Por Oscar Cullmann
Qual é, porém, a significação de tudo isso [dos escritos do AT] para a comunidade cristã? Esta vive, sim, do Novo Testamento, do Evangelho de Jesus Cristo. Será que ela ainda precisa do AT? Não é, para ela, assunto encerrado?
Para obtermos uma resposta a esta pergunta, precisamos trazer à nossa memoria a atitude para com o AT assumida pela comunidade cristã nos seus primórdios. Com a maior naturalidade ela fez uso do AT e o considerou sua "Bíblia".
Para isso não havia apenas o motivo externo de terem sido os primeiros cristãos, todos eles, judeus. Na verdade, exclusivamente à luz do AT tornava-se compreensivel que Jesus era o "Messias", o "Cristo". As predições dos profetas e toda a história de Deus com seu povo cumpriram-se em Jesus Cristo. Era impossível separá-lo desta história. Todo o AT foi lido com os olhos voltados para ele.
Precisamos, portanto, procurar entender o que significa a afirmação de que o AT se "cumpriu" em Jesus Cristo. Temos, em primeiro lugar, as profecias que falam diretamente da vinda do Messias. Anunciam um rei da estripe de Davi, que seria um rei inteiramente segundo a vontade de Deus e que estabeleceria de Deus na terra. Essas profecias, porém, não são frequentes, e de modo algum pode-se afirmar que elas constituem o conteúdo decisivo do AT. E, sobretudo, cumpriram-se de aneira bem diferente do que o AT esperava: Jesus não apareceu como um rei, não restabeleceu a independência e grandeza nacional de Israel; pelo contrário, morreu, injuriado, sobre a cruz. Neste acontecimento, cumpriram-se muito antes as palavras sobre o Servo sofredor de Deus, em Is 53; mas estas são, no AT, uma exceção.
As profecias do AT que aparentemente se cumprem na vida e na paixão de Jesus formam, portanto, apenas uma ponte estreita para o NT. Mas talvez haja ainda em outros trechos referências indiretas a Jesus Cristow Esta idéia forma a base da interpretação "tipológica", praticada na comunidade cristã em todos os tempos, inclusive ainda em nossos dias. Ela percebe que no AT as prefigurações da história de Cristo, sombras daquilo que o NT relata e prega a respeito de Cristo. Mas, procedendo-se desta maneira, pressupõe-se no AT, a partir do Novo, um sentido oculto. E a pergunta se impõe se o AT, submetido a esta exegese, de alguma maneira ainda possui uma significação própria, independente, ou se apenas diz, de forma provisória e imperfeita, o mesmo que o NT.
Que é o peculiar, o próprio do AT? Se perguntarmos aos próprios escritos veterotestamentários, a resposta é bastante clara: o decisivo é o agir de Deus na história. Israel concebe sua história como história de Deus; é-lhe, a rigor, impossível falar de Deus de outra maneira do que falar do seu agir na história: Deus se revela para Israel na história. As mais antigas confissões de fé tratam dos feitos de Deus na condução do povo para fora do Egito e para dentro da terra prometida; as primeiras grandes obras da literatura israelita expõem a história de Deus com Israel em seu conjunto. os profetas interpretam o agir presente e futuro de Deus na história. e a comunidade pós-exílica está empenhada em conhecer o plano de Deus na história para, a partir dele, dar conta do presente e do futuro.
Se, pois, perguntamos pelo significado do AT para a comunidade cristã, levantamos, com isso, a pergunta pelo significado desta história. Não só determinados trechos delimitados desta história ou palavras isoladas do AT trêm importância para nós, mas, sim, toda a história de Deus com Israel; e este significado não reside num caráter "profético" ou prefigurativo desta história, mas no fato de que Deus se revela nela.
E justamente neste ponto reside a conexão entre o Antigo e o Novo Testamentos: Deus se revela na história de Israel até a vinda de Jesus Cristo. Esta história de revelação é uma unidade. Jesus Cristo é seu fim, seu alvo, mas não pode ser tirado dela e não é compreensivel sem ela. O Antigo e o Novo Testamentos, como testemunho da revelação histórica de Deus, formam uma união indissolúvel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário