segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Para compreender a Santíssima Trindade

(Estudos de D. Estevão Bettencourt – Teólogo de renome nacional e internacional, um dos tradutores da Bíblia de Jerusalém e TEB, dedicou sua vida aos estudos bíblicos, foi muito respeitado no meio acadêmico, deixou uma das maiores Escolas de Teologia do Brasil – Mater Ecclesiae)

Deus pode ser conhecido mediante a razão natural. Todavia os filósofos se detiveram em noção fria e temerosa de Deus. Escrevia Aristóteles († 322aC): “Seria um absurdo querer alguém amar a Deus” (Ética maior 2,2 1208).

Deus, porém, se revelou aos homens na mensagem judeu-cristã (bíblica), dando-lhes a conhecer que Deus é pessoal (possuidor de inteligência e vontade) e não força neutra; é Pai, é Amor, é tão rico que se afirma 3 vezes (como Pai, Filho e Espírito Santo).


• O Antigo Testamento

No AT a necessidade de incutir a unicidade de Deus impedia a revelação da trindade de pessoas em Deus. Os israelitas tendiam mesmo a afastar cada vez mais Deus dos homens, substituindo o nome de Deus por locuções como “Ele, o Altíssimo, o Eterno, o Nome...”.

Verdade é que Deus fala algumas vezes como se fosse um sujeito plural:

Gn1,26 ...Façamos...

Gn3,22 ...como um de nós...

Gn11,7 ...Desçamos e confundamos...

Is 6,8 ...Quem enviaremos...

Trata-se de formas de plural intensivo, que designam o valor do sujeito que fala, não, porém, a sua pluralidade.

Contudo não podemos deixar de observar a tendência, dos autores do AT, a conceber como se fossem pessoas certos conceitos ou atributos de Deus; é o que dá especialmente em relação à Sabedoria, à Palavra e ao Espírito de Deus.

1.1 # Sabedoria

A sabedoria como tal é um atributo de Deus e do homem. Todavia nos livros sapienciais ela foi sendo concebida como pessoa; assim em...

Jó 28,1-28
Br 3,4 – 4
Pr 8,12-36
Eclo 24,5-32
Sb 7,22-26

A sabedoria “sai da boca do Altíssimo, e, como a neblina, cobre a terra...reina sobre todos os povos e nações” (Eclo 24,3-6). Só Deus sabe onde ela habita; só Deus conhece o caminho que leva a ela (cf. Jó 28,23). Desde a eternidade, ela foi estabelecida, antes das montanhas e dos mares, foi gerada; assistia a Deus, como mestre-de-obra, na criação do mundo; todo tempo ela brincava na presença de Deus e se alegrava com os homens (cf. Pr 8,22-31). Ela apareceu sobre a terra e no meio dos homens conviveu (cf.Br 3,38). É um “espírito inteligente, santo, imaculado, amigo do bem, todo-poderoso...É “um reflexo de luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus, uma imagem da sua bondade” (Sb 7,22-26).

Embora esses textos insinuem ser a Sabedoria uma pessoa distinta de Deus, sabemos que a mentalidade judaica não os podia entender senão como figuras literárias, que personificam poeticamente um atributo de Deus. No NT, porém, São Paulo alude a esses textos e identifica a Sabedoria com a 2ª pessoa da SS. Trindade ou o Cristo Jesus:

1Cor 1,24 “Cristo é o poder e a sabedoria de Deus”

Hb 1,3 “Cristo é o resplendor da glória de Deus e a imagem da sua substância; sustenta todas as coisas pela sua palavra poderosa”

Cl 1,15 “Cristo é a imagem do Deus invisível”

O apóstolo, ilustrado pela revelação do Cristo Jesus, releu os textos do AT de modo a descobrir neles uma revelação antecipada da segunda pessoa da SS.Trindade.

1.2 # A Palavra

A Palavra (dabar), para que os semitas, tinha mais importância do que para nós. Atribuíam-lhe eficácia própria, que durava para além do momento em que era proferida.

Assim a palavra de Deus é tida como criadora:

Gn 1,3.6.9.11.14s.20.24 “Deus disse...E assim se fez”

Sl 33,6 “O céu foi feita pela palavra do Senhor”

Sb 9,1 “Deus dos pais,...que tudo criaste com tua palavra”

Sl 147,15 “O Senhor envia suas ordens à terra e sua palavra corre velozmente”

A eficácia atribuída à palavra de Deus explica tenha sido ela concebida como pessoa ao lado do próprio Deus; assim, por exemplo, nos seguintes textos:

Is 55,10s “Como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam sem ter regado a terra..., tal ocorre com a palavra de minha boca; ela não torna a mim sem fruto; antes, ela cumpre a minha vontade e assegura o êxito da minha missão para a qual a enviei”

Sb 18,14s “Quando um silêncio profundo envolvia todas as coisas e a noite mediava seu rápido percurso, tua palavra onipotente precipitou-se do trono real dos céus”
Sb 16,12 “Não os curou nem erva, nem ungüento, mas a tua palavra, Senhor, que a tudo cura”

Nesses textos não há, segundo os judeus que os escreveram, senão personificação
Poética ou figura literária. Todavia o apóstolo São João desenvolveu a concepção
judaica, apresentado a segunda pessoa da SS.Trindade como a Palavra (Lógos, em
grego); cf. Jo 1,1.14: “No princípio existia o Lógos, e o Lógos estava com Deus e o Lógos
era Deus... E o Lógos se fez carne, em habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a
glória do Unigênito do Pai”.

1.3 # O Espírito de Deus

O termo hebraico ruah (em latim, spiritus, espírito) significa “vento, brisa silenciosa,
Tempestade...”. Está associado a idéia de vida. Em conseqüência, as intervenções de
Deus em favor do seu povo na história são atribuídas ao ruah (força vivificante) de Deus. É este quem transforma os homens, tornando-os capazes de façanhas excepcionais; tenham-se em vista o caso de Sansão (Jz 13,25;14,6).

O Messias prometido pelos profetas seria portador de ruah:

Is 11,1-5
Is 42,1-3
Is 61,1s
Jl 3,1-4

Essa força vivificante de Deus seria dada a todos os homens:

Is 32,15-20
Is 44,3-5

E produziria novas criaturas:

Ez 11,19
Ez 18,31
Ez 36,26
Ez 37,1-10

Nota-se também a tendência a personificar o Espírito entre os judeus; cf.Is 63,10s ; 2Sm 23,2. Isto, porém, sem ultrapassar os termos de uma figura poética. O NT mais uma vez desenvolveu o pensamento judaico, apresentando o Espírito como a terceira pessoa da SS.Trindade, cf. Jo 14,25 / Jo 16,7.13 / At 2,1-22.


• O Novo Testamento

Jesus explicitou as noções judaicas, falando abertamente do Pai e do Espírito, que com o Filho constituem um só Deus em 3 pessoas (obs: 3 pessoas numa única divindade).

A SS.Trindade aparece em algumas fórmulas marcantes:

Mt 28,18s
“Ide e fazei com que todas as naçõesmse tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” – Temos aqui a fórmula tal como era aplicada na liturgia do Batismo; a justaposição mediante a preposição e significa a igualdade de natureza da 3 pessoas divinas.

Mt 3,16 / Mc 1,11 / Lc 3,22
No Batismo de Jesus, o Pai se fez ouvir apontando o Filho e o Espírito Santo se manifesta sob forma de pomba (a pomba era, nas literaturas antigas, um sinal que servia para identificar).

Lc 1,20-35
Na anunciação do anjo a Maria, o Pai é dito “o Altíssimo, o Senhor Deus”; o Espírito Santo é identificado com o “Poder do Altíssimo”. Este recobre Maria com a sua sombra, como as asas de um pássaro recobrem uma criatura, simbolizando a ação divina fecundante e vivificante (cf. Sl 17,8 ; Sl 57,2 ; Gn 1,2); em conseqüência, Maria recebe em seu seio o Filho de Deus, ao qual ela deverá dar a natureza humana, para que Ele nasça como Filho de Deus e (enquanto homem) como Filho de Maria.

2Cor 13,13
“A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós!” – Nesta fórmula, Deus(Pai) é tido como o Amor (pois, na verdade, foi como Amor que Ele quis identificar-se no NT, cf. 1Jo 4,16). Esse Amor tem um sorriso (graça)para os homens, que é o Filho feito homem, manifestação do Pai. Essa graça se comunica a cada homem mediante o Espírito Santo, ao qual, portanto, é atribuída a comunhão.

Gl 4,6
“Porque sois filhos, enviou Deus em nossos corações e o Espírito do seu Filho, que clama: Abbá, Pai!” (cf.Rm 8,15) – Este texto nos diz que o Espírito Santo, nos faz filhos no Filho e, consequentemente, com o Filho nos leva a clamar a palavra por excelência: Abbá, Pai.
Somos assim inseridos na vida trinitária; a consciência deste fato era tão viva para os antigos cristãos que aprendiam a dizer Abbá desde os primeiros dias da sua conversão, ficando essa palavra aramaica, mesmo fora da Palestina, como a palavra mais típica e fundamental da mensagem cristã.

Ef 2,18
“Por Cristo...num só Espírito temos acesso ao Pai”. – Neste texto é apresentado o papel de cada uma das pessoas trinitárias na obra da salvação do homem: O Espírito Santo é sempre aquele que nos faz filhos ou aquele que nos atinge em nosso íntimo. Ele nos leva ao Pai (que é o Princípio e o Fim, o Primeiro e o Último) mediante o Filho (que é nosso Pontífice ou Mediador – o único). “Ao Pai pelo Filho no Espírito Santo” é a fórmula clássica da piedade cristã. Vivemos no “Espírito Santo” (cf.1Cor 12,3 ; Rm8,9.11), pois é o Espírito que anima e vivifica o corpo de Cristo que é a Igreja.

Tt 3,4-6
“Quando a bondade e o amor de Deus, nosso Salvador, se manifestaram..., fomos lavados pelo poder regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele ricamente derramou sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador”. – Como se vê, o Pai é o Amor, que tem a iniciativa de nos salvar, o Filho é o Mediador, e o Espírito Santo é a força de Deus que nos recria, fazendo-nos consortes da vida trinitária.

Hb 2,3s:
“A salvação começou a ser anunciada pelo Senhor. Depois foi-nos fielmente transmitida pelos que a ouviram, testemunhando Deus juntamente com eles..., pelos dons do Espírito Santo distribuídos segundo a sua vontade”... – Deus (Pai) é o princípio de toda salvação; o Filho é a palavra, que na terra anuncia essa Boa-Nova do Pai; o Espírito Santo é Aquele que em nossos corações explana e interpreta a mensagem.

Tal é a doutrina dos escritos do NT. Tem aspecto vivencial, procurando enfatizar o significado salvífico das verdades da fé. – Desde o séc. II os cristãos se viram diante de séria interrogação: como conciliar a unidade de Deus (tão incutida pela AT e pela razão) com a trindade de suas Pessoas? Ou há 3 deuses ou as Pessoas Divinas não passam de aspectos ou facetas de um único Deus – tal era o dilema que se impunha à reflexão dos cristãos.

É para este problema que nos voltamos agora...

As primeiras tentativas de conciliar unidade e trindade em Deus foram falhas: tendiam a subordinar o Filho do Pai (o Espírito Santo era menos estudado). Tal teoria nos séc. II e III tomou o nome de monarquianismo ( defendia a monarquia divina).

No séc. IV, o subordinacionismo foi reapresentado por Ário de Alexandria a partir de 315: afirmava ser o filho a primeira e mais excelente criatura do Pai. Tendo sida concebida a paz aos cristãos em 313, compreendeu-se a controvérsia tenha tomado vulto que nunca tivera. Em conseqüência, reuniu-se o primeiro Concílio Ecumênico da história em Nicéia (Asia Menor) no ano de 325, o qual reuniu uma profissão de fé, que afirmava:

“Cremos... em um só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido do Pai como Unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial com o Pai, por quem foi feito tudo que há no céu e na terra” (DS 125[54]).

Vê-se que o texto acentua a identidade de substância do Pai e do Filho para afirmar que o Filho não foi criado (quem cria, tira do nada), mas gerado (quem gera se prolonga no filho gerado); o Filho é Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.

Todavia a disputa não se encerrou em 325. Entre outras questões, restava a das relações com do Espírito Santo com o Pai e o Filho. Após decênios de debates, reuniu-se o Concílio de Constantinopla I em 381, que acrescentou à profissão nicena de fé os dados referentes ao Espírito Santo:

“Cremos no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai (cf.Jo 15,26), com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, o qual falou pelos profetas” (DS 150[86]).

Afirmando que o Espírito Santo é adorado com o Pai e o Filho, os padres conciliares queriam incutir a identidade de substância (ou a Divindade) do Espírito Santo com o Pai e o Filho.

Só foi possível aos teólogos chegar à formulação exata do dogma após recorrerem à distinção entre ousia (essência, natureza) e hypóstasis (pessoa). Aquela é única (a Divindade); as pessoas porém são 3, sem esfacelar nem retalhar a natureza divina, como 3 são os ângulos de um triângulo sem esfacelar a superfície do triângulo.


• As Processões em Deus

Os teólogos tentaram, desde os primeiros séculos, penetrar de algum modo no mistério da vida de Deus Uno e Trino. Não há dúvida, esta escapa à plena compreensão da inteligência humana, que é sempre finita. Como quer que seja, a reflexão teológica pode mostrar não somente que o mistério da SS.Trindade não é um absurdo, mas também que grande harmonia e conveniência existem nesse mistério.*

*Obs: Há quem diga popurlamente: Se 1+1+1=3, como é que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo não são 3 deuses? Na mesma linguagem popular pode-se responder: 1+1+1=3, mas 1x1x1=1! – Assim se desfaz a objeção mal concebida.

Eis como, em síntese, se pode ilustrar o mistério da SS.Trindade.

A S.Escritura, ao falar do Pai e do Filho, supõe procedência (ou processão) do Filho em relação ao Pai. No tocante ao Espírito Santo, diz Jesus: “O Espírito da verdade, que procede do Pai...(Jo 15,26).*

*Obs: Não confundir processão com procissão, que é uma cerimônia religiosa. Processão vem de proceder e só se usa na linguagem teológica trinitária.

Vejamos pois o que é uma processão:

- É simples a origem de um ser a partir de outro. Não implica relação de causalidade entre um e outro. Por exemplo, a luz e o calor procedem de uma lâmpada acesa (há relação de causalidade no caso); a estrada de Rio-São Paulo procede do ponto A (não há relação de causalidade entre o A e a estrada, mas há uma processão ou procedência).

Há 2 tipos de processão: a Transeunte e a Imanente

Na processão Transeunte, o termo que procede sai do princípio donde procede. É o que ocorre quando alguém escreve uma carta (esta sai para fora da pessoa que escreve); quando alguém confecciona uma obra de arte...

Na processão Imanente, o termo que procede permanece no sujeito donde procede. É o que acontece com nossas ações vitais: o conhecer, o querer, o ver, o ouvir... A ação permanece no sujeito como perfeição deste. Por exemplo, quando admiro uma paisagem, nada sai de mim; não obstante, realizo uma atividade, olhando, refletindo, imaginando..., que me enriquece interiormente.

Dentre as ações imanentes, as mais nobres são as da vida intelectiva: o conhecer intelectivo e o querer (que decorre do conhecimento).

Observemos o que ocorre em nós: nosso eu é dotado de intelecto (mediante o qual somos chamados a conhecer a verdade) e de vontade (mediante a qual queremos e amamos a verdade, que é um bem).*

Obs: A filosofia ensina que o Ser, na mediada em que é considerado pela inteligência, é verdade e, na medida em que é desejado pela vontade, é um Bem.

Assim nossa vida é uma contínua procura da verdade (mediante a inteligência), que suscita em nós momentos de gozo e deleite (amor).

Transponhamos essa realidade para Deus, já que somos imagem e semelhança dele.

Em Deus não existem só processões transeuntes (criação do mundo e do homem), mas há processões imanentes. Sim; em Deus há um conhecer intelectivo e um quere (que é também amor). Todavia Deus não conhece a verdade pouco a pouco, mas num único ato de Deus conhece toda verdade; consequentemente, com um único ato Deus ama todo o Bem.

E qual é o objetivo do conhecimento e do amor de Deus?

- É o próprio Deus. Deus não depende de criatura alguma para conhecer e amar; toda criatura começa no tempo, só Deus é eterno. Isto quer dizer: desde toda eternidade Deus se conhece cabal e exaustivamente e, conhecendo-se, projeta uma imagem de Si, igual ao próprio Deus que a projeta (não há retalhamento e nem diminuição nesta imagem); é um segundo eu em Deus, é Deus de Deus ou a segunda pessoa da SS.Trindade. A Sagrada Escritura dá a essa pessoa os nomes de Filho, Logos (conceito, palavra), Imagem (todo Filho é imagem e palavra de seu pai) – cf.Mc 1,11 (Filho); Jo 1,1(Logos); Cl 1,15 (Imagem). Tal é a primeira processão existente em Deus; a de ser entendida a semelhança do que se dá quando projetamos nossos conceitos e os contemplamos mentalmente; também tem analogia com a geração ou com o relacionamento existente entre Pai e Filho.*

*Obs: É de notar, aliás, que o mesmo verbo conceber se aplica tanto à concepção de noções ou idéias quanto à concepção de um filho. O pensador concebe um projeto mental; a mãe concebe um filho.

Mas a vida de Deus – como a de qualquer um de nós – não é só conhecimento. Este suscita o amor. Por isso o conhecimento que Deus tem de si, suscita o amor de Deus a esse bem, que é Ele mesmo. O amor em Deus não é um ato parcelado ( em Deus nada pode ser parcelado), mas é o próprio Deus que ama, ou ainda: é o amor que o Pai tem ao Filho e que o Filho tem ao Pai. Esse amor é chamado Espírito Santo. Tal é a segunda processão existente em Deus: é a terceira pessoa ou do terceiro eu, que procede do Pai e do Filho; na falta de outro nome, essa processão é chamada “espiração”, pois tem por termo o Espírito.

Vemos assim que em Deus deve haver duas processões em três pessoas. Não pode haver nem mais nem menos. É importante salientar que essas processões não implicam temporalidade (antes e depois), nem hierarquia, nem dependência. No único e permanente instante da eternidade, Deus se conhece gerando o seu Filho igual ao Pai, e Deus se ama, produzindo o Amor Subsistente.

Há, pois, uma só natureza em Deus, duas processões e três pessoas. As processões, sendo imanentes, não dividem nem retalham a única natureza divina; não constituem 3 deuses, mas um só Deus ou uma só natureza divina, que se afirma 2 vezes.

A analogia assim exposta é a que mais se aproxima da vida de Deus. Os antigos escritores da Igreja propunha outras, que a seu modo ilustram a SS.Trindade.

Imaginemos um lençol de água debaixo da terra; é algo de grande, mas invisível e insondável aos olhos da criatura. Esse lençol se manifesta mediante um “olho de água”, que revela aos poucos a quantidade e qualidade de água oculta. Por sua vez, esse olho de água dá origem a um córrego, que irriga e “vivifica” toda a terra vizinha. – Ora o lençol de água invisível representa o Pai; o olho de água, o Filho ou o Logos, que diz que há no lençol; o córrego representa o Espírito Santo, que comunica a todos os homens a vida decorrente da água oculta.

Imaginemos outrossim um tronco de planta com suas raízes invisíveis. É portador de uma vida, que se manifesta na flor. Esta, por sua vez, exala um suave perfume, que impregna todo o ambiente. Ora o tronco com suas raízes significa o Pai; a flor que fala e revela, simboliza o Filho; o suave odor representa o Espírito Santo. – Estas duas últimas é o princípio sem princípio; é o Deus invisível também chamado “Abismo” e “Silêncio”. O Filho é a imagem ou palavra do Pai; pelo Filho é que o Pai se dá a conhecer aos homens; Ele é também o mediador e o Pontífice. O Espírito Santo é Deus que atinge cada homem na sua intimidade e lhe fala ao coração; é o Artífice da santificação de cada um.

Há outra maneira de figurar a SS.Trindade, muito usual na arte latina: É a do triângulo eqüilátero. Este apresenta uma só área, que é focalizada diversamente a partir de cada um dos seus ângulos: A,B e C; estes são iguais entre si, mas ocupam posições diversas e inconfundíveis dentro da unidade da figura.


• As missões divinas

Em sua vida íntima, Deus é uno e trino. Conhecemos tal mistério através de sua manifestação na história da salvação. Esta nos ensina que existe um Pai, o qual nos enviou o seu Filho (mistério da encarnação na plenitude dos tempos; cf. Gl4,4). O Pai e o Filho, por sua vez, nos enviaram o Espírito Santo como dom por excelência, como hóspede invisível de cada coração em estado de graça; cf. Jo 14,26. – Ao falar-nos desses “envios” ou dessas “missões”, a S.Escritura dá-nos a entender que são o eco temporal das eternas processões existentes em Deus.

O estudo das missões divinas dá ao tratado da SS.Trindade uma nota muito viva e concreta. O mistério de Deus aparece profundamente inserido dentro da trama da história dos homens.

O Pai não é enviado, porque não procede. É Ele quem envia o Filho como Salvador, nascido de Maria. “Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para reunir os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4s). Esta é a missão visível do Filho, que não implica subordinação da segunda em relação à primeira, e que torna Deus, de modo novo e mais íntimo, presente às criaturas.

O Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho, é-nos enviado por ambos: ... de modo visível, sob formas de línguas de fogo, no dia de Pentecostes (cf. At 2); ... de modo invisível à guisa de hóspede interior, no dia do Batismo de cada cristão: “Porque sois filhos, enviou Deus em nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai! De modo que já não és escravo, mas filho. E, se és filho, és também herdeiro, graças a Deus” Gl 4,6s).

O Espírito Santo é o dom que o Pai e o Filho nos entregam como conseqüência da vitória de Cristo; Ele é o “outro Paráclito (Consolador)”, na ausência de Cristo (cf. Jo 14,16).

Vê-se assim que a santificação dos homens se faz por comunhão com a vida das 3 pessoas divinas; por obra do Espírito Santo, o cristão é feito filho no Filho e, com o Filho, volta ao Pai. A piedade cristã deve saber orientar-se diante desta verdade; especialmente a sua oração há de se mover dentro do esquema: Ao Pai por Cristo no Espírito Santo.

As doxologias (fórmulas de glorificação) antigamente rezavam “Glória ao Pai, pelo Filho no Espírito Santo”. No século IV, porém, surgiu a heresia ariana, que subordinava o Filho ao Pai, prevalecendo-se, entre outras coisas, de tal fórmula. Em conseqüência, os autores católicos enfatizaram outra redação: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”, frase em que são postas exatamente no mesmo plano as 3 pessoas divinas. Esta outra maneira de rezar tem seu fundamento teológico e acabou prevalecendo sobre a anterior. Todavia não nos deveria levar a esquecer o papel que toca a cada Pessoa trinitária na santificação do cristão.


• As apropriações

Chamamos “propriedades” certos predicados que convêm, de maneira exclusiva, a uma Pessoa divina: assim a inascibilidade e a paternidade, ao Pai; a filiação, o ser Palavra, o ser imagem, ao Filho; a espiração passiva, o ser Amor e o ser Dom, ao Espírito Santo.

Na Liturgia e na Sagrada Escritura, ocorre também apropriações. Apropriação é o ato de atribuir a determinada Pessoa Divina um predicado comum as três; essa apropriação se faz na base da semelhança que tal predicado comum tem com alguma propriedade.

Na verdade, as três pessoas são igualmente poderosas e criaram o mundo; todavia parece que o ato de criar tem especial afinidade com o Pai, porque este é o Princípio sem princípio ou o Alfa em Deus. – Ao Filho é apropriada a Sabedoria (1Cor 1,24), não porque só Ele seja sábio, mas porque Ele é a palavra do Pai. – Ao Espírito Santo é apropriada a santificação implica consumação no amor. São numerosas as apropriações que a piedade cristã tem efetuado em seus hinos e textos litúrgicos.

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