sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Traços da investigação atual sobre Jesus

José Antonio Pagola

Assinalo brevemente alguns traços que caracterizam de alguma forma o momento atual da investigação sobre Jesus. [1]

- Ficou superado o cetcismo semeado por R. Bultmann. Os investigadores movem-se nm clima de moderado otimismo e confiança. Foise- superando também o preconceito de que a investigação histórica sobre Jesus é irrelevante a fé cristã e também a convicção de que é muto pouco o que podemos saber sobre ele. Com excessão de Flávio Josefo e, talvez, Paulo de Tarso, "Jesus é o personagem judeu mais bem conhecido de seu tempo" (D. Flusser).

- Há um consenso muito generalizado de que não é possível escrever uma biografia de Jesus, no sentido moderno da palavra. Aceita-se que os evangelhos, principal fonte da história de Jesus, recolhem o impacto que ele causou em seus seguidores, e conservam recordações que nos fazem remontar a ele, embora tenham sido compostas por crentes que escrevem e interpretam o passado de Jesus a partir de sua fé em Cristo ressuscitado, e o fazem não para redigir uma "biografia", mas para proclamar a Boa Notícia de Jesus: Messias, Senhor e Filho de Deus.

- Apesar de algumas brilhantes excessões (J. P. Meier), os investigadores em geral, não se limitam ao estudo crítico das fontes literárias, mas empregam todo tipo de métodos para aproximar-se de Jesus a partir da arqueologia, da sociologia, da antropologia cultural, da economia das sociedades agrárias pré-industriais, etc.

- Há consenso também em que a figura de Jesus deve ser investigada a partir das fontes disponíveis, embora os evangelhos sinóticos sejam a fonte mais importante e decisiva. Está havento progressos no conhecimento dos evangelhos apócrifos, da obra de Flávio Josefo, da literatura rabínica, dos targumim e dos escritos intertestamentários apócrifos ou pseudepígrafos. Deve-se destacar o rigor crítico com que se estudam os escritos de Flávio Jovefo, levando em consideração sua tendência pró-romana na apresentação dos fatos (Freyne, Horsley), e os importantes esforços no sentido de analisar criticamente a literatura rabínica, a fim de não tirar falsas conclusões sobre o judaismo anterior ao ano 70 (Neusner, Sanders).

- Observa-se também uma crescente aténção aos dados arqueológicos que as escavações vão trazendo sobre a Palestina romana anterior ao ano 79. Não se trata de esperar descobertas sensacionais, mas de compilar e avaliar os resultados dos trabalhos que estão sendo realizados: caráter judaico dos galileus, vida cotidiana nas aldeias da Galiléia, grau de helenização, impacto da construção de Séforis e Tiberíades... (Reed, Gonzáles Echegaray, Charlesworth).

- A investigação atual está fazendo um importante esforço para situar Jesus dentro do judaísmo de seu tempo, muito mais complexo e plural do que pensava até há pouco tempo. Não se deve esquecer que Jesus é o fundador de um "movimento de renovação judaica" (Theissen). Corrigiu-se a tendência, vigente há alguns anos, de destacar apenas o caratér original e único de Jesus, empregando de maneira menos exclusiva e mais flexível o "critério de descontinuidade". É verdade que foram acrescentados modelos de Jesus alheios ao judaísmo (por exemplo, o Jesus "intinerante cínico" de Downing, Mack e, em parte, Crossan), mas foram alvo de uma crítica muito generalizada e contundente.

- Adquiriu grande importância nestes ultimos anos o estudo da Galiléia para conhecer de maneira mais concreta o contexto em que Jesus se moveu, já que foi sobretudo em suas aldeias e nos arredores do lago que realizou sua atividade e a pregação de sua mensagem (Freyne, Horsley, Reed, Charlesworth). A atenção concentra-se sobretudo no grau de possível helenização da região, na repercussão socioeconômica dos centros urbanos de Séforis e Tiberíades, na tributação e taxas que recaiam sobre as classes camponesas, na presença de fariseus e mestres da lei na Galiléia.

- Durante estes mesmo anos desenvolveu-se de maneira importante a aplicação das ciências sociais e a antropologia cultural à investigação sobre Jesus (Malina, Rohrbaugh, E. W. Stegemann e W. Stegemann, Moxnes, Aguirre, Guijarro e membros do Context Group). Avançou-se também no conhecimento da situação econômica (Hanson, Oakman). Trabalha-se a partir de uma dupla convicção: na sociedade de que Jesus conheceu não era possível separar a religião do sociopolitico; Jesus não foi um revolucionario social, mas com sua atividade e sua mensagem apresentava diretamente exigências de ordem social (Horsley).

- Houve aprofundamento na atividade concreta de Jesus a partir das ciências sociais e antropológicas: suas curas foram objeto de uma investigação sociocultural da antiga medicina, da magia e dos milagres (Kee, Pilch, Avalos, Guijarro, Stevan); a mesma coisa aconteceu no estudo de seus exorcismos (Twelftree, Strecher, Chilton, Guijarro); também sua comensalidade com "publicanos e pecadores" foi investigada a partir da antropologia da refeição e do sistema de pureza (Douglas, Malina, Neusner, Aguirre, Crossan).

- Falou-se da "criatividade caótica" da investigação atual, porque esboçaram-se diferentes modelos: Jesus "judeu marginal" (Meier); Jesus "reformador social" (Horsley, Theissen, Kaylor); Jesus "intinerante cínico" (Downing, Mack, Crossan); Jesus "mestre sapiencial" (Ben Witherington III, Shussler Fiorenza); Jesus "judeu piedoso (hasid)", cheio de Espírito (Vermes, Borg); Jesus "profeta escatológico" ou "Messias" (Meier, Wright, Dunn, Stulmacher, Bocmuehl). Existe, sem dúvida, o risco de focalizar a investigação num determinado aspecto, esquecendo outros acolhidos também na tradição de Jesus. Daí a necessidade de atender à contribuição mais sólida e sensata de cada modelo. O Jesus que atua como "profeta escatológico" é o mesmo que promove a "mudança social" exigida pela vinda do reino de Deus; ele o faz movido pelo Espírito de Deus, que o impele também a curar a enfermidade e oferecer o perdão; Jesus não só anuncia o reino de Deus definitivo, mas também sua presença atual na busca de sua justiça. Aproximação a Jesus é provavelmente mais acertada se evitarmos o risco de ficar encerrado num modelo exclusivo e se acolhermos o que é compatível entre as diferentes contribuições.

- Recentemente, James D.G. Dunn lembrou duas questões que a investigação moderna sobre o Jesus histórico descuidou. Em primeiro lugar, geralmente não se leva em consideração que esta investigação não consiste em chegar até um "Jesus puro" mediante o expediente de ir eliminando da tradição tudo o que foi acrescentado ou retocado posteriormente, e sim em captar da maneira mais clara possível o "impacto" que Jesus causou de fato em seus seguidores. Por outro lado, habituados à cultura escrita, os investigadores modernos nem sempre levam em conta a importância que a transmissão oral tem na tradição de Jesus: não conhecem seu funcionamento nem seus traços característicos. Ao que parece, a crítica de Dunn está sendo bem acolhida.

- Podemos observar três marcas no trabalho dos investigadores contemporâneos: um certo deslocamento da investigação da Europa para o mundo anglo-saxão, onde cresce o número de trabalhos e publicações; o desenvolvimento cada vez maior do estudo interdisciplinar; o impulso do trabalho grupal em equipes: basta recordar a criação em 1983 da Historical Jesus Section, dentro da Society of Biblical Literature; a fundação em 1985 do discutido Jesus Seminar, que agrupa cerca de cem membros; o Contexto Group, com seus encontros regulares para o estudo do ambiente cultural da Bíblia; ou Projeto Internacional Q.


Nota [1] - Discute-se se é adequado falar de uma "terceira busca" (Third Quest) a partir da década de 1980 até nossos dias, depois da "primeira busca" (First Quest), que vai desde Reimarus ( 1694-1768) até Schweitzer (1875-1965), e da segunda busca" (Second Quest), quevai de E. Kasemann (1953) a E. Schillebeeckx (1979).

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