida, uma coisa que não falhamos em ver é a prioridade da divina maternidade na eleição de Maria; ela é simplesmente a Mãe de Deus; tal é a definição de Maria."
Que Maravilha !!!
ResponderExcluirÉ muita coragem escrever sobre um assunto tão difícil !!!
Que o Senhor Jesus Cristo lhe abençôe abundantemente !!!